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Viagem ao mundo dos Kanela

JB, Revista Domingo, p.8-9
27 de Fev de 2005

Viagem ao mundo dos Kanela
No projeto "Arte do Mito", o registro da cultura indígena

Caroline Menezes

Mochileiros viajam milhares de quilômetros e gastam verdadeiras fortunas para conhecer povos e culturas exóticas. Mas nem sempre é preciso cruzar geleiras ou atravessar montanhas para experimentar grandes emoções. O carioca Rafael Pessôa, 29 anos, não precisou nem mesmo sair do território nacional. Em suas andanças pelo interior do Brasil ele entrou em contato com indígenas, aprendeu a falar a língua nativa e incorporou os valores da tribo. Fascinado com tão diferentes modos de entender o mundo, e lamentando a falta de divulgação deste conhecimento, criou o projeto Arte do Mito (www.artedomito.com) que realiza filmes que têm como diretores e roteiristas índios de diversas etnias.
As tradicionais manifestações folclóricas no interior de Minas Gerais foram o ponto de partida de Rafael. Em 1999, então recém-formado em Belas Artes, resolveu registrar fotograficamente os folguedos de fim de ano da região. A partir daí seguiu um trajeto que só terminou três anos depois. A rota que percorreu de ônibus, de carona em trens e barcos e até a pé, passou por diversas cidades mineiras até chegar em João Pessoa, na Paraíba.
- Durante dois anos tudo o que eu tinha era uma mochila, minha máquina fotográfica e uma barraca - lembra Pessôa.
Seu interesse maior eram as pessoas que conhecia. Curioso, ele passava um bom tempo em lugares remotos, nos quais experimentava um pouco do estilo de vida dos amigos que fazia. Para se manter, montou vitrines de lojas, cenários de teatro e chegou a trabalhar como garçom. Alguns daqueles que encontrava viraram companheiros de viagem, como um grupo de israelenses e um colega surfista que o acompanhou carregando uma prancha até o interior do Piauí.
- Ficava impressionado pois esbarrava com pessoas de outras nacionalidades, que estavam mais dispostos a trilhar o país do que a maioria dos meus conhecidos - afirma.
A princípio, seu objetivo era colecionar aventuras, trilhando um caminho sem roteiros pré-estabelecidos. Mas tudo mudou quando chegou ao Maranhão, onde conseguiu trabalho como restaurador do setor de cerâmica do Centro de Criatividade Odylo Costa Filho. Sua função era fotografar a aldeia dos Kanela, no sul do estado. O primeiro contato foi um susto tanto para os índios quanto para ele.
- A organização espacial desta tribo é em formato circular. Sem nos darmos conta, estacionamos o carro no meio da roda principal, o lugar mais sagrado daquela comunidade. Quando percebi onde estávamos, fiquei apreensivo. Mas, mesmo visivelmente espantados com os intrusos, eles foram gentis - garante o pesquisador.
A estratégia foi se adaptar rapidamente aos costumes da tribo. A boa receptividade foi marcante. Já no primeiro dia, Pessôa foi ''adotado'' por uma família anfitriã e encontrou a antropóloga - que tinha chamado para ajudá-lo - com o corpo coberto de penas, em uma cabana de mulheres. A estada, que era para ser de 20 dias, durou três meses.
- Os Kanela são muito amáveis e me acolheram logo. Sem o menor conhecimento de lingüística penei para aprender a língua, acabei inventando um mecanismo próprio - conta Pessôa, que é mestre em Ciência da Arte e atualmente faz doutorado em Antropologia.
Nesta primeira experiência Rafael obteve vasto material em áudio e registros fotográficos. Esses frutos foram decisivos para a criação da Arte do Mito. O engajamento na causa indígena e o desejo de formar um acervo etnológico contemporâneo passaram a ser seu principal objetivo. Seu trabalho pretende ser um diferencial entre as pesquisas sob o olhar antropológico nas comunidades. Ele propõe que os próprios indígenas façam, da maneira que bem entenderem, os registros de sua cultura. O projeto prepara os integrantes da tripo para operar câmaras e filmadoras. Quem edita, escreve e decide o que vai ser focalizado são os próprios membros das comunidades. Já foram feitas 3.500 fotografias, dois documentários e um CD-Rom, além de dezenas de entrevistas, cânticos e músicas folclóricas. A maior contribuição não é a quantidade do acervo, mas o modo como ele foi produzido.
- A comunidade participa de todas as etapas do trabalho. Priorizamos o repasse constante de informações e sempre discutimos com a população sobre as ações a serem executadas, respeitando suas opiniões e seus conhecimentos tradicionais. Não queremos apenas enxergar a tribo como um objeto de estudo, queremos aprender com ela, vivenciar seus ensinamentos - explica Pessôa, que é chamado pelos índios de karampey, caça difícil de encontrar, ou eremy, que é um índio que conhece o mundo e traz coisas por onde passa.

JB, 27/02/2005, p.8-9.

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