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VIOLÊNCIA, MEIO AMBIENTE E OS ÍNDIOS CINTA LARGA

Jean Pierre Leroy
Autor: Jean Pierre Leroy
17 de Dez de 2003

Se no passado recente os 2,7 milhões de hectares que compõem as Terras Indígenas dos Cinta Larga, no noroeste do Mato Grosso e Rondônia, foram degradados pela exploração ilegal de madeiras, hoje a ameaça sobre essa vasta região sul amazônica também vem da pressão pela exploração de diamantes. Abrigando uma das maiores jazidas de diamante do mundo, a região da TI Roosevelt vive sob um clima tenso de um conflito iminente. Milhares de garimpeiros podem reinvadir o território dos índios, mas o que estão em jogo são interesses que extrapolam o âmbito local, como apontado pelas investigações da Operação Anaconda. Na disputa pela apropriação desses recursos naturais, o povo indígena Cinta Larga vê seu território e sua identidade ameaçados e pedem ao governo federal "garantia da integridade de vida, garantia ambiental e patrimonial".

A constatação foi feita em visita que fiz à região entre os dias 16 e 18 de novembro, na qualidade de Relator Nacional para o Direito Humano ao Meio Ambiente, acompanhado da Subprocuradora Geral da República, Dra. Ela Wiecko Volkmer de Castilho, de representantes de entidades indígenas e da Funai e da indigenista Maria Inês S. Hargreaves. O relatório da visita está sendo apresentado às autoridades federais e estaduais neste dia 09 de dezembro.

Reduzidos a menos de um terço de sua população em 30 anos de contato com o homem branco, a violência tem sido uma constante na vida dos Cinta Larga. As pressões pela reabertura do garimpo são intensas, a ponto de o governador de Rondônia procurar um acordo com uma das associações que representa os índios; de um grupo de 60 garimpeiros armados bloquearem a rodovia BR 364 ameaçando invadirem e retomarem o garimpo; e de um funcionário da Companhia de Mineração do Estado de Rondônia (CMR) - que tem como presidente a chefe de gabinete do governador - ser flagrado no interior da Terra Indígena buscando negociar com os índios.

Até mesmo as instituições ameaçam os índios. A "CPI da garimpagem", instaurada pela Assembléia Legislativa de Rondônia para investigar o conflito, terminou em tempo recorde e sem ouvir os Cinta Larga. O Judiciário estadual decretou, em novembro passado, a prisão preventiva de cinco jovens índios acusados de matarem garimpeiros no interior da TI (jurisdição federal), com base no testemunho de uma única pessoa - e garimpeiro. A precária assistência jurídica aos índios (da Funai ou da Procuradoria da República de Rondônia) os coloca não só distantes do Judiciário como longe de qualquer possibilidade de buscarem a realização de justiça. O delegado Espigão d´Oeste teria um motor no interior da reserva, parado, segundo os índios, por não terem aceitado sua proposta de trabalhar na lavra. A Operação Anaconda indicou Rondônia como um dos Estados em que uma das maiores organizações criminosas do país teria ramificações. Ela apontou conexões com os envolvidos com os diamantes das TI's Cinta Larga, envolvendo inclusive delegados federais no Estado.

A imprensa local contribui com o clima de terror, divulgando unicamente o posicionamento dos garimpeiros e suas entidades representativas, inclusive fatos cuja falsidade foi constatada pelo relator: o cruel assassinato de uma criança pelos índios, o que foi negado em depoimento da própria mãe. Hoje, os jornais cobram com veemência a prisão dos "índios assassinos".

Os Cinta Larga sentem-se seguros apenas no interior das reservas. Com medo das ameaças externas e dos diversos atentados que já sofreram, como narrados no relatório, os índios evitam ir até a cidade e as mães estão retirando seus filhos da escola. Isso tem comprometido ainda mais o já precário acesso aos sistemas de saúde e educação. Está se falando aqui de um povo sitiado, impedido de exercer a sua cidadania brasileira; de um povo vilipendiado, injuriado, caluniado dia após dia pela imprensa, por políticos, por entidades de garimpeiros; de um povo vítima de um racismo prepotente e estúpido. É de se admirar que, nessas condições, consiga recuperar e manter a sua dignidade e a sua identidade.

É preciso ressaltar que a exploração mineral em Terras Indígenas por não índios é ilegal por não existir lei complementar que disponha sobre o assunto, como previsto na Constituição Federal. Além disso, há diversos tratados internacionais que, como a própria Constituição, protegem direitos dos povos indígenas, mas têm sido violados pelo Estado Brasileiro, podendo ensejar denúncias do país a organismos internacionais como a ONU e a OEA.

Há uma pressão generalizada na Amazônia brasileira sobre as terras públicas, as diferentes áreas de conservação e reservas indígenas por parte de grileiros, madeireiros, garimpeiros e fazendeiros, apoiados por grupos políticos e governos locais, levando a um recrudescimento do desmatamento na região. O caso dos Cinta Larga é um reflexo dessa pressão e mostra o quanto é frágil a situação das populações tradicionais da região. A madeira continua sendo retirada da região em volumes absurdos (estimativas apontam, no mínimo, 300 mil m3/ano).

A maior ameaça que pesa sobre esse povo e seu território, no entanto, é a do diamante. O tardio começo de implementação do Plano Emergencial Cinta Larga que foi elaborado para dar suporte à proteção das Terras Indígenas levou os índios a reabrirem o garimpo e organizarem a lavra superficial de diamantes, para sustentarem suas aldeias. Há a ameaça ambiental, pois não contam com assessoria técnica qualificada e repetem o que assimilaram dos garimpeiros, provocando assim o assoreamento do igarapé, turbidez da água a jusante e a degradação ambiental, embora o impacto seja bem mais reduzido pela baixa intensidade da exploração atual e a retirada dos brancos. Sobretudo, há a ameaça à sua integridade, como pessoas e como povo. Trata-se da região com maior diversidade socioambiental da Amazônia brasileira, aí considerada a maior diversidade antropológica e maior densidade lingüística, com todas os troncos e famílias lingüísticas representados.

O relatório traz um diagnóstico e recomendações. A Funai tem conseguido, por meio do Grupo Tarefa e mesmo com seus escassos recursos, fazer com que os Cinta Larga recuperem sua auto estima e sua identidade cultural, solapadas após o contato com o homem branco. Para isso, retiraram os invasores e passaram a construir, com os índios, a implementação dos projetos do Plano Emergencial (rebanho bovino, plantações e piscicultura). O problema é que, com o repasse tardio, pelo Ministério da Justiça, de apenas parte dos recursos previstos, a ação ainda é precária e não conseguiu implementar as ações de fundo previstas no Plano, como diagnóstico de danos ambientais, a aplicação dos bens apreendidos em favor dos índios e a elaboração de um plano de médio e longo prazo que permita aos Cinta Larga escolherem suas prioridades para o futuro. Hoje, os projetos do Plano precisariam ser melhorados e adequados à cultura indígena, incluindo a definição de objetivos e indicadores claros.

Os acontecimentos dos últimos meses mostraram a fragilidade do avanço conseguido. A solução passaria pela atuação das diversas esferas do poder público, mas principalmente da atuação urgente e eficaz do Governo Federal, em três eixos: garantia de segurança pública e acesso à Justiça; regularização da exploração dos recursos naturais e indenizações aos Cinta Larga; e implementação de políticas para efetivação de direitos humanos econômicos, sociais e culturais.

Uma providência central seria que a Procuradoria da República em Rondônia (MP Federal) e a Polícia Federal assumissem efetivamente as investigações dos crimes praticados no interior das Terras Indígenas e a proteção dos direitos dos índios, em face dos abusos praticados pelas instituições estaduais. A assistência jurídica pela Funai e pelo MPF é urgente. O Governo Federal deveria ter clara noção de que não cabem alegações sobre limitações orçamentárias quando está em risco a vida de pessoas, em especial de todo um povo indígena. A Polícia Federal, o Ministério Público Federal e a Funai precisam de mais recursos para melhor se estruturarem e defenderem os direitos indígenas e o patrimônio da União.

Os índios demonstram preocupação "com o futuro dos (seus) netos" e querem implementar projetos sustentáveis para uso dos recursos naturais, incluindo a extração de diamantes. Para isso, precisam de autorização do poder público federal que deveria ser dada mediante providências interministeriais envolvendo Ministério da Justiça e Funai, Ministério de Minas e Energia e Departamento Nacional de Produção Mineral e Ministério do Meio Ambiente e Ibama. A compra dos diamantes extraídos seria assegurada com a instalação de um posto da Caixa Econômica Federal. Esse conjunto de medidas garantiria o respeito ao território indígena, com a exclusividade da lavra pelos índios, e tiraria os Cinta Larga da ilegalidade.

A melhoria dos sistemas de educação e saúde dirigidos aos Cinta Larga, bem como assistência técnica, inventário e manejo de recursos naturais para capacitar os índios e suas associações em atividades legais e ambientalmente sustentáveis deveriam integrar políticas públicas de promoção de direitos humanos econômicos, sociais e culturais. A aplicação da totalidade dos recursos aprovados para custeio e investimentos previstos no Plano Emergencial Cinta Larga é fundamental, mas não só. Ao Governo Federal também cabe perceber que garantir os direitos dos índios é também proteger uma das regiões mais ricas da Amazônia brasileira. O problema é socioambiental: o meio ambiente sadio depende de condições para que os índios desenvolvam sua cultura, usufruindo seu território e os bens nele existentes.

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