VOLTAR

A vida depois do lote

CB, Brasil, p. 13-14
13 de Jan de 2004

A vida depois do lote
Política agrária ineficiente distribui terra, mas deixa assentados reféns da própria sorte. Ex-presidente do Incra afirma que modelo está falido. Ministro diz que governo não deixará colonos sem assistência

Ullisses Campbell e Sandro Lima
Enviados Especiais
Fotos: Carlos Vieira

Teodoro Sampaio (SP) e Buritis (MG) - O trabalhador rural José Alberto Mesquita, de 68 anos, milita há 20 no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Em 1985, ele ganhou um lote de 40 hectares do governo para plantar. Está assentado no Gleba XV, no Pontal do Paranapanema, oeste paulista. Apesar de ter 40 cabeças de gado no pasto e de já ter plantado café, algodão, milho e mandioca ao longo dos anos, José Alberto acha que não prosperou. ''Ganhei um lote, mas meu padrão de vida é o mesmo'', diz. ''A única diferença é que não moro mais embaixo da lona.''

O agricultor Durvalino Costa, 44 anos, também já recebeu terra do governo, mas não obteve êxito. Em 1998, ganhou um lote no assentamento 17 de Abril, no Pará, mas o abandonou quatro anos depois. ''Tentei vender o lote por R$ 7 mil, mas o Incra proibiu. Aquela terra não presta para plantar porque o solo é ruim'', afirma.

Hoje, Durvalino trabalha como vendedor de açaí em Belém, deve R$ 12 mil aos bancos oficiais e tem o nome em seis listas de restrição de crédito. Segundo números do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de Marabá (PA), 40% dos sem-terra que foram assentados na região desistiram do lote.

Modelo falido
Segundo especialistas, o atual modelo de reforma agrária está falido. Ex-presidente do Incra e um dos maiores estudiosos da questão fundiária, Xico Graziano é taxativo: ''Os assentamentos são uma tragédia, um fracasso total''. De acordo com ele, a reforma agrária como política pública é questionável e economicamente cara.

Para o coordenador do MST, Valter Rodrigues Chaves, o Bill, a maioria dos trabalhadores rurais que abandonam o lote age assim porque não tem perfil agrário. Mas esse não é o único motivo. O abandono dos assentamentos pelo governo também faz muitos colonos deixarem a terra para trás.

Sob a coordenação da Universidade de Brasília (UnB), 29 universidades realizaram um censo agrário no Brasil com base em dados coletados em 1997. Foram visitados 1.460 assentamentos em 26 estados. Das 1.460 famílias ouvidas, 80% não dispõem de energia elétrica. Apenas 10% dos assentados têm geladeira. Os mais bem sucedidos não conseguem obter mais de três salários mínimos mensais com a atividade agrícola.

Outro especialista do assunto, Denis Rosenfield, filósofo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, acha que não é viável economicamente fazer reforma agrária no Brasil. ''É repartir terra para tentar resolver um problema social, mas não tem relevância econômica. Está se gastando muito com pouco resultado'', analisa.

Há uma promessa de que essa situação irá mudar. O ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rosseto, disse que no novo modelo de reforma agrária os assentados terão apoio técnico e financeiro do governo. Apesar do entusiasmo do ministro, as metas de assentamento para o ano passado não foram cumpridas.

Bom exemplo
Nem todo mundo está arrependido de ter ganho um lote na zona rural. Antônio Joaquim de Queiroz, 52 anos, por exemplo, não tem do que reclamar. Assentado há dez anos no Gleba XV, no Pontal do Paranapanema, o camponês prosperou. No início, tinha dez cabeças de gado. Hoje tem 150, que produzem 170 litros de leite diariamente. Além disso, ele vende bezerros para os assentados a R$ 250. Com o lucro, sustenta três filhos. ''Para quem foi acampado por dois anos e teve de invadir duas fazendas, posso dizer que estou realizado'', comemora Antônio Queiroz.

Há outros exemplos positivos. O agricultor Álvaro Alves, 40 anos, que mora com a mulher e dois filhos no assentamento Barriguda 1, em Buritis, desde 1995, é um deles. Apesar de obter com a terra menos de um salário mínimo por mês, o assentamento foi sua ''salvação''.

Semi-analfabeto, Álvaro considera sua vida melhor no campo. ''Se na cidade há gente com instrução que não consegue emprego, imagina como eu estaria'', pondera. Alves está construindo a casa própria aos poucos. Já iniciou a primeira parte e está comprando as telhas para arrumar o teto.

Para o deputado federal Raul Jungmann (PPS-PE), ex-ministro do Desenvolvimento Agrário, mesmo com todos os problemas, é válido seguir com a reforma agrária. ''É positivo assentar uma família no campo para que não passe miséria nas cidades'', avalia.

República de Assentados
Quantos sem-terra cada presidente assentou no campo

Governo/ Período / No de famílias assentadas
João Figueiredo / 1980-1984 / 92,5 mil
José Sarney / 1985-1989 / 90 mil
Fernando Collor / 1990-1992 / 38 mil

De volta para a cidade
Ana Cândida da Silva, 66 anos, cansou da vida campestre. Em 1994, ela foi assentada num lote de 18 hectares da Gleba XV, no Pontal do Paranapanema. Tentou plantar arroz, feijão, algodão e mandioca. Começou uma criação de gado que, no auge, teve 25 cabeças. Hoje tem apenas três e só uma vaca dá leite. Natural de Curitiba (PR), Ana resolveu voltar para a cidade. ''Vou viver com as minhas filhas. Não tenho mais idade para morar no fim do mundo.''

A agricultora não vai sair da zona rural com as mãos abanando. Ela conseguiu vender o lote por R$ 20 mil ao sem-terra Luiz Patrício Alves, 40 anos. A operação não foi irregular, diga-se. Na transação, R$ 4 mil reais foram separados para pagar prestações atrasadas de financiamentos bancários. ''Nós estamos saindo do lote porque não conseguimos fazer dinheiro'', lamenta. ''A vida aqui é muito difícil. A gente nunca recebeu uma visita de técnico para nos ensinar a fazer plantações.''

Os olhos de Ana umedecem todas as vezes que ela lembra que tudo começou num acampamento à beira da estrada. ''Para conseguir esse lote, tive de participar de duas invasões. Uma delas teve até tiroteio. Tudo em vão, já que vou voltar para a cidade'', lamenta.

O lote de terra que trouxe frustração a Ana Cândida é a esperança de Luiz Patrício. Ele estava acampado com a família em Teodoro Sampaio havia um ano e tinha uma casa na cidade de Presidente Wenceslau, no Pontal. Vendeu o imóvel por R$ 10 mil e juntou com um dinheiro que recebeu como indenização por ter sido demitido de uma empresa privada da cidade. ''Na semana que vem, vou ao Banco do Brasil pegar um financiamento'', planeja. ''Sempre sonhei em trabalhar no campo. Vou plantar arroz, feijão e milho. Também vou criar gado.'' .

Luiz e a família já deixaram o acampamento e montaram um barracão dentro do lote que compraram. Estão esperando os antigos donos deixarem a casa. Ele conta que, antes de optar pelo lote que comprou, visitou mais de 40 propriedades que estavam à venda no Pontal. A maioria, segundo Luiz, está devendo a bancos. ''A gente também viu muita gente com plantações perdidas por causa de pragas'', relata. (UC)

MST-20 Anos
Como nasce um líder sem-terra
Movimento forja e recruta futuros dirigentes em salas de aula mantidas nos assentamentos. Duas crianças de 12 anos são os professores da única escola do acampamento Jair Ribeiro, no Pontal do Paranapanema

Ullisses Campbell
Enviado Especial

Presidente Epitácio (SP) - É com o grito de guerra acima que as aulas começam na única escola mantida pelo MST no acampamento Jair Ribeiro, no Pontal do Paranapanema, 670 km a oeste da capital paulista. São duas turmas de 30 alunos com idade entre quatro e 14 anos. O detalhe curioso é que os professores são outras duas crianças sem-terra de 12 anos.

André Eduardo Rodrigues é um dos mestres da escolinha, totalmente construída com bambu. Ele dá aulas de Português, Matemática e História. Jennifer Aparecida Pereira assumiu as disciplinas Ciências e Geografia. Ela acumula as aulas com o cargo de diretora da escola. ''Prefiro dar aula. Fazer matrícula é muito chato'', diz a menina.

Por trás das crianças que ensinam o bê-á-bá a outras crianças nos acampamentos do MST há um projeto para formação de futuras lideranças. Uma vez por semana, uma equipe de pedagogos do movimento visita as escolas para identificar as crianças que têm perfil de líder. Jennifer e André, por exemplo, já são apontados como futuros dirigentes do movimento. ''Sempre gostei de falar em público. Acho que serei um bom líder de acampamento'', empolga-se André.

Jennifer sonha em se formar professora para ensinar ''de verdade'' nas escolas que o movimento mantém nos acampamentos. Na hora das aulas, usa roupas de militante com frases de efeito. Na primeira aula do ano, a menina usava uma blusa que dizia: ''Deus fez a terra para quem dela precisa''.

André é encarregado de alfabetizar as crianças de sete anos. Para isso, diz que precisa de toda a paciência do mundo. Em casa, tem uma biblioteca com diversos livros de História e Gramática. ''A vantagem é que a gente vai ensinando a essas crianças que a reforma agrária é importante para o país, e que só invadindo terras se consegue um lote'', ressalta.

A aluna mais nova da escola é Liliane Souza Ramos, de 4 anos. Freqüentadora assídua das aulas, ela já conhece cores. Precoce, a menina consegue até copiar letras do quadro. ''No final deste ano, ela estará lendo'', prevê Jennifer. A mãe da aluna, Ieda Maria de Souza, 38 anos, conta que Liliane chora todas as vezes em que ninguém pode levá-la à aula.

Informal, a escola do acampamento não tem as atividades reconhecidas pelo governo. Funciona mais como aulas de reforço, muito embora a maioria dos estudantes não esteja matriculada no ensino tradicional. Os dois professores-mirins fazem a 7ª série numa escola pública de Presidente Epitácio, cidade a oito quilômetros do acampamento.

Na semana passada, a mãe de Jennifer foi chamada à escola porque a menina não parava de conversar na sala de aula. ''O engraçado é que, na escolinha que eu dirijo, a gente também manda chamar os pais quando os alunos estão indisciplinados'', conta.

O aluno nota 10 da escolinha dos sem-terra é Marcos Antônio de Souza, 9. No ensino tradicional, cursa a 3ªsérie. Na escola do acampamento, nenhum outro aluno lê e escreve com tanta desenvoltura. O caderno dele é limpo e organizado. ''Quem dera que todos fossem como ele'', diz André, o mestre.

República de assentados
Quantos sem-terra cada presidente assentou no campo

Governo / Período / No de famílias assentadas
Itamar Franco / 1993-1994 / 22 mil
FHC / 1995-2002 / 635 mil
Lula / 2003 / 34,5 mil

O MST que educa
Para garantir a futura geração de líderes, o movimento investe em educação. Em todo o país, o MST administra 1.800 escolas em parceria com o poder público e organizações não-governamentais. No total, 160 mil filhos de sem-terra estão matriculados em turmas de 1ªa 4ªséries.
O MST mantém convênio com 50 universidades para alfabetizar 19 mil jovens e adultos em assentamentos. Tem ainda convênio com sete universidades para dar formação superior a seus militantes. Outros 48 sem-terra estão em Cuba fazendo Medicina.

Perfil
João Paolo Rainha
Seguindo os passos do pai

Ele tem apenas 10 anos, mas já é apontado como um futuro líder do MST. As lições de militância, aprende em casa. Filho de José Rainha e Diolinda Alves, o garoto já discute sobre injustiça social, sabe dizer por que a reforma agrária é importante para o país e diz que quer participar do movimento para ajudar os pobres. ''O mundo é muito injusto'', discursa.

João Paulo Rainha é um garoto urbano. Adora videogame e passa a maior parte do dia na frente da televisão, disputando com os colegas o pódio do jogo Gauntled Legends. Na 5ªsérie do ensino fundamental, ele estuda em escola particular e é um dos melhores alunos da turma. Quando é permitido entrar sem uniforme, o menino usa camisetas de protesto.

Apesar de ser uma criança, João Rainha tem esperteza de adulto. Conta que, aos três anos, viu o pai ser preso pela primeira vez. E lembra do quanto chorou quando viu a mãe sendo algemada. ''Os policiais prenderam minha mãe aqui em casa'', conta apontando para a sala. José Rainha foi preso acusado de formação de quadrilha, e Diolinda por escondê-lo da polícia.

Enquanto o pai esteve detido na penitenciária de segurança máxima de Presidente Wenceslau, João foi visitá-lo diversas vezes. Muito do que o garato aprende é nas andanças na companhia dos pais. Num passeio de carro pela rua com José Rainha, uma criança se aproxima para pedir esmola. Curioso, João pergunta: ''Papai, por que esse menino quer dinheiro?'' José Rainha responde: ''Porque o pai dele não tem emprego nem onde morar''. O dirigente sem-terra não tem dúvida quanto ao futuro do filho. ''Naturalmente, ele será uma liderança do MST. E isso é motivo de orgulho pra mim.''

Militantes no exterior

Para formar novos líderes e capacitar seus militantes, o MST manda jovens estudar no exterior, graças às boas relações que mantém com movimentos sociais de toda a América Latina. Muitos deles vão para a Argentina, mas o contingente mais expressivo se concentra em Cuba. É lá que 56 jovens sem-terra fazem graduação em diversas áreas como Medicina, Agronomia, Veterinária e até Epidemiologia.

Somente na Escola Latino-Americana de Medicina de Cuba, há mais de 50 jovens sem-terra estudando para um dia ser médico. Eles sonham em voltar ao Brasil para pôr em prática nos assentamentos tudo o que aprenderam. Saulo Rodrigues, 21 anos, é um dos futuros médicos do MST. ''Sinto-me militante e vou ajudar o MST. Há muita gente necessitando de assistência nos acampamentos''. O jovem também se dispõe a trabalhar no Sistema Único de Saúde (SUS).

As pretensões de Saulo e de todos os estudantes que fazem Medicina no exterior pode esbarrar num obstáculo de peso. O governo brasileiro não reconhece imediatamente diplomas de médicos formados em países da América Latina. Para revalidação, os médicos são obrigados a fazer provas rigorosas, em que o índice de aprovação não passa de 2%.

Impacto cultural
Há quatro anos em Cuba, Rodrigues, que é irmão de um dos principais líderes do MST, João Paulo Rodrigues, conta que a maior vantagem de estudar fora é o convívio com estudantes estrangeiros. ''O impacto cultural é enorme'', diz. ''Foi a primeira vez que tive a oportunidade de ver um balé e um teatro.''

O curso básico de Medicina em Cuba dura seis anos. A rotina é árdua e exige muito estudo. Às 7h da manhã, eles já estão dando duro nas salas de aula. À tarde, estudam inglês e outras disciplinas. Não há descanso nem à noite, que é reservada para o estudo individual.

Todos recebem bolsa do governo cubano, que inclui alojamento, hospedagem, e uma ajuda de custo de 100 pesos, equivalente a quatro dólares. Essa ajuda é utilizada principalmente para pagamento de refeições, já que a alimentação é racionada. Os momentos livres são aproveitados em festas ou em eventos culturais. Uma entrada para cinema, balé ou teatro sai quase de graça.

Todo sem-terra sonha em fazer curso superior em Cuba, último berço do socialismo latino-americano. Quem não pode, vai para países vizinhos. Foi o que fizeram os sem-terra Sérgio Meia Casa, 31, e Jean Freitas dos Santos, 26. Colegas de classe, eles cursam o último ano de Veterinária na Universidade Nacional Pio IV, em Córdoba, na Argentina. Além da ajuda de custo do MST, ambos têm em comum famílias que participam há muitos anos do movimento. Os pais de Meia Casa foram assentados em 1984 no Pontal do Paranapanema. Os de Santos receberam lote em 1995. (SL e UC)

CB, 13/01/2004, Brasil, p. 13-14

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.