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Viagem ao centro da selva

MIT Revista, n. 19, p. 35-40
30 de Set de 2005

Viagem ao centro da selva
Na fronteira do Amazonas com a Colômbia, nosso repórter-antropólogo acompanhou o dia-a-dia dos Expedicionárias da Saúde. Conheça as aventuras dessa ONG que presta assistência médica à população indígena na região do Alto Rio Negro

por Stelio Marras, de Iauaretê ilustrações Fellipe Gonzalez

São quase três horas de uma tórrida tarde tropical. Lá fora, o termômetro denuncia 40 oC de calor úmido. Na sala de cirurgia do modesto hospital, a temperatura não é menor, já que o sistema de ar condicionado não funciona. A iluminação também é precária, e é preciso o reforço de uma débil luminária de escritório para poder enxergar a operação. O médico André Brandalise lava rapidamente o corte no rosto do índio Túkano que ali se encontra para a retirada de um cisto. Suando em bicas, o jovem cirurgião de 33 anos não pode evitar que alguns pingos caiam sobre o corte. O jeito, então, é amarrar um pano na testa para conter o suor.
Estamos em Iauaretê, povoado localizado no município de São Gabriel da Cachoeira, extremo noroeste do Amazonas, divisa exata com a Colômbia, distante cerca de 2 mil quilômetros de Manaus. Brandalise é um dos médicos que compõem os Expedicionários da Saúde, uma organização não-governamental com sede em Campinas, no interior paulista, que presta assistência médica à população indígena na região do Alto Rio Negro.
A idéia dessa ONG nasceu há coisa de três anos, depois que o ortopedista Ricardo Ferreira, seu primo, o anestesista Martin Ferreira e o fotógrafo Jorge Abud Filho, companheiros de longa data em trekkings e escaladas mundo afora, se viram, em plena expedição ao Pico da Neblina, inadvertidamente costurando a barriga de um Yanomami, aberta a facão depois de uma desavença. Aos poucos, Ricardo foi tomando conhecimento da enorme carência de cirurgiões em toda a Cabeça do Cachorro, naco de floresta amazônica de aproximadamente 150 mil Km2, área do tamanho de Cuba que ganhou o nome pelo recorte que produz no mapa do Brasil.
Atualmente, vivem na região cerca de 30 mil índios de mais de 20 diferentes etnias, que contam com o auxílio de apenas dois cirurgiões e uns poucos médicos do exército. A parceria com a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), a Secretaria de Estado da Saúde (Susam), o Comando Militar da Amazônia (CMA) e o Instituto Socioambiental (ISA), este último com sede em São Paulo, findou por concentrar a ação dos expedicionários em Iauaretê.
Dois eram os motivos. Primeiro porque esse antigo centro missionário de padres salesianos que hoje abriga perto de 3 mil índios, em sua maioria da etnia Tariana, era um dos três lugares em toda a Cabeça do Cachorro onde já existia um hospital - erguido há 20 anos pelo polêmico projeto militar Calha Norte (que, visando ocupar as regiões de fronteira, terminou ameaçando terra e cultura indígenas), mas só há três em funcionamento, ainda que precário. A segunda razão em que, em Iauaretê, os expedicionários podiam contar com o antropólogo Geraldo Andrello, coordenador do ISA e profundo conhecedor do Alto Rio Negro e seus habitantes. Andrello serviria, assim, como uma espécie de diplomata entre índios e brancos - exigência indispensável para mediar mundos tão distintos e distantes.
Até o primeiro semestre de 2005, os expedicionários já contabilizavam quatro visitas ao povoado. Em cada uma delas, realizaram cerca de 200 atendimentos e 100 cirurgias, sobretudo hérnias abdominais e pterígios. Hérnia , explique-se é muito freqüente entre índios, homens e mulheres, já que passam a vida, da infância à velhice, carregando peso em tarefas cotidianas. Pterígio, por sua vez, é o espessamento crescente de uma membrana que cobre a córnea até cegar. Francisco Mais, oftalmologista da ONG, explica que a alta incidência dessa doença se deve à maior vulnerabilidade os raios ultravioleta e infravermelho nesta zona do equador, agrava ainda mais pela redução da camada de ozônio.
Outras Fronteiras
De Iauaretê se avista, na outra margem do rio Uaupês, a Colômbia. A fronteira justifica, em parte, uma base do exército brasileiro no local. O maior motivo é o fantasma das Faro, Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, ainda a rondar a imaginação de algumas patentes com histórias, nem sempre comprovadas, de narcotráfico e invasão territorial - afinal, além de indígena, essa área é também brasileira. Mais gritante que a fronteira geográfica, contudo, é a fronteira cultural. De fato, o que há de Brasil aqui é algo pálido. Língua e costumes tão diversos confirmam que, definitivamente, estamos diante de outras nações, muito mais difíceis de compreender do que uma França ou Alemanha. Em Iauaretê, o Ocidente não passa de teoria - a região é norte o bastante para nos desnortear.
Na vez em que a reportagem da MIT lá esteve, um acontecimento tomou os expedicionários de surpresa. Estavam todos prontos para encetar as operações, mas... onde estavam os índios? Da triagem feita, poucos haviam comparecido. É que naquele exato dia havia começado em Iauaretê o 'Triângulo Tukano', espécie de olimpíada indígena com modalidades como futebol, vôlei, basquete e handebol. Os centros comunitários, sob estridente forró, regurgitavam de mulheres enfileiradas. Com balde e cuia à mão, ofereciam aos visitantes, de modo quase ininterrupto, caxiri, bebida à base de mandioca tradicionalmente fermentada com saliva. Calcula-se que cerca de 2mil litros foram produzidos para a ocasião. E o melhor: a festa só teria fim quando acabasse a bebida. Durou três dias. Ao final da rapioca, para alívio dos médicos, os índios finalmente procuraram o hospital. A barreira cultural, diga-se, é uma dificuldade médica crucial para os expedicionários. 0 jovem anestesista Vítor Funk confessa perder a ação perante seus inusitados pacientes que, conta, "brigam para não dormir". esses casos, pouco adianta se um tradutor tenta convencê-los dos efeitos da anestesia. Palavras nunca são suficientes quando a exigência é traduzir conceitos, visões de mundo. Sob efeito anestésico, imaginariam os índios que estão morrendo? É possível, já que o hospital é visto por eles como "casa da morte". Por isso, os pós-operatórios geralmente ocorrem não num leito de hospital, mas na rede. "Aqui, o ortodoxo não funciona", pontua o experimentado Oscar Soares, cirurgião contratado pela Foirn que trabalha em conjunto com os expedicionários. A solução encontrada por Soares é, sempre que possível, convidar um pajé para juntos atenderem os casos mais complicados.
Esta é, com poucas exceções, a regra geral: para doença de índio, medicina indígena; para doença de branco, medicina branca. Tal esquema, no entanto, parece desorganizar-se com um problema que assola, hoje, boa parte daqueles grupos do Alto Rio Negro - a subnutrição. Em alguns casos, graças à gravidade da doença, o paciente precisa passar por uma delicada cirurgia, porem, isso só viável caso ele não esteja subnutrido. Quando isso ocorre, a recomendação é que ele retorne meses depois, mais bem nutrido.
Dias de voadeira
Outra freqüente conseqüência da subnutrição entre os índios . cujas causas se explicam pelas más condições sanitárias, é o tracoma. Nesta espécie de conjuntivite crônica, a pálpebra se inverte para dentro do olho e os cílios passam a arrancar a córnea, causando cegueira irreversível e dor para o resto da vida. A doença, que se acreditava erradicada no Brasil, continua endêmica na região, mas não aparece nas estatísticas nacionais. Segundo explica Oscar Soares, sua divulgação implicaria queda no IDH (índice de Desenvolvimento Humano) nacional - com conseqüências, portanto, indesejáveis para o risco Brasil no exterior. Resulta daí uma falta de política pública para tratar o problema, que só se agrava. Não é o único. Embora as pneumonias respondam pelo maior número de óbitos entre indígenas, tão preocupante quanto é a alta mortalidade infantil-67 por mil habitantes contra as 45/1.000 do índice nacional.
Diante de tais fatos e números, atender cerca de 200 indígenas a cada seis meses pode parecer pouco. A médio prazo, porém, a atuação de ONGs como os Expedicionários da Saúde findaria por aliviar os combalidos bolsos do Estado, que assim evitaria, por exemplo, o custeio de avião e hospedagem para deslocar um paciente até São Gabriel da Cachoeira ou, conforme a gravidade do caso, até Manaus. Trata-se de uma importante economia para a saúde pública. Mais importante ainda, certamente, é poder proporcionar algum conforto ao indígena que, atendido in loco , não enfrenta quadro ou cinco dias de voadeira, como são chamados os barcos a motor, ate chegar num hospital do SUS e amargar outros tantos dias na fila para, com sorte, ser enfim atendido. Uma realidade, esta sim, para lá de brasileira.

A Cabeça do Cachorro
Graças ao contorno da fronteira cio Brasil com a Colômbia, assim é chamado este naco de floresta de aproximadamente 150 mil quilômetros quadrados no noroeste do Amazonas. Iauaretê está localizada no fundo da Boca cio Cachorro, às margens do rio Uaupes

MIT Revista, n 19 , Set 2005, p. 35-40

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