VOLTAR

Viagem de 96 horas liga São Paulo ao Pacífico

OESP, Metrópole, p. C4-C5
14 de Ago de 2011

Viagem de 96 horas liga São Paulo ao Pacífico
A mais longa linha de ônibus da América do Sul tem 5.917 quilômetros e vai do Terminal do Tietê a Lima, cruzando Amazônia e Andes

Pablo Pereira
Enviados especiais a Lima

A mais longa linha de ônibus da América do Sul tem 5.917 quilômetros e liga o Terminal Rodoviário do Tietê, em São Paulo, ao bairro de San Isidro, em Lima, no Peru. Centenário sonho de integração dos dois países, a viagem por terra do Atlântico ao Pacífico une um complexo de estradas que cruza cinco Estados brasileiros e sete departamentos peruanos em uma travessia de quatro dias.
Na semana passada, a reportagem do Estado acompanhou a aventura de 18 passageiros que enfrentaram 96 horas de viagem a bordo de um ônibus da empresa peruana Expreso Ormeño. As paradas do veículo de dois andares, que tem lugar para 44 passageiros (mas viajou a meia-carga), ocorrem somente para abastecimento de combustível, alimentação e higiene - cada uma delas de no máximo 40 minutos.
A partida para a capital do Peru acontece no boxe 31 do Tietê, às 8 horas, uma vez a cada 15 dias. A passagem custa R$ 468. A linha São Paulo-Lima é operada desde novembro pela Ormeño, empresa de transporte internacional rodoviário com rotas do Peru para Chile, Colômbia, Bolívia, Equador, Argentina e Venezuela.
A primeira parada, após 6 horas de rodagem, ocorre em Maracaí, na Rodovia Raposo Tavares, próximo de Ourinhos, às 14h, para reabastecimento e almoço. Neste ponto começam a aparecer os primeiros incômodos da longa travessia. A próxima parada para esticar as pernas só ocorrerá em Cáceres (MT), na manhã do segundo dia. É a hora de aproveitar o primeiro - e reconfortante - banho.
Por R$ 3, os passageiros podem desfrutar de sete minutos de água quente em um banheiro controlado por um funcionário do posto de gasolina que, aos gritos, coordena a ligação dos chuveiros, em série, tanto do lado masculino quanto do feminino. "Número um tá ligado. Mas tem de esperar um minuto para a água chegar aí. Número dois, pode ligar?", berra o rapaz, à porta dos sanitários.
A seguir, novamente horas e horas de pastos, gado e a faixa de mata ao longe, acompanhando o ônibus até a parada em Pontes e Lacerda para o almoço, às 14h. No cardápio, arroz, frango frito, macarrão, salada. Logo após, o aviso: nova parada somente no dia seguinte, por volta das 7h, em um bar de beira de estrada em Nova Califórnia, divisa de Rondônia com o Acre.
Mas, antes, no meio da noite, uma surpresa: a travessia do Rio Madeira, na BR 364, altura de Abunã, tem de ser feita em balsa. Toca a descer todo mundo para o ônibus passar vazio, com o povo acomodado ao lado do veículo. Adiante, após uma hora na rodoviária de Rio Branco, finalmente a fronteira: Assis Brasil (lado brasileiro) e Iñapari (Peru).
Parada forçada. Sem RG, o passageiro Cristopher Hernán Pacheco, de 15 anos, é barrado pela Polícia Federal brasileira, e provoca uma parada forçada de três horas na viagem. Após uma ligação a São Paulo, onde vive a família de Cristopher, agentes se convencem de que está tudo legal com ele. Peruano com cidadania brasileira, o rapaz retorna a seu país após quatro anos. Está ansioso por rever sua terra. Poucos metros depois, ao passar pela alfândega, mata a saudade de beber Inca Kola, refrigerante popular no Peru.
Começa neste ponto a estrada Interoceânica, trecho recém-asfaltado, que liga Assis Brasil, no Acre, a Puerto Maldonado, capital do Estado de Madre de Dios. Lá, por volta das 21h, a turma desembarca pela segunda vez.
A Ponte Intercontinental, de cerca de 500 metros, inaugurada no ano passado pelos presidentes Alan Garcia e Lula, não pode ser usada. Os cabos de sustentação apresentaram irregularidades e a obra só deve ficar pronta mesmo em setembro, quase um ano após a festa política. O jeito é, novamente, apelar à balsa - para o ônibus - e a um precário bote de madeira para os passageiros. Preço por pessoa: um sol (moeda peruana) - cerca de R$ 0,60 - para cruzar o rio "cheio de piranhas", segundo o barqueiro.
"Cuidado. Esto es peligroso", alerta Gonzalo Alayo Perez, de 81 anos, um dos passageiros da viagem São Paulo-Lima, ao entrar no barco. "Sair do ônibus no meio da noite e ter de atravessar o rio num barquinho desses é um absurdo", diz a brasileira Creusa Amazonas, que embarcou em São Paulo para fazer turismo em Cuzco e Lima por cerca de dez dias. Passar ao outro lado do rio em um bote é também um dos momentos mais delicados da viagem de Elza Menendez Carlos, peruana de 37 anos, que mora na Mooca, em São Paulo, e viajou com as filhas Lilian, de 12 anos, e Suellen, de 2.
Agarrada à menina de colo, Elza alerta a adolescente para ter cuidado enquanto o barqueiro apruma o bico da embarcação de madeira no barranco escuro, iluminado apenas por uma lanterna. Do bote lotado é possível ver as luzes da ponte novinha, mas inoperante. A cerca de 200 metros, rio acima, a balsa leva o ônibus vazio à outra margem.
Mas a parte mais chocante da viagem ainda nem começou. Por mais duas noites, com um dia no meio, o ônibus percorre a área mais crítica, porém mais bela do trajeto: a amazônia peruana e a Cordilheira dos Andes. O "autobús" (ônibus, em espanhol) passa a serpentear por encostas de picos num sobe e desce, segue e vira, em sucessivas curvas em U. É empreitada para poucos.
Anibal Castillo, de 55 anos, 30 na profissão, pega a direção para o estirão nas matas de Madre de Dios. Castillo gosta de dirigir à noite. "É mais fresco", diz.
Nas mãos dele, o coletivo encara o trecho de amazônia peruana. No meio do nada, noite alta do terceiro dia, rumo a Cuzco, surgem as luzes dos garimpos. Tratores aproveitam a escuridão na selva para lavar cascalho em busca de ouro.
De repente, uma parada. Já é a hora de o mais jovem dos motoristas, Franklin McCubbin, de 53 anos, assumir o comando em uma das partes mais estressantes na direção da histórica Cuzco.
"Essa é a parte mais difícil", concordam os três. "Há trechos de estradas de Mato Grosso e Rondônia (BR 364) que também retardam a viagem", diz McCubbin. Mas isso nem é tão trabalhoso. O que pega mesmo é levar o possante a uma altitude de 4.725 metros, a uma velocidade média de 30 km/h pelas Rodovias 3S e 26, e baixar ao fundo do vale, até chegar a Cuzco.
A visão do amanhecer próximo da cidade misteriosa, na região do santuário inca de Machu Picchu, ajuda a enfrentar as náuseas do embalo nas curvas.
Na parada de cerca de 40 minutos, já pela manhã, o segundo banho na jornada. Chuveiro quente a 3 soles (R$ 2) em uma casa atrás da rodoviária da cidade. Logo, o retorno à estrada. Com piso de asfalto sem buracos, bem sinalizada, a estrada segue boa, mas é um teste para o labirinto. E só tem duas faixas.
"Sem problemas", diz o Jacinto Napan, de 55 anos, na solidão da cabine durante seu turno na terceira noite da viagem. Napan troca de marchas, reduz ou reforça a potência do motor no moderno ônibus ouvindo música andina. Nas horas de folga, descansa no compartimento atrás da cabine ou aproveita assentos vagos no andar superior para assistir a filmes que distraem os viajantes.
Nazca. Na noite de sábado, finalmente, começa a descida ao litoral. À frente, a planície de Nazca. No andar de cima, passageiros dormem, inebriados pelo balançar e o ar rarefeito da altitude. A lua ilumina a planura que abriga curiosas construções de pedra que formam desenhos de animais gigantescos. O "conductor" Napan anuncia as luzes distantes de Nazca. E explica que à beira da rodovia há "miradores" para que, durante o dia, se possa ver do alto algumas das estruturas que intrigam o mundo.
Há quase 90 horas a bordo, já contando as curvas do acesso à rodovia para Lima, o paciente motorista não consegue mais esconder a pressa. Nas retas de Nazca, desconta os atrasos pisando fundo. É madrugada de domingo.
A última troca de motoristas ocorre perto de Ica, vizinha de Lima. Franklin Mc Cubbin volta ao comando na Rodovia 1. Aparecem as luzes da capital peruana. No carro, uma agitação no andar de cima revela a ansiedade dos passageiros. Uma fila de gente se forma na escada. A chegada a San Isidro ocorre às 6h, hora local. É o fim da linha.

Estrada fortalece integração Andina''

Pablo Pereira

A ligação rodoviária entre Brasil e Peru é aspiração antiga e faz parte de um processo histórico de integração com vizinhos andinos. A afirmação é do embaixador brasileiro em Lima, Carlos Alfredo Lazary Teixeira. O chefe do Itamaraty no Peru disse ao Estado que outros eixos de ligação estão em planejamento, mais ao norte. E a Rodovia Interoceânica abre a porta para o comércio regional, além de facilitar o turismo para a Copa de 2014. "Nossa fronteira tem de ser uma linha de união, não uma barreira".
O embaixador ressalta que os investimentos brasileiros no Peru já alcançam a casa dos US$ 3 bilhões. "Viemos para ficar. As empresas brasileiras estão dando um show de bola no Peru, com projetos que seguem rigorosamente o ambiente de inserção social, aproveitamento de mão de obra local e observação de normas ambientais. Queremos que as empresas se tornem empresas peruanas. Não são somente investimentos que logo se retiram", afirmou.
Entre os principais projetos estão os de empresas como Odebrecht, Vale, Gerdau, Brasken e Petrobrás. Um dos principais eixos de negócios é o da indústria de energia e petroquímica, com expectativa de até US$ 15 bilhões sendo despejados no Peru na exploração de gás da bacia de Camisea, na região de Cuzco, transportado por gasoduto aos Portos de Matarani e Ilo, no sul do país.
Ao norte, a Petrobrás opera a extração de petróleo. Tem também a exploração de gás em Camisea, em dois lotes - o 58, que é 100% Petrobrás, e o 57, com 47% de participação. A Gerdau também corre para operar em Chimbote, no litoral, projeto de US$ 450 milhões.
Para o conselheiro comercial do Peru em São Paulo, Antonio Castillo, "os dois países vivem um momento de ouro". Só no complexo da soja, o Peru importa US$ 400 milhões do Brasil e a estrada que liga Assis Brasil a Puerto Maldonado vai permitir o acesso dos produtos brasileiros da Região Centro-Oeste a mercados não só do Peru, mas também de Equador e Colômbia, explica Castillo. Num primeiro momento, calcula o diplomata, o impacto da nova ligação rodoviária será local, além de ser uma porta aberta para o turismo.
Segundo ele, há na região uma demanda por produtos da construção civil, como cal, cimento, aglomerados de madeira e até pedra. Além disso, o comércio de carnes brasileiras e de soja não-transgênica, produzida no Acre, também será beneficiado, afirma o peruano.
De acordo com o administrador da Ormeño em São Paulo, Oscar Vásquez Solis, a linha ainda é deficitária. Em 16 viagens, desde novembro, transportou cerca de 1.100 passageiros. "Mas esperamos para o próximo ano equilibrar custo e receita. Aí poderemos estender a linha até o Rio."

Peruano que vive no Brasil festeja união

Pablo Pereira

"A Interoceânica é muito importante para os produtos peruanos chegarem ao Brasil e abastecerem mercados de Acre, Rondônia e até São Paulo", afirma o passageiro peruano Gonzalo Alayo Perez, que embarcou no Tietê, na quarta-feira, rumo a Lima.
Alayo Perez tem duas filhas que já são brasileiras. Professor aposentado no Peru, ele passa metade do ano no litoral de Santa Catarina, em Pissaras, mas tem de voltar a seu país por exigência brasileira. Seu visto temporário é de 90 dias, renováveis por outros 90. "Findos esses prazos, retorno a Lima. Aí aguardo até que a burocracia libere a documentação para voltar ao Brasil", conta.
Bem-humorado, diz que enfrenta a viagem com tranquilidade. "Tenho três idades. A cronológica é 81. A física, dizem os médicos, tenho coração de 75 anos. E a idade mental é de um jovem", diverte-se.
Ele adora o Brasil. "Meu país é o Peru. O Peru tem mais de 80 tipos de ecossistemas. É um país rico, do litoral ao Amazonas, com a cordilheira pelo meio. Isso é uma riqueza. Mas também gosto muito do Brasil", diz. Gonzalo Alayo fez o caminho inverso dos bandeirantes, que já em 1609 queriam chegar à cordilheira peruana para importar lhamas - que chamavam de carneiros peruanos de carga -, como conta o livro Sérgio Buarque de Holanda - Escritos Coligidos (Editora Unesp, 2011). O negócio não prosperou. Hoje, pela janela do ônibus, o professor Alayo Perez pode ver na estrada lhamas e alpacas pastoreadas por senhoras quetchua. "Felizmente estou vendo a integração acontecer. É uma maravilha", afirma.

Dicas para uma travessia confortável: água, frutas e remédio para enjoo

Pablo Pereira

Percorrer uma estrada durante quatro dias e quatro noites dentro de um ônibus é um desafio que exige paciência. Há longas esticadas, de até 18 horas sem paradas para higiene ou alimentação. A primeira preocupação deve ser com a compra de alimentos e água para as noites no trajeto entre São Paulo e Rio Branco. Comer frutas, como bananas, ajuda a resistir à fome. Horários de refeição dependem da posição do ônibus na estrada. E as paradas ocorrem em bares que nem sempre oferecem boas condições de atendimento. É aconselhável também levar medicamentos para náuseas, que podem incomodar principalmente nos trechos dos Andes, quando o balançar do ônibus e as curvas da estrada na altitude provocam desconforto. A bagagem de mão deve conter toalha de banho. E, não esqueça, lenços de papel.

OESP, 14/08/2011, Metrópole, p. C4-C5

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,viagem-de-96-horas-liga-sao…
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,estrada-fortalece-integraca…
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,peruano-que-vive-no-brasil-…
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,dicas-para-uma-travessia-co…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.