VOLTAR

Abolição que nunca existiu

CB, Brasil, p. 16-17
Autor: BENTES, Lélio
14 de Dez de 2003

Abolição que nunca existiu
Levantamento feito pelo governo mostra que 40% dos lavradores libertados no campo voltam a se submeter ao trabalho escravo

Ulisses Campbell

O combate ao trabalho escravo no Brasil enfrenta um obstáculo de peso. 0 Ministério do Trabalho libertou nos últimos oito anos 29.587 trabalhadores do regime de escravidão em seis estados. Desse total, 11,8 mil voltaram à senzala por falta de oportunidade de emprego. 0 índice de reincidência, que chega em 40% em alguns estados, passou a ser o maior desafio do governo na erradicação do trabalho forçado no Brasil.
No Pará, que é o berço nacional da escravidão, a taxa de trabalhadores que voltam para as fazendas depois de libertados saltou de 25% para 40% em seis anos. A Delegacia Regional do Trabalho (DRT-PA) chegou ao cúmulo de resgatar seis vezes o mesmo trabalhador de quatro fazendas diferentes. "Eles voltam porque não existe programa de inserção social que beneficie os trabalhadores libertados. Tem gente que ganha a liberdade, mas não tem nem para onde ir", conta o coordenador do Grupo Especial de Fiscalização do Trabalho Escravo da DRT-PA, Vanilson Rodrigues Fernandes.
No dia 18 de julho, o trabalhador rural Alfredo Lopes de Souza, 23 anos, corria desesperado pelo mato. Era madrugada e chovia forte no interior do Pará. Alfredo fugia do trabalho forçado que lhe fora imposto na fazenda Rio Bonito, no município de Conceição do Araguaia. Cinco jagunços o perseguiam na mata escura. Conseguiu escapar porque se escondeu no alto de uma árvore e ficou lá até amanhecer. Apesar do terror que viveu durante a fuga, dois meses depois ele foi resgatado de outra fazenda, dessa vez no Tocantins. "Pelo menos a água que a gente bebia na segunda fazenda era limpa", compara.
A saga de Fernando
0 piauiense Fernando Peixoto, 32 anos, é veterano no regime de trabalho que foi abolido oficialmente em 1888, com a Lei Áurea. Residente no município de Axixá do Tocantins (TO), foi levado de ônibus com outros 45 passageiros para a cidade de Marabá, no Pará, em julho deste ano. De lá seguiu de caminhão até a fazenda Rio Bonito. Achava que ia trabalhar como boiadeiro e que receberia R$ 220 por mês.
Na fazenda, Fernando recebeu uma foice e, junto com outros trabalhadores, roçava seis alqueires de terra em uma semana, o equivalente a 20 campos de futebol. "Já estava acostumado.
Nas outras fazendas, fazia a mesma coisa", diz. Pela servidão em tempo integral, Fernando não recebia um tostão. Pelo contrário, se endividava cada vez mais. Tinha de pagar R$ 30 por mês para dormir num barracão de lona, R$ 3,50 diariamente pela refeição e mais R$ 15 para usar a foice. Somando tudo, a conta de Fernando dava R$ 150 por mês. A dívida crescia feito uma bola de neve e o escravizava cada vez mais na fazenda. "Pelo menos eu tinha onde dormir e comer", pondera. Hoje, libertado, lamenta que não conseguiu emprego.
Há um mês, o grupo móvel do Ministério do Trabalho libertou Fernando e outros 44 trabalhadores da fazenda. 0 mais curioso é que eles acreditavam estar no Pará. Na verdade, a fazenda da qual foram libertados fica no município de Nova Canaã do Norte, no Mato Grosso. "Todas as vezes em que fui libertado, enfrentava desemprego na cidade. Para não mendigar nas ruas catando papelão, prefiro morar na fazenda. Acho mais digno", afirma Fernando.
Desde Cabral
0 trabalho escravo que resiste no Brasil é semelhante ao regime que perdurou durante mais de três séculos e meio no país. A escravidão se instalou aqui desde a chegada de Pedro Álvares Cabral, em 1500.Hoje, a crueldade prevalece, mas se disfarça por trás de contratos que nada garantem aos trabalhadores subjugados.

Por trás do trabalho forçado
Nas terras mais distantes do Brasil ainda se mantêm trabalhadores privados de liberdade. Acabar com a escravidão hoje é um dos grandes desafios do governo brasileiro
De 1995 até o mês passado, 29.587 trabalhadores rurais foram libertados de fazendas.
40% dos trabalhadores resgatados da condição de escravo voltaram por conta própria para as fazendas, depois de libertados.
No total, 11.834 trabalhadores preferiram trabalhar na condição de escravo do que continuar desempregados
Somente em 2003, foram libertados 4.669 trabalhadores em todo Brasil
Pará, Mato Grosso, Maranhão e Bahia são os estados que mais escravizam trabalhadores
1.173 fazendas no Brasil mantinham funcionários em trabalhos forçados nos oito últimos anos
120 municípios brasileiros escravizam trabalhadores em propriedades rurais
Fonte: OIT e Ministério do Trabalho

Nas garras do gato
Passados 115 anos da abolição, o Brasil ainda parece distante de acabar de fato com o trabalho forçado no país. Veja abaixo como brasileiros são escravizados
O agente encarregado de recrutar trabalhadores rurais nas cidades do interior é conhecido como gato. Ele recruta através de rádio comunitária pessoas que queiram trabalharem outros estados. Na maioria das vezes, a oferta de emprego é modesta
0 gato recebe vários candidatos e seleciona uma um. Geralmente são escolhidos homens adultos fortes com idade entre 19 e 30 anos. 0 que atrai os desempregados é a oferta de emprego e a promessa de casa e comida
Para transportar os recrutados da cidade para a fazenda, geralmente é alugado um ônibus ou caminhão. Os trabalhadores são transportados durante até três dias por estradas. Quase sempre eles são arregimentados num estado e levados para trabalharem outro
Ao desembarcarem na fazenda, os trabalhadores não têm noção do local onde estão. Para iniciar o trabalho, eles recebem moto-serras e outros instrumentos. Geralmente recebem ordem de desmatar a floresta para fazer pasto
0 curioso nessa relação de trabalho é a dívida que o trabalhador tem com o patrão. Para operar com a moto-serra, ele tem de pagar R$ 5 por dia. Para dormir no barracão, paga mais R$ 30 por mês. Cada prato de comida custa R$ 7. No final do mês, o trabalhador não recebe nada porque é descontada a dívida
Para sair do 'emprego", o trabalhador tem de pagar o que deve. Sem dinheiro, já que não recebe nada, ele fica impedido de sair Para não fugir, eles são vigiados por jagunços. 0 cerceamento do direito de ir e vir e a dependência do patrão pelo trabalhador são o que caracteriza a atividade como trabalho escravo
Depois deflagrados pela Delegacia do Trabalho, os fazendeiros são obrigados a pagar em dinheiro todos os direitos trabalhistas dos empregados, além de assinara carteira de trabalho de cada um. Em seguida, o próprio trabalhador paga o transporte de volta para a cidade de origem
0 que mais surpreende os técnicos do Ministério do Trabalho é que nem todos os trabalhadores querem voltar para casa. Depois de receberem o dinheiro, muitos deles pedem para voltar à fazenda

Operação de resgate
Ministério do Trabalho e OIT vão desenvolver programa com o objetivo de empregar lavradores que forem libertados do regime escravo. Piauí e Maranhão serão os dois primeiros estados beneficiados pelo projeto
Para tentar evitar que o trabalhador libertado volte para as senzalas, o Ministério do Trabalho vai criar em 2004 cooperativas de ex-escravos no Piauí, Pará e Maranhão, que são os três estados que mais mantém brasileiros sob o regime de escravidão.
A reincidência no trabalho escravo também levou a Organização Internacional do Trabalho (OIT) a desenvolver dois projetos pilotos para tentar colocar trabalhadores libertados da escravidão no mercado de trabalho em 2004.
Os dois primeiros estados a serem beneficiados serão Piauí e Maranhão. 0 projeto será desenvolvido em parceria com o Ministério do Trabalho. "A gente descobriu que, mesmo depois de libertados, os trabalhadores ficavam em pensões próximas das fazendas e eram levados de volta", denuncia Patrícia Audi, coordenadora nacional do programa da OIT que combate o trabalho forçado.
O ministro do Trabalho e Emprego, Jaques Wagner, classifica o trabalho escravo como uma vergonha nacional. Para amenizar o problema, ele garante que o governo vai continuar a divulgação das listas de fazendeiros que foram flagrados com trabalhadores escravos.
No início do mês, 40 trabalhadores foram libertados da fazenda Nossa Senhora Aparecida, em Goianésia, sudoeste do Pará, por técnicos do Ministério do Trabalho. Eles trabalhavam desmatando a floresta sob a vigília de jagunços armados. Treze deles já haviam sido libertados outras vezes pelo Grupo Móvel do ministério. "Essa vergonha vai acabar", promete Jaques Wagner.
No lançamento da campanha de erradicação do trabalho escravo, ocorrido no mês passado, no Pará, a dona-decasa Carmelita do Socorro Costa, 45 anos, era um exemplo fiel de como o trabalho escravo destrói famílias.
Quando soube que o Ministério do Trabalho estava no, município de Redenção, Carmelita correu pra lá. Ela está em busca do marido, que foi levado para uma fazenda há seis meses e até agora não voltou para casa.
"No ano passado, ele era escravo numa fazenda e foi solto na Bahia. Chegou em casa com R$ 850, me deu para comprar comida e saiu para trabalhar de novo", relata Carmelita. Onde ele está agora? "Não sei", reponde. Ele está bem? "Não sei", repete. Quando ele volta? "Também não sei", diz com os olhos úmidos. (UC)

Entrevista: Lélio Bentes

Quando o ser humano vale menos que um boi

0 ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Lélio Bentes, 38 anos, conhece como poucos os meandros do trabalho escravo no Brasil. Desde que foi lançada a campanha nacional de erradicação da mão-de-obra forçada, ele visita os confins do Brasil para entender como se dá o regime de trabalho injusto que resiste à modernidade. Bentes é um dos maiores defensores da criação de varas específicas para julgar denúncias de trabalho escravo. A primeira será instalada em Redenção.

Correio Brasiliense - Por que é difícil combater o trabalho escravo no Brasil?

Lélio Bentes - A dificuldade ocorre principalmente porque se trata de um fenômeno que está vinculado a uma cultura de exploração, uma cultura que é favorecida pelas dimensões continentais do país. E uma cultura favorecida, sobretudo, por um sentimento de impunidade que ainda grassa entre os infratores. Por isso, a mobilização da sociedade é fundamental e, obviamente, o aparelhamento dos órgãos de repressão para acabar com essa cultura de que o mais forte pode explorar o mais fraco impunemente.

Correio - Segundo o Ministério do ~alho e Emprego, 40% de todos os trabalhadores que são libertados da escravidão são reincidentes, ou seja, foram libertados mais de uma vez. Na sua opinião, por que esse índice é tão alto?

Bentes - A reincidência mostra que esses trabalhadores não têm alternativa de sobrevivência. Eles são obrigados a aceitar qualquer trabalho que lhe é oferecido. Nós sabemos que, muitas vezes, a contratação desses trabalhadores vem acompanhada de um pequeno adiantamento que já fica com a família na localidade onde eles são contratados. Muitas vezes, o trabalhador é forçado á optar entre essa situação, até sabendo de que vai ser vítima do trabalho escravo.

Correio -Qual a semelhança que o senhor vê entre a escravidão contemporânea e a escravidão abolida em 1888?

Bentes -O que nós verificamos é que os mecanismos de escravização se sofisticaram. Essa escravidão pré-abolição era manifesta. Hoje, o mecanismo se sofisticou porque procura se dar a essa situação de escravidão uma aparência de contrato, algumas pessoas usam o argumento de que "se ele reincidiu, é porque quis trabalhar; se ele sabia que seria escravizado, não há crime". Muito ao contrário. 0 direito à liberdade é fundamental e irrenunciável.

Correio - Então, na essência, a prática é a mesma?

Bentes - Na essência, sã rigorosamente as mesmas. mentalidade mudou muito pouco. A delegada regional d Pará, Socorro Gomes, me contou que um desses trabalha dores escravos, fugindo da fazenda e perseguido pelos jagunços, salvou a vida porque se escondeu no meio do gado.
O fazendeiro disse: "Parem de atirar porque vocês podem' matar um boi desses e vão m dar um prejuízo enorme". Então, o valor do ser humano, n escala de prioridades dessa pessoas, é infinitamente inferior ao valor de um animal.

CB, 14/12/2003, Brasil, p. 16-17

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.