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13 mil famílias deixam lista da miséria após extra de R$ 2

FSP, Poder, p. A8-A9
03 de Fev de 2013

13 mil famílias deixam lista da miséria após extra de R$ 2
Aporte é feito por programa do governo federal que visa erradicar pobreza extrema
Efeito estatístico se dá porque piso de R$ 70 per capita é superado; economistas dizem que não é só renda que conta

DANIEL CARVALHO
ENVIADO ESPECIAL AO PIAUÍ

"Com R$ 2 não dá para comprar nem meio quilo de frango. Comprei um coco hoje com R$ 2", afirma Luiza Sousa, 51, desempregada em Demerval Lobão, no Piauí.
Para o governo, ela e seus quatro filhos deixaram de ser "miseráveis" no fim de 2012, quando passaram a receber, cada um, R$ 2 mensais do programa Brasil Carinhoso.
Com esse programa, famílias já beneficiadas pelo Bolsa Família recebem um complemento financeiro para tecnicamente deixar a miséria. Segundo os critérios do governo, uma família com renda mensal de até R$ 70 por pessoa é "miserável".
Luiza já recebia R$ 140 do Bolsa Família. No final do ano passado, os R$ 2 do Brasil Carinhoso foram somados ao benefício, a doações e ao que ela, como lavadeira, e o filho mais velho, como caseiro, conseguem com bicos.
Com esses R$ 2 extras, Luiza e seus filhos passaram a engrossar a estatística oficial, que comemora 16,4 milhões de "ex-miseráveis" apenas nos últimos sete meses.
Próximo à Luiza vivem Joelina Maria de Sousa, 31, e a filha Jucélia, 7, que também receberam R$ 2 para sair oficialmente da miséria.
Para o governo, por exemplo, um casal com três crianças com renda mensal de R$ 350 é "miserável" (R$ 70 por pessoa). Com mais R$ 2 do Brasil Carinhoso, atinge R$ 352 e deixa oficialmente a "miséria" (com renda de R$ 70,40 por pessoa).
Segundo dados do programa obtidos pela Folha com base na Lei de Acesso à Informação, as piauienses Luiza e Joelina e outras 13,1 mil famílias em todo o país recebem R$ 2 por mês para integrar essa estatística que ajuda Dilma a chegar perto de sua promessa: acabar com essa "miséria" até o "início de 2014".
O programa foi lançado em meados do ano passado com o objetivo de erradicar a pobreza extrema.
"Quando a gente tem essa preocupação de retirar da miséria (...) estamos não só praticando um ato moral, um ato ético, mas, também, nós estamos olhando para o futuro do Brasil", disse a presidente Dilma em recente discurso em Teresina (PI).
Complementar ao Bolsa Família, o benefício do Brasil Carinhoso varia de R$ 2 a R$ 1.140, sendo que esse valor máximo é pago a apenas uma única família, segundo mostra documento do programa ao qual a reportagem teve acesso. O valor médio do complemento é de R$ 86.
Em média, uma família beneficiada pelo Bolsa Família e pelo Brasil Carinhoso recebe R$ 245 ao mês do governo.
META
De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social, há ainda cerca de 600 mil famílias na extrema pobreza em todo o país. Antes do lançamento do Bolsa Família, em 2003, havia 8,5 milhões de famílias nessa situação, segundo a pasta.
Economistas ouvidos pela Folha dizem que é preciso levar em consideração outros aspectos, além da renda da família, para se falar em erradicação da miséria.
"A saída da pobreza, efetivamente, é quando a pessoa tem condições de moradia, vestuário, educação, saúde e emprego para poder se autofinanciar", diz Socorro Lira, coordenadora do doutorado em Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade Federal do Piauí (UFPI).
Jaíra Alcobaça, também da UFPI, afirma que iniciativas que trazem algum tipo de melhoria de vida são válidas, mas precisam ser encaradas como políticas emergenciais e também deveriam levar em conta as diferenças regionais.
As avaliações remetem à piauiense Luíza. Ela recebeu a Folha na casa de tijolos em que vive há dois anos. O imóvel foi erguido pelo irmão após a casa de taipa desmoronar.
Na cozinha, ela tinha pão, dois cocos e um pouco de arroz. "Só não fico sem porque como na casa da minha mãe", diz Luiza.

Ex-miseráveis vivem de maneira precária, mas têm o que comer

DO ENVIADO AO PIAUÍ

Famílias que nos últimos meses deixaram a miséria com o complemento do Brasil Carinhoso enaltecem Dilma, Lula e o Bolsa Família, enquanto ainda vivem sob uma estrutura precária, sem emprego, porém com mais comida no prato.
Esse foi o quadro encontrado pela Folha há duas semanas em diferentes municípios do Piauí, onde conversou com famílias que tecnicamente são ex-miseráveis.
Antônia Pereira Galvão, 35, dona de casa em Joaquim Pires (a 229 km de Teresina), recebeu um complemento de R$ 28 no Bolsa Família, que agora atingiu R$ 162 mensais e ajuda a sustentar o marido e os três filhos.
Ela diz que o aumento é "ajuda que Deus dá" e que o utiliza para comprar comida. A seca impede o marido de fazer bicos na roça.
Apesar de dizer que o Bolsa Família melhorou a vida dela "100%", Antônia ainda passa por dificuldades. "Leite para as crianças às vezes falta", conta ela, que pretende votar em Dilma, caso a petista dispute a reeleição em 2014.
Na casa ao lado, o agricultor Antônio da Conceição Sousa, 39, a mulher e os sete filhos receberam complemento de R$ 224, chegando a R$ 492 mensais de ajuda federal."O dinheiro do Bolsa Família serviu para botar comida em casa, comprar o material dos meninos", declara.
A 23 km dali fica o município de Murici dos Portelas, onde, segundo o IBGE, 48,2% dos 8.464 habitantes vivem na pobreza extrema.
Francisca Oliveira, 36, o marido e sete filhos vivem em casa de taipa e dormem em redes com galinhas.
A comida, que Francisca diz não faltar depois que o Bolsa Família pulou de R$ 322 para R$ 422, é feita em um arremedo de fogão de barro. O ambiente cheira a urina.
Francisca era agricultora, mas decidiu parar de trabalhar após o aumento no benefício. Questionada pela reportagem, disse: "Acho que não [sou mais miserável]. Melhorou muito minha vida".
(DANIEL CARVALHO)

Outro lado
Programas são bem-sucedidos e estão em fase de 'consolidação', diz ministério

DO ENVIADO AO PIAUÍ

Programas de transferência de renda como o Bolsa Família e o seu complemento, o Brasil Carinhoso, são bem-sucedidos, estão ajudando milhões de famílias a deixar a pobreza extrema e, de acordo com o governo federal, se encontram em fase de "consolidação". De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social, uma análise dos valores extremos de complemento de renda provoca uma avaliação distorcida da realidade.
O secretário nacional de Renda de Cidadania da pasta, Luís Henrique Paiva, afirma que o número de famílias que recebem R$ 2 e o de que recebem valores acima de R$ 500 é muito pequeno quando levado em consideração o total de 16,4 milhões de beneficiados pelo Brasil Carinhoso (veja mais informações no quadro acima).
O valor médio de transferência do Bolsa Família com o complemento do Brasil Carinhoso é de R$ 245.
O secretário afirma que, nos últimos dois anos, o governo Dilma Rousseff tomou uma série de medidas voltadas para "atacar" a miséria.
Paiva diz que o governo já alcançou resultados, como a redução pela metade da extrema pobreza na faixa contemplada pelo Brasil Carinhoso (famílias com crianças de até 15 anos).
"O momento é de consolidação desse conjunto de medidas", afirma o secretário.
SOMENTE RENDA
O critério adotado pelo governo para definir quem é miserável leva em consideração apenas a renda das famílias.
Para o ministério, outras carências, como acesso a saúde, educação e saneamento básico, por exemplo, estão ligadas à questão financeira.
O governo leva em consideração a linha de extrema pobreza que já era adotada pelo Bolsa Família e a de US$ 1,25 por dia, adotada pelo Banco Mundial.
Desde maio de 2011, quando Dilma definiu que famílias com renda per capita de até R$ 70 seriam o público-alvo do combate à miséria, o valor não foi corrigido.
No mesmo período, no entanto, os preços dos gêneros alimentícios aumentaram, em média, 12,45%, segundo cálculo da FGV realizado a pedido da Folha.
O governo afirma que um eventual reajuste dos benefícios não está em discussão no momento.
Segundo o secretário, mesmo após atingir uma renda per capita mensal de ao menos R$ 70,01 e assim deixar estatisticamente a miséria, a família não deixa de integrar outros benefícios.

Análise Linha da pobreza
Boa conta, sem truques, inclui mais parâmetros além da renda

LENA LAVINAS ESPECIAL PARA A FOLHA

Para 69,4% dos brasileiros, a linha de indigência fixada em R$ 70 mensais para identificar quem é a população miserável é de valor muito baixo. Proporção semelhante, 73,1%, julga que, se quiser, o governo tem meios de erradicar a miséria no Brasil.
Somos 64% a concordar que o benefício médio de R$ 130 mensais aos beneficiários do Bolsa Família é baixo, o que explica que só um terço da população com mais de 16 anos acredite que o Bolsa Família é eficaz em retirar muita gente da pobreza.
Tais números, retirados de levantamento nacional conduzido pelo Instituto de Economia da UFRJ e pelo Departamento de Economia da UFF em fins de 2012, revelam uma percepção sensível e precisa de como são tratados pobres e indigentes no Brasil.
Não é preciso muita conta para concluir que o Bolsa Família deveria ser mais efetivo na definição dos parâmetros para estimar a magnitude real e incômoda da miséria.
A sensibilidade do governo, talvez parcialmente amputada pelos cortes que ceifam o Orçamento da seguridade social e condenam o sistema de saúde pública, se mostra indiferente àquilo que salta aos olhos de quem mira a realidade brasileira mesmo sem grande expertise técnica. Com bom-senso apenas.
Os cortes fazem com que 50% dos domicílios brasileiros não disponham de água tratada e 35% não tenham saneamento adequado.
Segundo o IBGE, enquanto 7% da população pode ser considerada vulnerável exclusivamente por falta de renda, o percentual pula para 58,4% se forem adicionados outros déficits que não rendimentos monetários.
SEM ATUALIZAÇÃO
Desde 2009 o governo não atualiza a linha de indigência, que permanece em R$ 70 per capita mensais. Intocável também permanece a linha da pobreza.
Salários são atualizados, o salário mínimo igualmente, numa progressão que fomenta a redistribuição e reduz as desigualdades.
Os benefícios do INSS não escapam à regra da correção do poder de compra.
Mas, sem dúvida, manter o valor nominal da linha de indigência quando aumenta a renda média, e quando o IPCA acumulado entre janeiro de 2009 e dezembro de 2012 bate 24,53%, já é uma boa contribuição para reduzir o número e o percentual de indigentes do país. No automático.
Atualizada, a linha de indigência valeria hoje R$ 87,17, aumentando o contingente de miseráveis. Ainda assim, seria um valor muito baixo.
O Brasil é hoje um país de renda média alta, na rota das grandes mudanças estruturais. É tempo de voltar à discussão pendente sobre como definir com rigor qual o patamar mínimo de bem-estar que a nação solidariamente vai estabelecer.
LENA LAVINAS, doutora em economia, é professora associada do Instituto de Economia da UFRJ.

FSP, 03/02/2013, Poder, p. A8-A9

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/92011-13-mil-familias-deixam-lis…
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/92013-ex-miseraveis-vivem-de-man…
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/92017-programas-sao-bem-sucedido…
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/92019-boa-conta-sem-truques-incl…

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