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Vida à margem do mundo

O Globo, Sociedade, p. 43
23 de Nov de 2014

Vida à margem do mundo
Nas vilas ribeirinhas do Amazonas, 37 mil pessoas carecem de médicos e saneamento

RENAN FRANÇA renan. franca@ oglobo.com. br

Em São José do Cuiú-Cuiú, a 742 quilômetros de Manaus, no Amazonas, não há médicos. Quem precisa de ajuda vai à casa da curandeira Raimunda da Silva, 68 anos, filha de índios da etnia Miranha. Doenças como malária, Chagas ou pneumonia, segundo ela, podem ser curadas com suas preces. Sentada em uma cadeira na casa de cômodo único onde mora, Raimunda diz que nunca imaginou que teria tais poderes, herdados do pai já falecido. Magra, com os ossinhos próximos ao pescoço bem à mostra, ela conta que venceu as dores crônicas na coluna com suas orações, mesmo após um médico dizer que seu caso só poderia se resolver com cirurgia. Nos últimos cinco anos, a curandeira já teria tratado de mais de mil doenças.
- É graças ao meu poder que muita gente não precisa ir para cidade procurar um médico - afirma Raimunda.
Cuiú-Cuiú é apenas uma das cerca de 350 comunidades ribeirinhas do Amazonas com pouco ou nenhum acesso a cuidados médicos. Segundo levantamento feito pelo Projeto Povos Ribeirinhos, há 37 mil moradores vivendo isolados, à beira dos rios que cortam o maior estado brasileiro em área territorial. No mês passado, uma equipe do GLOBO visitou, a bordo de um navio da Marinha do Brasil que presta atendimento médico e odontológico a essas pessoas, 17 comunidades no estado do Amazonas para saber como é o cotidiano de moradores que vivem na margem do rio e longe da civilização.
ACESSO DIFÍCIL
Grande parte das comunidades ribeirinhas tem origem no ciclo da borracha, no final do século XIX, quando cerca de meio milhão de pessoas, a maioria nordestinos fugindo da seca, mudaram-se para a região Norte, para trabalhar na extração do látex das seringueiras. A maioria preferiu a proximidade com os rios para levantar palafitas. Mas o ciclo da borracha entrou em decadência, e muitos deixaram a região. Alguns povoados cresceram e se tornaram municípios. Outros, menores, não passaram de aldeias isoladas que resistem até hoje - sempre à beira dos rios.
Quando há profissionais de saúde disponíveis na região, o difícil acesso impede que cheguem até a comunidade. Alguns povoados ficam tão entranhados na floresta que apenas canoas motorizadas passam pelos igarapés, ziguezagueando entre as árvores. Não é raro encontrar lugares que nunca receberam um médico. Nas comunidades, geralmente, há apenas um agente de saúde, que é um morador treinado pela prefeitura mais próxima, mas que não está apto a fazer diagnósticos. Sua função é orientar moradores, distribuir cápsulas de cloro para limpar a água do Rio e tentar viabilizar a marcação de consultas médicas e odontológicas.
- O agente de saúde é importante, mas pode fazer muito pouco. Tentamos, no mínimo, uma vez por ano, visitar cada comunidade ribeirinha amazônica - diz o comandante da Marinha do Brasil Caetano Quinaia, responsável por comandar a missão de assistência hospitalar no Amazonas. - O objetivo da Marinha é tentar atender a uma população que não tem condições de ir a um médico. Por mais estranho que possa parecer, nem sempre o ribeirinho aceita nossos medicamentos. Eles pensam que podem fazer mal.
A falta de saneamento básico é outro problema grave. A 120 quilômetros do município de Tefé, a comunidade do Jubará tem cenário de insalubridade. Não há sequer indício de coleta de lixo. Em uma rápida caminhada pelas 19 casas da comunidade, é possível ver crianças urinando da janela da residência onde moram. Os moradores não querem saber se a água que bebem está própria para o consumo.
- Eu converso sobre a importância de ferver a água, mas não adianta. Nem quando o filho apresenta sinais de verminose os pais mudam o comportamento. A mobilização só ocorre quando o gerador elétrico quebra, como nesta semana, e ninguém pode assistir à novela - lamenta o líder da comunidade, José Sobrinho.
ORGANIZAÇÃO COMUNITÁRIA
Mil metros à frente de Jubará, no entanto, encontramos uma situação radicalmente oposta. Com água encanada e o gerador elétrico funcionando durante cinco horas no período noturno, a Comunidade São Pedro se destaca. Desde 2012, os moradores montaram uma organização comunitária com presidentes e diretores. A intenção deles era criar uma estrutura para dividir tarefas administrativas entre moradores e criar um ambiente de colaboração. Atividades como limpeza, produção de farinha de mandioca, corte de árvores para construção de casas, entre outras, são compartilhadas entre os ribeirinhos. Cada uma das 45 famílias precisa doar R$ 20 mensais para a caixinha da comunidade. O dinheiro pode ser usado para consertar o gerador ou comprar combustível para o barco comunitário.
A organização chamou atenção de moradores de outras comunidades. Desde 2009, 38 pessoas se mudaram para São Pedro. Para conseguirem um novo lar, todos os migrantes precisam passar por até 90 dias de ambientação. Depois, os moradores se reúnem para decidir se os acolhem ou não. A mudança na estrutura administrativa da comunidade ocorreu depois da chegada do pastor evangélico Raimundo Marinho, que há cinco anos se mudou de Tefé para São Pedro.
- Não é comunismo. Minha ideia era que todos sentissem que são importantes e que uma tarefa pode complementar outras. Sabíamos que nossa organização poderia se tornar atrativa para outros. Mas precisamos ser criteriosos e só aprovamos moradores novos se todos concordarem. Procuramos ajudar a todos aqui em São Pedro. Tentamos moldar uma estrutura para que não falte nada a ninguém, principalmente comida - diz ele.
A alimentação do ribeirinho, apesar de farta, especialmente em relação a peixes e farinha, é pouco variada. As plantações nem sempre são possíveis, e a ausência de energia elétrica na maioria das comunidades impede a estocagem de alimentos. A produção excedente, normalmente de peixe, é a principal fonte de renda. Mas não é raro encontrar famílias com mais de cinco filhos que têm como única fonte de renda o programa Bolsa Família, do governo federal. Cerca de R$ 400 reais é a renda média das famílias por onde a equipe de reportagem passou.
- Gostaria de comer um bom bife de carne de boi - revela Jandira Silva, moradora da comunidade Boca do Tigre.
Sentada no chão da casa onde mora, sem mobília ou eletrodomésticos, ela conta que está economizando dinheiro que recebe do Bolsa Família há alguns meses para ir à cidade comprar carne fresca e fazer um almoço de domingo para os filhos.
- Juntando aos poucos, consigo comprar. Vou caprichar - diz, sorridente.

Viagem de duas horas de barco para chegar até a sala de aula

Depois de descer um barranco de vinte e dois degraus, a estudante Márcia Morais, de 12 anos, equilibra-se sobre as tábuas de madeira para chegar ao barco escolar. Ela faz questão de ser a primeira da fila para guiar os mais novos pelo caminho tortuoso até a "escolancha" que leva para o colégio as crianças da comunidade Barreirinha de Cima, a 30 quilômetros do município de Fonte Boa, à beira do Rio Ati Paraná, no Amazonas. A viagem até a sala de aula pode levar duas horas. Márcia tem o sonho de ser médica. Não se incomoda com a distância.
- Quero ser médica para cuidar da minha comunidade - afirma ela.
Esta é a realidade da educação nas comunidades ribeirinhas. Estima-se que ao menos 5 mil crianças e jovens tenham que sair de seu povoado, diariamente, para frequentar uma escola. O número, segundo a Secretaria Estadual de Educação do Amazonas, é impreciso, já que nem todas as comunidades são registradas.
Mas já foi pior. No passado, era raro encontrar escolas à beira do rio. Quando havia, a iniciativa era da própria comunidade, que se organizava para passar conhecimento. Na década de 1990, depois das demarcações de terra, as localidades ribeirinhas foram vinculadas às cidades mais próximas. O município de Maraã, por exemplo, com 18 mil habitantes, tem hoje 106 comunidades "satélites". Destas, 93 têm escolas. A grade curricular é a mesma das escolas da cidade grande. Mas algumas comunidades incluem disciplinas como carpintaria e história indígena.
Para sanar também a falta de professores e da qualificação do corpo docente, há cinco anos a Secretaria Estadual de Educação criou o ensino tecnológico. A iniciativa permitiu que professores do ensino médio de escolas estaduais de Manaus ministrassem aula para ribeirinhos via satélite. Cerca de 20% das escolas do Estado do Amazonas contam com esse tipo de ensino. Segundo o diretor do projeto, o professor Edson Siqueira, a experiência vem caminhando bem, apesar dos problemas em algumas comunidades para captar o sinal.
- Aula à distância foi a saída para revolver a falta de mão de obra na área do ensino. Ainda precisamos melhorar a transmissão, para que não haja problema na frequência do ensino - diz Siqueira.

O Globo, 23/11/2014, Sociedade, p. 43

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