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Vozes que Não se Calam - Évelin Hekeré: "a saída contra o preconceito são mulheres indígenas de resistência"

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Autor: Maria Fernanda Ribeiro
23 de Set de 2019

A educadora e feminista do povo Terena, do Mato Grosso do Sul, fala sobre política, machismo, violência e como cria sozinha o filho Ma'anéti (Foto: Arquivo pessoal)

Se o assunto é feminismo indígena, você já deve ter ouvido pelo menos falar de Évelin Hekeré. Indígena do povo Terena da Aldeia Aldeinha no município de Anastácio, em Mato Grosso do Sul, ela é uma das protagonistas do movimento de mulheres, não só na luta pela igualdade dentro das aldeias, mas também para atuar nas linhas de frente das principais pautas indígenas.

Educadora, é a responsável por representar as mulheres da comunidade na Assembleia de Mulheres Terena e também é membro do Conselho do Povo Terena - organização indígena tradicional constituída por caciques, lideranças, anciões, mulheres, professores e juventude terena - e enfrenta o preconceito e o machismo presente e enraizado na cultura do próprio povo.

"O movimento indígena de mulheres se diferencia porque lutamos pelas causas tradicionais e também para vencer a desigualdade das leis e dos costumes gradativamente, combatendo situações injustas pela via institucional e conquistando cada vez mais representatividade política e econômica por meio das ações individuais", afirma Évelin.

Em 2017, ela concluiu o mestrado em Educação na Universidade Católica Dom Bosco, com uma dissertação sobre o papel da escola no processo de revitalização da língua Terena na aldeia Aldeinha. O objetivo era pensar as contribuições da instituição escolar à comunidade, em um cenário de intenso contato com a sociedade envolvente e de luta para que seja consolidado o processo de ensino e aprendizagem da língua Terena para as próximas gerações.

Para ela, atual conjuntura política está retirando gradativamente os direitos indígenas e alimentado o preconceito contra os povos originários. Na terceira entrevista da série Vozes que Não se Calam, ela fala sobre o feminismo indígena, a luta pelo território, a importância da demarcação de terras e como resistir contra as políticas (anti) indigenistas do presidente Jair Bolsonaro. "Nossa luta não é mais no arco-e-flecha, muito menos na borduna, agora é no papel e na caneta. Em tempos em que os governantes não indígenas destilam preconceito de todas as formas possíveis, a saída é sermos mulheres indígenas de resistência, existência e persistência".

Educação indígena

Sou indígena Terena da Aldeia Aldeinha no município de Anastácio, Mato Grosso do Sul. Nascida e criada nesta comunidade, concluí os estudos na "Escola Estadual Indígena Guilhermina da Silva" no ano de 2007. Em seguida, ingressei na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, no curso de Graduação em Geografia com habilitação em Licenciatura.

Durante este período, participei de encontros de acadêmicos indígenas e pude apresentar trabalhos a respeito da cultura e da história da etnia Terena. Compreendi assim a importância de prosseguir com os meus estudos, com o objetivo de retornar à minha comunidade e de atuar na valorização da cultura Terena por meio do trabalho com crianças e jovens. Também foi neste período que passei a participar do movimento indígena, tanto como jovem liderança no Conselho do Povo Terena, quanto nos fóruns de educação escolar indígena nos âmbitos estadual e nacional.

Represento a terceira geração de professores em minha família. Meus avós maternos foram pioneiros em nosso município, ministrando aulas para indígenas e não indígenas. Desde 2008, atuo como professora de geografia na mesma escola em que concluí os meus estudos, e sou profissional contratada da Secretaria de Educação do Município de Anastácio no Ensino fundamental, e na "Escola Estadual Indígena Guilhermina da Silva".

Território Terena

A comunidade Terena da Aldeinha se encontra em processo de resistência contra a perda de novas áreas de seu território original, uma vez que o crescimento do município no entorno da comunidade provocou o seu sufocamento e a concentração da comunidade em uma área de apenas quatro hectares. Nossa comunidade está em litígio com não indígenas que possuem títulos de propriedade de lotes na única área de lazer que dispomos, o que nos mobilizou a buscar apoio do poder público para que não apenas esta área, mas toda a Aldeinha seja definitivamente reconhecida como território tradicionalmente ocupado pelo povo indígena Terena em Anastácio. A minha comunidade sofre com o passar dos anos, devido a sua localização geográfica, mas não é Aldeinha que está em Anastacio e sim Anastacio que sufoca minha comunidade, pois bem antes de ser emancipada como município Aldeinha já existia.

A luta do feminismo

Sou uma mulher feminista e isso me faz refletir e olhar para trás e ver todas as dificuldades que a sociedade me impôs, defendendo nosso espaço legítimo que nos foi tomado. O feminismo indígena é ligado com as batalhas diárias, lutamos pela permanência de nossos direitos e direitos de nossos filhos, comunidade e anciãs.

O movimento indígena de mulheres se diferencia porque lutamos pelas causas tradicionais e também nas demais causas. Nasci mulher indígena e não gosto de me vitimizar, mas se não ocuparmos esse espaço na sociedade cada vez mais nossa presença será dizimada e com o passar dos tempos não existirá lideranças femininas nas áreas públicas as quais a sociedade nos oferece.

Dentro do Conselho das Mulheres Terena, procuramos discutir todas as demandas por igual porque todos os temas são de suma importância para as mulheres e as comunidades, não tem como discutir saúde da mulher (câncer, diabete, gestação), sem discutir cuidados tradicionais com nossas anciãs.

Mulheres na aldeia

O interesse em lutar pelo direito das mulheres começou desde muito cedo na minha família na Aldeia Aldeinha, pois nela a maioria são mulheres e consequentemente somos o alicerce da casa, e na comunidade não é muito diferente, pois a maioria das lideranças indígenas são mulheres e professoras. Ainda existe preconceito dos próprios parentes indígenas em aceitar que uma mulher pode tomar a frente de uma mesa de movimento indígena. É muito forte essa presença do machismo entre os homens Terena. No movimento indígena penso que não quero ser mais ou menos liderança que um homem, caminhar juntos lado a lado e fortalecer esse elo, desconstruir alguns estereótipos que nos rotulam a muitos e muitos anos, a força do nosso povo, nossa essência, precisamos de homem sim, mas isso vai muito além, não apenas para continuidade de nossa comunidade, mas sim de um companheiro de um guerreiro que acrescente que some.

Acredito que em todos os movimentos feministas as pautas sejam bem parecidas, pois só mudamos a cor da pele, mas todas temos o mesmo sangue e lutamos todas por território, por melhorias na saúde, educação. Mas a nossa luta é no longo prazo e o que buscamos aqui não é para nós, mas sim para nossos filhos e netos. Nosso objetivo é que as próximas gerações não sofram tanto como nós e com as mesmas angústias e lamentações impostas pela sociedade indígena e não indígena.
Machismo indígena

Hoje, no estado de Mato Grosso do Sul, esses impactos têm diminuído pelo nosso protagonismo de escrever nossa própria trajetória, mas em algumas comunidades ainda existe esse reflexo, onde muitas mulheres ainda não têm fala e continuam sendo silenciadas em suas casas, destinadas apenas a cuidar da família.

O machismo entre os homens Terena na maioria das vezes sufoca de certa forma as "patrícias" em suas tarefas domésticas, muitas não saem das comunidades, não podem estudar e quando muitas conseguem sair para se qualificar o marido trai, coloca outra dentro de casa, e muitos acham correto essa forma, a qual eu repudio. O machismo afeta de várias formas tirando a independência, o poder de trabalhar e ter seu próprio dinheiro para que ela não dependa financeiramente dele. Não estudar para que não conheça pessoas diferentes e que tenha conhecimento a mais que ele. Sem contar as agressões físicas e psicológicas por sermos consideradas sexo frágil.

Os homens podem sim participar nos apoiando nas campanhas contra nossa descriminação pelas lutas e dando visibilidade ao movimento e ao protagonismo da mulher.

Violência histórica

A violência sempre existiu e a primeira foi há 519 anos, quando tomaram nossas crianças de nós, quando os bandeirantes e descendentes diziam "ela foi pega no laço". Sabe por que éramos pegas a laço? Porque corríamos para as matas para proteger nossos filhos, para fugir dos abusos sexuais, da escravidão e não porque éramos selvagens. A força da mulher indígena vem desde quando corríamos para o mato com crianças em nosso ventre, em nosso colo, para dar continuidade ao nosso povo. Vem das anciãs que lutaram para que eu pudesse usufruir desses benefícios a qual uso hoje, para continuar a manter nossos diretos que são assegurados por lei, mas que dia após dia estão sendo retirados por essa gestão presidenciável a qual não representa os povos indígenas.
Mãe solteira

Casei aos 24 anos de idade e na cultura do meu povo, para os anciãos, já casei velha, mas quando Gustavo (Ma'anéti) tinha sete anos o pai faleceu devido a um enfarto cardiovascular. Desde então assumi a responsabilidade de pai e mãe e no mesmo ano meu irmão mais velho veio a óbito também pela mesma causa e alguns meses depois o patriarca da família também "tombou". E assim assumi as responsabilidades que meu irmão deixou. Hoje Ma'anéti tem dez anos e continuo atuando no movimento indígena mais forte como nunca porque a única certeza que deixarei para ele é a continuidade das lutas pelo nosso povo Terena.

Por anos estamos fazendo frente contra as imposições do governo golpista e hoje a atual conjuntura desse governo de "direita" só tem nos dados retrocesso, nossos direitos estão sendo retirados gradativamente, nossa luta não é mais no arco e flecha e muito menos na borduna, é no papel e na caneta.

Com a entrada desse inimigo e as exposições dele (e de sua prole) via redes sociais, cresceu o preconceito. Aqui no meu estado, que é ruralista, tem uma bancada de políticos que se puder mandar matar nossas lideranças eles mandam. Temos vigiado mais onde andamos, com quem falamos, pois somos lideranças e sabem de nossos passos, tenho que tomar cuidado ao usar meus trajes tradicionais, brincos, colar, pois as pessoas olham com um olhar de discriminação. Vigiar é a melhor forma, mas nunca se calar, lutar como uma indígena sempre, como mulher, como mãe, como guerreira... Que eu nasci Hekeré.

Esta reportagem de Maria Fernanda Ribeiro faz parte da série Vozes que Não se Calam, que realiza entrevistas exclusivas com lideranças indígenas, quilombolas, ribeirinhas, trabalhadoras rurais, defensoras, entre outras mulheres, sobre temas como: lutas na defesa da igualdade de gênero; equidade de direitos; direitos humanos; feminismo; machismo e combate à violência e o feminicídio. Leia a primeira matéria com Alessandra Korap, do povo Munduruku.

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