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Abril Indígena pressiona por política mais eficiente no País

A Critica, Cidades, p. C4
24 de Abr de 2005

Abril Indígena pressiona por política mais eficiente no País

Querendo reverter quadro de problemas enfrentados pelos índios, evento reunirá mil liderança em Brasília
Indignação e revolta é ver, em pleno século 21, mortes de crianças com menos de 5 anos por desnutrição, como tem acontecido no Município de Dourados (MS) e na região do Vale do Javari, no Amazonas, na tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia, que revela a pobreza impiedosa nas aldeias indígenas brasileiras, dos guarani-caiuá e dos canamari, respectivamente. No Mato Grosso, a situação é crítica em conseqüência da histórica falta de terra para plantação. No Estado, em Atalaia do Norte (a 1.138 quilômetros de Manaus) o problema pode ser falta de uma política pública mais eficiente de saúde, para socorrer a tempo os doentes. É para reverter este quadro e muitos outros problemas que mais de mil lideranças dos povos do País estarão acampadas e reunidas em Brasília, a partir de amanhã, na Esplanada dos Ministérios, até o dia 3 de maio, na mobilização batizada de "Abril Indígena".
No espaço, ocorrerá uma série de eventos e protestos contra a política considerada antiindigenista do Governo Lula. Em cinco malocas serão realizadas " oficinas, seminários, manifestações culturais e diversas atividades, além de estarem marcadas audiências com diversos ministros, no Senado, na Câmara Federal, na Casa Civil, entre outras. 0 acampamento foi apelidado como "Terra Livre" e no dia 3, segundo o Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas (FDDI), entidade que organiza a manifestação, está programado um ato conjunto com os trabalhadores rurais e movimentos dos sem-terra.
No manifesto que deu origem à mobilização, apresentado em março, os índios criticam a falta de uma política indigenista satisfatória e denunciam o agravamento dos problemas de saúde nas tribos; a demora na homologação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima; e a proposta de uma moratória para novas demarcações. As lideranças acusam o poder de descaso e continuísmo e prometem mais do que discursos duros, partindo, se não houver diálogo, para ocupações de prédios públicos.
"0 Abril Indígena é mais do que um manifesto. Não vamos quebrar ou fazer baderna. 0 governo já se mostrou mais aberto, liberando a homologação da Raposa Serra do Sol, mas ainda há muito o que ajustar. Nossa ação e reação dependerão da conversa", diz o coordenador da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), o sateré-maué Jecinaldo Barbosa, 28. Os principais pontos em pauta serão a luta pela criação de um Conselho Nacional de Política Indigenista; a ação para barrar inúmeras propostas em tramitação no Congresso Nacional, que pretendem destruir ou obstar os direitos dos povos; e a proteção dos conhecimentos tradicionais. As costumeiras comemorações oficiais do mês índio foram deixadas de lado.
Miséria
Enquanto a miséria dos homens brancos, no País, atinge 30% da população, não se sabe exatamente o grau de miserabilidade indígena, cujo sofrimento muitas vezes acontece no confinamento de aldeias e reservas. "A questão não pode mais ser tratada como marginal. É preciso reverter o isolamento e a discriminação secular dos povos, tratando-os como cidadãos, que têm direito a uma vida digna e humana, educação, saúde, segurança, moradia e comida. Esperávamos muito do Governo Lula", afirma a secretária geral da Coiab, Maria Miquelina Barreto Machado, 45, do povo tucano.
0 confinamento em aldeias miseráveis, sob o ideal da preservação da cultura nativa, parece hoje um equívoco histórico. Segundo a antropologia, a transculturação é própria do homem e, no caso indígena, se busca água tratada, energia elétrica e condições para trabalhar e produzir que necessariamente não precisam afetara cultura. "Depois que há contato com a sociedade existe, de fato, abertura para essas necessidades mais urbanas. Passamos a usar o sal, roupas, o computador e o celular para comunicação, mas isso não implica na perda de identidade, daquilo que nos identifica, que é a língua, as danças, os rituais, nosso modo de viver e conviver com o meio ambiente", diz o sateré-maué Jecinaldo Barbosa.
A cultura indígena, assim como outras, não é estática, sendo dinâmica. E as lideranças percebem a importância de incorporar novos conhecimentos, o que depende do nível de envolvimento das populações com a sociedade. "Só não podemos permitir que sejamos totalmente dominados por outra cultura.
Mas entendemos que para ter qualidade de vida, hoje, é preciso, sim, ter água tratada e melhor infra-estrutura. Não dá mais para viver isolado. Muita gente falou dos índios há mais de 500 anos e o que isso resultou?", questiona o coordenador da Coiab. Para Maria Miquelina Barreto Machado, 45, do povo tucano, o que falta é um atendimento mais rápido e eficaz às tribos, o que se reflete numa saúde frágil e sem resistência, não decorrente, necessariamente, da escassez de alimento.

Não adianta só vacinar e transportar em um avião
Um saldo negativo de 15 mortes e uma preocupação com o futuro. A situação dos povos indígenas no Amazonas - e na Amazônia, por tabela - não é diferente do restante do País. No Vale do Javari, os óbitos citados aconteceram de dezembro de 2004 até março deste ano, por problemas com hepatite e desnutrição. Ano passado, de julho a agosto, no Município de Itamarati (a 980 quilômetros de Manaus), no rio Xeruã, o povo deni perdeu 11 índios, com diarréia e vômito, suspeita de cólera não confirmada até hoje pelo Ministério da Saúde.
"Isso é resultado da ausência de um sistema público que atenda aos indivíduos, principalmente os que moram em lugares mais isolados", acredita o coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Haroldo Pinto, 35. Há um ano, o Vale do Javari, área de tríplice fronteira - Brasil, Colômbia e Peru - vai mal de saúde. Os índios criticam o "curativo" colocado sobre a região, de atendimento emergencial - transporte de pacientes em aeronaves para Manaus -, em detrimento de uma pesquisa sobre as causas das mortes e uma operação conjunta de órgãos e ministérios para curar a "ferida". "Basta o governo se articular, usar a estrutura do Exército e trabalhar com as entidades indígenas para descobrir a causa das doenças e óbitos. Não adianta só vacinar e transportar em avião", observa o sateré-maué Jecinaldo Barbosa, da aldeia Ponte Alegre, em Barreirinha. 0 índio chama atenção para o fato de que é preciso o sacrifício de vidas, inocentes, para que haja mobilização do Poder Público e da sociedade.
"Há muito tempo apontamos os problemas no Mato Grosso do Sul e no Amazonas, e só agora as autoridades estão espantadas. Mas não fomos ouvidos antes."
Lideranças criticam retorno de conceitos de segurança
No manifesto indígena contra a política do Governo Lula, ,elaborado e assinado por entidades como o Fórum de Defesa dos Direitos Indígenas (FDDI), Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e Instituto Socioambiental (ISA), as lideranças criticam a incapacidade do Poder Público Federal de lidar com a pluralidade étnica do País, revelando uma profunda dificuldade em estabelecer gestões diferenciadas. Segundo o manifesto, a política indigenista hoje foi remilitarizada, com o retorno de velhos e superados conceitos de segurança e soberania nacional.
Os índios reclamam que o governo não honrou o compromisso de homologar, em área contínua, a reserva Raposa Serra do Sol (ocorrida esta semana) o que levou as lideranças a denunciarem o Brasil à Organização dos Estados Americanos (OEA), que recomendou à União medidas cautelares para a proteção à vida dos habitantes, sujeitos à violência na disputa pela terra. Sobram críticas ao Poder Judiciário, acusado de ter atuação parcial, privilegiando os brancos e a propriedade privada. A política em vigor, conforme o manifesto, é neoliberal/desenvolvimentista, etnocêntrica e genocida, que continua impedindo a paz no campo.
Outra denúncia contra o Governo Federal diz respeito à burocracia da máquina estatal; que atrasa pagamentos e impede a liberação de recursos destinados às populações indígenas. E quem fica no prejuízo são as comunidades, situação agravada diante das questões políticas, que revelam uma total desarticulação entre os ministérios e disputas de poder dentro da gestão pública. "A Funai não se entende com a Funasa e cada um faz uma coisa paralela. Não há entrosamento entre as esferas e os órgãos, e o resultado disso são as mortes", confia Jecinaldo. As lideranças apontam ainda a ausência de diálogo é o não-cumprimento de acordos, além de muita arrogância e atos ditatoriais.
Um exemplo bem atual acontece em Manaus, que desde o início do ano está sem administrador na Funai. Apesar de existir um acordo, firmado no Ministério Público Federal, a fundação voltou atrás na decisão de indicar um índio para o cargo. A briga, agora, vai continuar na justiça.

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Todos em Brasília
Lideranças indígenas deverão participar da manifestação.
Elas estarão presentes a partir de amanhã e até o dia 3 em Brasília para o Abril Indígena.

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Em números
Haroldo Pinto, 35 Coordenador do Cimi
"O Cimi atua como parceiro dos povos indígenas na luta para fazer o Estado, em todos os níveis, especialmente o federal, assumir o papel diante da garantia e preservação dos direitos dos índios. Ajudamos no controle social, acompanhando a utilização das verbas para que o dinheiro seja aplicado como desejam as populações. Mas, na maioria das vezes, a verba não chega por vários motivos, entre eles a burocracia e problemas com a organização administrativa das entidades, para executar os orçamentos e prestar contas." A declaração é do coordenadordo Cimi no Amazonas, Haroldo Pinto, há três meses no cargo. 0 Conselho Indigenista Missionário é um órgão anexo à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Do conselho também faz parte a Pastoral Indigenista da Arquidiocese de Manaus (PIM). O Cimi atua no Amazonas desde 1974.

Em números
700 mil é a população índia do Brasil, estimada pela Coiab, com base nos últimos dados censitários do IBGE. Na Amazônia Legal, estima-se viver 400 mil índios.
50 povos indígenas da Amazônia, aproximadamente, hoje vivem sem contato nenhum com a sociedade, com o chamado homem branco.
11 mortes de índios foram registradas ano passado, em Dourados, no Mato Grosso do Sul, em virtude de problemas com a baixa qualidade da saúde e a contaminação da água.
1,69 milhão de hectares é o tamanho da reserva da Terra Indígena da Raposa Serra do Sol, homologada na semana passada pelo Governo Lula.

A Crítica, 24/04/2005, Cidades, p. C4

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