VOLTAR

Às vésperas da COP

O Estado de São Paulo - OESP (São
Autor: Giovana Girardi
01 de Nov de 2015

ÀS VÉSPERAS DA COP

Chefes de governo e de Estado, ministros e diplomatas de 195 países do mundo se reúnem a partir deste domingo, 29, em Paris, para tentar fechar um acordo global que busque evitar uma mudança catastrófica no clima do planeta.

Grosso modo, essa é a expectativa que se tem da 21ª Conferência do Clima da ONU - que garanta, em um documento, um futuro climático seguro para todos que estiverem por aqui nas próximas décadas e séculos.

Na prática, porém, o resultado da conferência deverá ser mais um ponto de partida que um ponto final. A questão complexa se desenrola em metas de redução de emissões de gases de efeito estufa, em transferência de tecnologia, em financiamento. E em resolver velhos atritos entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.

Porque a crise das mudanças climáticas pode ser global, mas as soluções, assim como as consequências da inação, são em sua maioria locais.

Neste especial multimídia trazemos um olhar sobre como o Brasil se insere neste contexto: sua contribuição histórica para ajudar a causar o problema, os impactos que já vem sentindo e os desafios que tem pela frente para retomar o crescimento econômico a partir de um novo modelo de desenvolvimento que não jogue mais carbono na atmosfera.

Em quatro reportagens, apuradas em cinco cidades de Mato Grosso, em duas de Pernambuco e uma da Bahia, fazemos uma leitura sobre o passado, o presente e o futuro da questão climática no Brasil. Do desmatamento, que historicamente foi - e ainda é, mas em proporção bem menor - o maior contribuinte das emissões de gases de efeito estufa do País, aos projetos de reflorestamento. Dos impactos já sentidos no clima aos desafios energéticos, cujo setor pode, nas próximas décadas, assumir a liderança das emissões brasileiras.

Os temas abordados se relacionam com as metas apresentadas pelo Brasil em sua INDC (sigla em inglês para o conjunto de intenções que os governos apresentaram como contribuição à Conferência de Paris). O País se propôs a reduzir suas emissões em 37% até 2025 e em 43% até 2030, com base nos valores de 2005. Para conseguir isso, entre outras ações, o governo promete zerar o desmatamento ilegal na Amazônia até 2030, reflorestar 12 milhões de hectares e aumentar a participação de fontes renováveis (excluídas a hidráulica) na matriz elétrica para 23%.

Contribuição histórica. As reportagens mostram que na ponta onde as questões têm de ser resolvidas, os desafios não são poucos. Na Amazônia, por exemplo, apesar de ter ocorrido uma redução de 82% no desmatamento entre 2004 e 2014, a taxa da perda florestal se estabilizou em cerca de 5.000 km² por ano (3,3 vezes o tamanho da cidade de São Paulo). A taxa mais recente, de agosto de 2014 a julho de 2015, apresentou uma alta de 16% em relação ao ano anterior, chegando a 5.831 km². O número é considerado incômodo para o Brasil apresentar na COP, uma vez que ele representa mais emissões. O governo federal trabalha com uma estimativa de que pelo menos 60% disso é ilegal, mas só Mato Grosso considera que a ilegalidade é de cerca de 90%.

O Estado liderou neste ano o desmatamento na Amazônia e tanto o governo local, quanto Ibama e ONGs que atuam no Estado relatam dificuldades para baixar essa taxa.

A saída para resolver as emissões do desmatamento legal que vai poder continuar existindo (o Código Florestal assegura a supressão vegetal de 20% do terreno de propriedades privadas na Amazônia), na proposta do governo, é fazer o reflorestamento de 12 milhões de hectares. Altos custos e resistência de proprietários, como observado em Mato Grosso, também devem dificultar o alcance dessa meta - que muitos especialistas em uso da terra ainda dizem ser aquém do necessário.

De 1990 a 2014, período para o qual há cálculos das emissões brasileiras, o País lançou na atmosfera 59,6 gigatoneladas (Gt) de CO2-equivalente. O desmatamento da Amazônia respondeu sozinho por 41% deste total (20,4 Gt CO2e).

Se a meta de zerar o desmatamento for alcançada e outras ações para diminuir as emissões da pecuária forem tomadas, a preocupação se volta para a energia. A expectativa dos especialistas é que para 2030 o setor passe a responder por 50% das emissões anuais do País. Em 2014, já foi responsável por 30,7%, pela primeira vez superando a pecuária no posto de segundo maior emissor, e colando no desmatamento, que mantém a liderança, com 31,2% das emissões. Os dados são do mais recente levantamento do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg).

Contribuição futura. Historicamente celebrado por ser um dos países com a matriz elétrica mais limpa, por conta da forte presença de hidrelétricas, que não poluem (em oposição a térmicas movidas com combustíveis fósseis, comuns na maioria do mundo), o Brasil não vinha se preocupando muito com as emissões de energia. Não quando o problema gritante era o desmatamento.

Mas nos últimos quatro anos, o cenário começou a mudar. Sucessivas crises hídricas têm levado a um maior acionamento de termoelétricas no Brasil. Aqui não usamos carvão, o pior dos fósseis, como é comum na China, mas óleo combustível e gás natural ainda assim são poluentes. Com isso a emissão no Brasil do setor aumentou 171% de 2011 a 2014.

Com o crescimento populacional nos próximos e uma eventual retomada do crescimento econômico, vai aumentar a demanda por energia, não só a elétrica, como a de combustíveis para transporte. Para não ter um aumento de suas emissões totais, o País precisa aumentar a oferta de fontes renováveis.

Especialistas alertam, que, apesar da meta de aumento da participação das renováveis (dos 9,9% atuais para 23% até 2030), o Brasil ainda tem previsão de concentrar a maior parte dos seus investimentos energéticos em combustíveis fósseis. O Plano Decenal de Energia prevê 71% dos investimentos em combustíveis fósseis e apenas 14% para novas fontes renováveis.

No Nordeste, por exemplo, observamos a expansão das usinas eólicas, mas o setor de energia solar ainda patina. Porque falta uma política orientada para facilitar sua ampliação.

Em comum a todas as histórias -- de Micolinos, Neuris, Edivaldos, Cíceros, do Norte e do Sul do País -- está o fato de que para o Brasil fazer sua parte na luta contra as mudanças climáticas, vai ter de mudar também seu modelo de desenvolvimento. E ainda tem muitos obstáculos a superar.

DESMATAMENTO
UM VILÃO HISTÓRICO

Micolino não pensou duas vezes. Trocou sua terra e uma casa que tinha acabado de construir, e ainda cheirava à tinta, por uma área de 475 hectares, apesar dos protestos da mulher, que só fazia chorar quando chegou naquele norte que não tinha nada. Tem certeza que fez um bom negócio. "O hectare da terra no Rio Grande custava mais de mil cruzeiros e em Mato Grosso, 12", recorda. No auge de sua produção, chegou a ter 480 cabeças de gado.

No total, cerca de 2 mil famílias embarcaram no plano. Uma das cidades que construíram foi batizada de Canarana, nome do que era considerado o melhor capim da região. "Lembrava Canaã, a terra prometida. E aqui se plantando, tudo dá", contou posteriormente Schwantes, no filme "Os Homens do Presidente (ou Plante que o João Garante)", de Paulo Rufino, de 1984, repetindo o bordão de Pero Vaz de Caminha.

Assim começava uma das primeiras histórias de colonização do Norte do País por fazendeiros do Sul. Um processo que culminaria em transformar o Mato Grosso no maior produtor de grãos do País, e também num dos campeões de desmatamento da Amazônia.

De acordo com o último levantamento do Prodes, o sistema de monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) que fornece as taxas oficiais de perda anual da floresta, Mato Grosso, Rondônia e Amazonas foram os três Estados a concentrarem o aumento de 16% no corte raso registrado para o bioma entre agosto de 2014 a julho de 2015. Entre eles, Mato Grosso foi o líder, registrando a derrubada de 1.508 km² - quase 26% do total desmatado no ano na Amazônia Legal. No acumulado histórico, o Inpe calcula que foi perdido no Estado cerca de 40% da área de floresta.

Na divulgação dos dados na última quinta-feira (26), a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, se disse surpresa com o avanço porque a maior parte das terras no Estado é de proprietários particulares (e não de terras sem dono - como ocorre no Pará, ainda o líder de desmatamento em área absoluta -, que são em teoria mais fáceis de escapar de uma multa porque não há um responsável pelo local). E a maioria do produtores, segundo Izabella, já fez o Cadastro Ambiental Rural (CAR), instrumento adotado na revisão do Código Florestal, em 2012, com o propósito justamente de conter o avanço do desmatamento.

No campo, porém, a situação é mais complicada, explicam organizações não-governamentais que atuam no Estado. De acordo com Alice Thualt, diretora adjunta do Instituto Centro de Vida (ICV), ainda há uma lentidão na implementação do Código Florestal.

"Isso coloca o produtor rural e o assentado em uma situação de não saber muito bem o que vai acontecer, quando e como vai ser a validação do Cadastro Ambiental Rural (CAR). Isso tudo cria incerteza quanto às regras do jogo, que faz com que nessas regiões não se tenha Estado. Então as pessoas acham que podem apostar na ilegalidade", afirma. "Essa taxa de desmatamento que a gente tem hoje lembra muito um tempo que a gente achava que já tinha passado", complementa. O valor atual é o mais alto desde 2008.

Os dados sugerem que as metas do governo para conter as emissões de gases estufa, cuja principal fonte historicamente foi o desmatamento da Amazônia (veja gráfico abaixo), podem ficar comprometidas. O plano é chegar a 2020 com uma taxa anual de 3.925 km² e zerar o desmatamento ilegal até 2030.

Para Andrea Azevedo, diretora-adjunta do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), há esse risco se não houver uma mudança na forma de combate ao problema e a criação de incentivos para se manter a floresta em pé. A ilegalidade só em Mato Grosso, segundo admite a Secretaria de Meio Ambiente, é de 90%. "O governo do Estado tem de dar uns sinais claros de que não tolera ilegalidade, mas não é para 2030, é a partir de agora, de 2016", diz Andrea.

Fiscalização. Em meados de outubro, a reportagem acompanhou duas ficalizações do Ibama: um sobrevoo entre Sinop e Braz Norte, no centro-norte do Estado, e uma operação, por terra, de apreensão de madeira ilegal em Feliz Natal, na direção do Parque Indígena do Xingu (leia mais sobre a região no capítulo 2).

Os diferentes alvos das operações dão um pouco o tom de como o desmatamento é disseminado. No primeiro caso, os fiscais apuravam o alerta de que uma área dentro de um assentamento rural estava sendo desmatada. Por imagens de satélite eles tinham visto que em questão de uma semana, 117 hectares desapareceram. No segundo caso, tentavam flagrar a retirada de madeira de uma fazenda que tinha sido invadida por madeireiros.

As duas histórias não são tão díspares quanto podem parecer, uma vez que fazem parte do longo processo de ocupação e destruição da floresta. No sobrevoo de 240 km, apesar de a região ser praticamente dominada por plantações de soja, ainda é possível ver grandes trechos de floresta - assim como as ameças sobre eles. De tempos em tempos estradinhas de terra vermelha surgem como cicatrizes marcando os blocos verdes. É por elas que madeireiros atravessam a floresta retirando as madeiras mais nobres.

Este é o primeiro passo da degradação que, ao final de alguns anos, pode levar à derrubada total da mata. Depois de todas as madeiras de valor comercial serem retiradas, o fogo é colocado aos poucos, por um, dois anos. Tem gente que planta pasto sob algumas árvores remanescentes - que são "preservadas" para enganar a fiscalização -, e instala o gado ali, que pisoteia o que restou de vegetação. "Eles vão fazendo aos poucos, ao longo de anos, para que a gente não veja", afirma Marcus Keynes, superintendente do Ibama no Mato Grosso. Em alguns casos, só plantam o pasto. "Nunca pisou um boi no local, mas o infrator vai alegar que é se trata de uma área consolidada, com uso comercial."

Foi o que se viu quando chegamos ao local do alerta do satélite. A floresta tinha ido abaixo, arrancada no "correntão" (em que dois tratores se movem paralelamente com uma corrente grossa presa entre eles, arrastando tudo o que está pela frente) e depois incendiada.

Sacos de sementes de capim foram encontrados largados no terreno. Uma etapa posterior poderia ser o plantio de grãos.

"Às vezes a gente consegue chegar antes, não foi o caso hoje", lamentava Laura Ferraz, analista ambiental do Ibama. "O barulho do correntão arrastando a floresta, as árvores caindo... É um som triste, agonizante. Parece que a floresta está chorando."

Sensação de impunidade. O ideal, portanto, é impedir o avanço antes de a degradação da área estar instalada. Uma das linhas de fiscalização é agir na primeira ponta, com os madeireiros, que sempre estão um passo à frente. Uma das estratégias deles, quando é feita uma apreensão, é dar um jeito de boicotar o caminhão para que ele não possa ser movido. Tiram câmbio, pneus, até o motor. Se perder a madeira para o Ibama é ruim para os criminosos, pior ainda é perder caminhões ou os tratores usados para derrubar a floresta.

Na operação acompanhada naquela noite pela reportagem, a equipe deteve 4 caminhões, com 44 toras de madeira, duas motos e seis pessoas durante operação de apreensão de madeira ilegal em fazenda perto de Feliz Natal. Um fugiu, depois de jogar o caminhão na mata.

Alguns fatores parecem ter colaborado com o aumento do desmatamento no Estado este ano. Por um lado, relataram os fiscais do Ibama, uma lei estadual que autoriza a limpeza de pasto (já consolidado), tem sido usada como desculpa para "esquentar" um desmatamento ilegal. Pode ser o caso que vimos no assentamento, já que havia sementes de capim espalhadas. A artimanha seria contratar um engenheiro para fazer um laudo atestando que aquilo ali, alguns anos antes, era um pasto abandonado onde algumas árvores tinham crescido de novo. Em vez de uma nova área de floresta derrubada.

Por outro lado, suspeita-se que a obrigatoriedade de fazer o Cadastro Ambiental Rural tem levado muito proprietário de terra a desmatar um pouco mais antes de se registrar e computar a nova área como se fosse um velho desmatamento.

São artifícios que, ao serem confrontados com imagem de satélite, caem por terra, porque nas imagens é possível ver quando foi o corte e qual era o status da área antes. Mas até aí, o estrago já foi feito. E muitos agem acreditanto que simplesmente vão sair impunes.

Elaine Corsini, secretária adjunta de Meio Ambiente do MT, reconhece que isso está acontecendo. "O produtor pensa: 'Ah, na hora que eu entrar no CAR não consigo mais desmatar nada, então eu vou fazer antes'. E ele esquece de avaliar que todo desmatamento depois de 2008, se não for em área passivel, ele vai ter que recompor. Vai ter que plantar, e o custo é muito maior, mas é uma estratégia. Vai que dá certo, vai que não chega em mim, né? Vai que eu consigo passar e isso fica pra trás, eles pensam."

Em outubro, ainda antes de o Prodes ser divulgado, Elaine explicou que as ações de corte da floresta estavam concentradas em poucos municípios, sendo Colniza, no noroeste, o líder. E que, por isso, a fiscalização estadual, em parceria com o Ibama, estava concentrada ali.

Na última quinta (26), quando os números oficiais saíram, viu-se que a região de Colniza segue à frente, mas que pelo menos outras cinco áreas, espalhadas pelo Estado, sofreram com o corte raso. O que fez Izabella declarar: "Parece que resolveram fazer desmatamento em série em várias áreas simultaneamente". A ministra disse que iria convocar os Estados (além do MT, Rondônia e Amazônia, que também tiveram aumento da taxa) para reorganizar a estrutura de combate ao desmatamento.

Um outro problema no Estado veio à tona quando foram anunciados os números do Prodes. De acordo com Izabella, uma regra estadual criada neste ano, que concede autorizações provisórias de funcionamento para propriedades rurais, estaria sendo mal utilizada. Ele citou dois casos de fazendeiros que tiveram suas áreas embargadas por desmatamentos ilegais, conseguiram a autorização provisória, usaram-na para pedir o desembargo e depois voltaram a desmatar. O Ibama iniciou uma investigação sobre esse procedimento e a superintendêcia de Mato Grosso, incluindo Keynes, deve ser exonerada.

Ele não foi localizado pela reportagem para comentar o caso. Jair Schnitt, coordenador geral de fiscalização ambiental do Ibama, afirmou que esse não é o único e talvez nem o principal responsável pelo aumento do desmatamento, mas favorece a sensação de impunidade. "O que está por trás disso é a percepção de que sempre dá jeito, sempre é possível regularizar um desmatamento ilegal. Mesmo quem não teve essa autorização, fica com uma expectativa de que vai ter uma nova regra que vai permitir ajustar as coisas."

Produção x proteção. Elaine afirma que o aumento é um problema muito mais das pequenas propriedades, que ainda, segundo ela, ainda não encontraram alternativas de ter ganhos financeiros sem desmatar, do que das grandes. Para a secretária adjunta, os grandes já conseguiram se desnvincular da noção de que é preciso abrir mais terras para o plantio.

Uma pesquisa conduzida pelo Ipam, porém, sugere que essa questão não está tão bem resolvida. "O Mato Grosso tinha, em 2003, 2004, grandes desmatamentos e nos últimos anos passou a ter, em sua maioria, cortes em áreas de até 30 ha. Mas o que temos visto é que vários desses pequenos polígonos ocorrem em uma mesma grande propriedade. Mudou a estratégia. Significa que há uma tentativa do produtor de expandir sua área de cultivo com pequenos desmatamentos para dificultar a fiscalização", explica Andrea.

"Só que para as commodities e esse produtor que está inserido numa cadeia, não tem motivo mais de ter desmatamento hoje em Mato Grosso."

Não é a visão de muitos proprietários de terra, como Neuri Wink, de 53 anos, proprietário da Fazenda Certeza, em Querência. Também original do Rio Grande do Sul, como Amândio Micolino, ele chegou a Mato Grosso no final dos anos 80, em uma outra onda colonizadora.

"Quando os órgãos autorizaram a ter um projeto de colonização, estava claro que o objetivo era justamente ocupar e transformar isso aqui em uma região de produção agrícola. Depois ficou uma incoerência querer penalizar e impedir esse processo. A legislação era menos severa na época, permitia avançar mais para buscar viabilidade econômica, porque quando chegamos não tinha telefone, não tinha saúde, educação, uma igreja, estrada. Era carente de tudo", recorda.

"Na época eu achava que se chegasse a uns 300 hectares seria um médio produtor, mas hoje, quem tem 500 ha é um produtor pequeno. Mudou o nível da régua da viabilidade econômica", afirma. A fazenda Certeza tem 1.288 hectares.

Wink e Micolino contam que, no contrato de compra da terra, estava escrito que os proprietários poderiam desmatar até 80% de suas terras. Isso, no entanto, já não batia com os valores do então Código Florestal, que falava em 50% de proteção. Hoje a cifra se inverte: 80% tem de ser protegido no formato de Reserva Legal, e margens de rio e topos de morro têm de ser mantidos no formato de Área de Preservação Permanente.

Questionado sobre se já ouviu falar na relação entre desmatamento e as mudanças climáticas, Wink desconversou. "Achar que se não tivesse tirado a mata estariam melhores os grandes centros? Não é verdade. Teria menos oferta de alimento e estaria tudo mais caro. Somos nós aqui que fazemos com que a comida chegue na mesa de todos os brasileiros. Agora eu pergunto, qual é o cidadão lá na Grande São Paulo que, se tivesse um terreno que vale milhões, concordaria que só pode usar 20% disso? Para nós isso é imposto", queixou-se.

Reparação. Ainda assim, ele aceitou reflorestar as APPs quando percebeu que a água começava a diminuir em sua terra. "Eu cometi alguns pecados, mas me redimi, recuperei, assim como os vizinhos recuperaram. Todo mundo fez sua parte e está fazendo sua parte." Mas sobre Reserva Legal, que ele declara manter em 33% do terreno, ele não quer muito ouvir falar em aumentar.

"Eu concordo que tem de preservar a nascente e preservar uma porcentagem da área, mas tinha de ser inversa. Onde é apto para produção, como é aqui, tinha de produzir em 80% da área e preservar só 20%. Seria de bom tamanho. Ecologicamente tenho consciência tranquila de que não estou prejudicando o meio ambiente de forma alguma."

Micolino, que também recuperou APP e um pouco de sua Reserva Legal, se mostra mais arrependido. "Depois de uns 20 anos, vi que começou a desandar demais o desmatamento. Começaram a entrar uns grandes, desmatar de uma vez mil, dois mil hectares. Eu pensei: isso aí vai dar um desastre. Cada vez fica pior. A água e as árvores são um casamento, nenhum vive sem o outro. Aí percebi que precisava começar a reflorestar."

Quando questionado sobre por que acha que vai ocorrer um desastre, Micolino dá uma resposta que orgulharia até o mais acirrado ambientalista. "Se tem uma tormenta, é a mata que ajuda a segurar. Se fica tudo livre, o vento cria mais força. E a raiz da árvore é um encanamento que leva a água pra baixo. O lençol tá fracassando. O que tá havendo, com esse calorão que temos? Eu sei: o que acontece é que o equilíbrio da natureza está sendo destruído."

Reflorestar é preciso

Uma das estratégias do governo federal para lidar com as emissões de gases de efeito estufa provenientes do desmatamento legal que continuar ocorrendo no País é reflorestar 12 milhões de hectares até 2030. Pela meta apresentada pelo País para a Conferência do Clima da ONU, só o desmatamento ilegal da Amazônia será zerado até aquele ano, mas a parcela legal, que ainda será permitida, é igualmente emissora de carbono na atmosfera. E uma saída, defende o governo, é incentivar o reflorestamento para reabsorver parte desse CO2.

O desafio, porém, pode não ser facilmente alcançado. Primeiro, dizem os especialistas, porque recuperar florestas, no modo mais tradicional, com mudas, é caro. Em segundo, porque ainda não há uma produção tão intensa de mudas no Brasil. Em terceiro, porque a relação entre corte e plantio, quando se consideram as emissões de carbono, não é de 1 para 1.

"Quando você recupera um hectare, não significa que você pode desmatar um hectare. A equivalência, em termos de carbono, é completamente diferente na floresta tropical. Estudos mostram que é preciso trinta vezes a mesma área para sequestrar a mesma quantidade de carbono que havia na floresta madura", explica Andrea Azevedo, diretora adjunta do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia. "Não é bom comparar meta de desmatamento com recuperação porque é muito mais fácil e barato o desmatamento do que restaurar uma área", complementa.

Uma experiência que vem sendo realizada desde 2006 pelo Instituto Socioambiental (ISA) de recuperação de áreas desmatadas, inicialmente no Mato Grosso e depois ampliada para outras partes do País, dá um pouco a ideia das dificuldades a serem superadas. O trabalho da Rede de Sementes do Xingu, criada com o objetivo de trabalhar com produtores rurais para a recomposição de margens de rio, conseguiu em nove anos recuperar somente 3 mil hectares.

O projeto teve início como uma demanda dos indígenas do parque do Xingu, que sentiam que a água do rio estava piorando por conta de agrotóxicos e outros tipos de contaminação da agricultura que caiam nas cabeceiras. O Código Florestal estabelece que as matas ciliares e topos de rio têm de ser protegidos em propriedades privadas na categoria de Áreas de Preservação Permanente. Mas, só na Bacia do Xingu, de acordo com cálculos do ISA, o passivo de APP (áreas que foram desmatadas ilegamente) é da 300 mil hectares.

"No começo os proprietários não gostavam da ideia. Hoje a gente pode falar sobre APP com todos eles que ninguém te põe pra correr. Mas Reserva Legal (outra categoria do Código Florestal, que prevê a preservação de 80% da propriedade no Mato Grosso) é uma discussão ainda grande", conta Heber Queiroz Alves, analista de geoprocessamento do programa.

A sensação é compartilhada pelo secretário de Agricultura de Querência, Eleandro Ribeiro: "O pessoal já tem uma grande consciência da questão da preservação dos recursos hídricos. O mais difícil mesmo é conseguir recompor Reserva Legal, que é o que pode vir a impactar na produção e na sustentabilidade da propriedades. Eles têm esse receio e a resistência é maior", diz. Por isso, palpita, planos grandiosos de recuperação podem enfrentar dificuldade de serem cumpridos.

Muvuca. A resistência inicial era o custo. Foi quando surgiu a ideia de usar sementes em vez de mudas. E uma novidade: máquinas. Para plantar florestas como se plantam grãos. "Chegamos com isso a 1/3 do custo do plantio tradicional. E ganhamos tempo. O que levava uma semana com mudas para plantar passou a quatro horas. Isso tudo facilitou muito a adesão", comenta Rodrigo Junqueira, coordenador do Programa Xingu, do ISA.

A técnica é conhecida como muvuca e consiste em misturar sementes de dezenas de espécies e fazer a semeadura de todas elas ao mesmo tempo com as plantadeiras. São acrescidas também plantas exóticas, mas de ciclo de vida curto, para ajudar no crescimento das demais. Elas são conhecidas como adubos verdes.

"As espécies florestais nativas demoram para germinar, então no processo de muvuca a gente tenta imitar a floresta. Uma floresta tem plantas de extrato baixo, que são as rasteiras, as de extrato médio, que são as arbustivas, e as de extrato alto, que são as secundárias. Os adubos verdes são usados para imitar isso - eles são os que nascem primeiro. É o caso do feijão de porco, a grotalária e o feijão guandu. Elas arrumam a cama para as nativas, fazendo sombra para as outras germinarem. Depois elas morrem e só sobram as nativas", explica Junior Veiga, técnico do ISA.

A matéria-prima vem de uma rede de coletores - pequenos proprietários e indígenas que pegam as sementes nas reservas florestais de suas próprias terras ou de outros fazendeiros que permitem o acesso para garantir a maior variedade possível.

Proprietários de terra como Amândio Micolino e Neuri Wink (leia mais sobre eles no capítulo 1), mas também empreendimentos como hidrelétricas, que precisam fazer compensação ambiental, se beneficiaram do processo.

"Depois que reflorestou, encheu de bicho. Agora aqui tem onça. Tinha sumido. Tem macaco, tem quati. Mas a chuva diminuiu muito na região. Desde que cheguei aqui, não chove mais nem a terça parte do que era antes", conta Micolino, um dos primeiros colonizadores a deixar o Rio Grande do Sul para desbravar o Mato Grosso, ainda nos anos 1970. Preocupado com o avanço do desmatamento, ele começou a plantar florestas e recuperou 9 hectares de mata.

De acordo com Alves, o modelo poderia ser usado para fazer o reflorestamento dos 12 milhões de hectares no Brasil. "Só que não é algo que vai funcionar de um ano para o outro. A rede de sementes começou em 2006. Levou um tempo para saber o que plantar, em qual área. E não é só plantar, tem de manejar, não pode deixar pegar foto. O projeto serviu como um laboratório, houve um aperfeiçoamento da técnica que a gente pode transmitir", afirma.

"Mas ainda assim, só alcançamos até agora 3 mil ha. Quando se fala em 12 milhões, é uma meta ousada, que precisa de planejamento e muita matéria-prima."

Ajuda das formigas. Para reunir cerca de 17 toneladas de sementes por ano, que são comercializadas em pacotes fechados por projeto de restauração florestal, a rede conta com 420 coletores, que nem sempre conseguem cumprir suas cotas por problemas climáticos.

Ivan Loch, coletor e técnico da secretaria de agricultura de Canarana, conta que segue um calendário de florescimento e frutificação das árvores, mas que nos últimos tempos tem notado diferença. "Não sei se é por causa das mudanças climáticas, mas os frutos estão vindo mais cedo. A chuva também está caindo fora de hora e as culturas não estão recebendo a chuva nos períodos de costume."

O trabalho só fica mais fácil quando outros animais ajudam. "O melhor jeito de colher copaíba é que com a ajuda das formigas para achar as sementes. Elas já deixam tudo pronto pra gente: limpam e deixam as sementes amontoadas. Aí a gente só precisa seguir a trilha para pegar de uma vez só três a quatro quilos."

MAIS QUENTE E SECO

O relato de Yakari Kuikuro, jovem liderança indígena, resume as impressões que tribos do do Parque do Xingu, localizado no norte do Estado de Mato Grosso, têm sentido nos últimos anos. Ele conta que tem uma ideia do que são as mudanças climáticas, e diz que desconfia que elas são em parte responsáveis pelo que está acontecendo no parque, mas suspeita que a principal causa seja um problema bem mais próximo, o desmatamento da floresta amazônica no entorno do Xingu.

Nas palavras de Yakari, o parque está virando uma ilha. De fato, entre 1997 e 2014, houve uma perda de 29 mil km², levando a uma redução de 33% na mata que existia na Bacia do Xingu (veja evolução da perda nos mapas abaixo), de acordo com dados do Instituto Socioambiental e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). E algumas observações dos indígenas estão ganhando respaldo da ciência. De acordo com uma pesquisa recém-divulgada, a conversão de floresta por pasto e soja tem elevado a temperatura local e diminuindo a quantidade de umidade que sobe para a atmosfera.

Este é um dos principais resultados de toda uma linha de investigação que vem, há mais de dez anos, analisando os impactos que a perda da floresta tem sobre o clima, a água, e, em última instância, sobre a sobrevivência da própria floresta - ou o que vai restando dela. O trabalho, realizado numa área de mata nativa dentro da Fazenda Tanguro, do grupo Amaggi (de Blairo Maggi, um dos maiores produtores de soja do Brasil), ficou famoso por tocar fogo na floresta para descobrir justamente como o fogo a empobrece.

Parece meio paradoxal, e às vezes soar meio óbvio, mas o trabalho vem trazendo uma série de esclarecimento sobre com quanta destruição a floresta consegue lidar até atingir o seu limiar e também sobre como anos de seca extrema, como ocorreu na região Amazônica em 2005 e 2010, e as mudanças climáticas podem intensificar o poder de destruição dos incêndios.

5oC mais quente, 30% mais seco. Para chegar ao novo resultado, porém, os pesquisadores não precisaram destruir mais nada além do que já foi alterado por proprietários da região do Alto Xingu, onde fica a fazenda, entre os municípios de Canarana e Querência. Eles usaram apenas imagens de satélite e dados coletados por torres de medição de fluxo de gases, água e temperatura para traduzir em números uma sensação que não só os índios do Xingu estão relatando, mas também qualquer pessoa que saia de uma floresta para um campo de soja pode sentir.

"Quando converte floresta para soja, ocorre um aumento na temperatura da superfície de mais de 5oC. Quando transforma em pastagem, aquece cerca de 4oC. Além disso, ocorre uma redução na evapotranspiração, que é a quantidade de água que retorna para a atmosfera em forma de vapor, de 30% nos campos de soja. É essa água que vai se transformar depois em chuva", afirma o ecólogo Divino Vicente Silvério, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), que fez a pesquisa em seu doutorado na Universidade de Brasília.

"Com as mudanças atuais, já existe uma redução na preciptação em alguns pontos dos País. A umidade que sai da Amazônia, desce em correntes de ar que vão para as regiões Centro-Oeste e Sudeste e lá vão cair em forma de chuva. Se tem menos umidade indo para a atmosfera aqui, pode estar resultando em mudanças no padrão de precipitação nessas regiões", complementa.

O estudo, publicado no final de outubro na revista Environmental Research Letters, analisou as transições de uso da terra que ocorreram na Bacia do Xingu entre 2001 e 2010. Segundo Silvério, nesse período, a conversão de floresta para pastagem ou lavoura e também a transformação de pasto em agricultura fez com que 35 km³ de água deixassem de ir para a atmosfera em forma de vapor.

"Para comparação, esta quantidade de água seria suficiente para abastecer São Paulo (aproximadamente 12 milhões de pessoas consumindo em média 175 litros de água por dia) por 45 anos", calcula.

O trabalho buscou medir, ainda, o papel das terras indígenas no clima local, considerando cenários hipotéticos com a existência do Parque do Xingu e sem ele. "Apesar de essas áreas protegidas corresponderem somente a 19% da bacia do Xingu, elas respondem por 30% da evapotranspiração da região. Se as terras indígenas tivessem sido desmatadas na mesma proporção das propriedades no seu entorno, a temperatura regional seria hoje 0,5oC mais quente."

Clima global. Mas o que realmente pode se dizer que já está acontecendo no Brasil que seja provocado pelas mudanças climáticas? Faça essa pergunta a um climatologista e espere uma careta. É que essa é uma questão complexa, que não tem exatamente o exemplo A, B e C. Mais comum é ouvir: A mudança climática não vai trazer nenhum problema novo que a gente nunca viu, mas vai agravar aqueles conhecidos de todos nós e com os quais a gente ainda não sabe lidar muito bem, como secas e inundações. E vai aumentar a variação e a frequência desses extremos.

Na semana que passou, a Organização Meteorológica Mundial anunciou que, faltando pouco mais de um mês para o ano acabar, 2015 já bateu o recorde de ano mais quente da história. Com a elevação, provavelmente o planeta já atingiu a marca de temperatura média 1oC mais quente que a observada em períodos pré-Revolução Industrial.

"É normal que exista variabilidade entre anos de seca e de chuva, mas coloque 1oC a mais sobre isso. Se muda a média, aumentam os extremos", resume Brando. Ele cita como exemplo as secas históricas na Amazônia de 2005 e 2010. "Não necessariamente foram causadas pelas mudanças climáticas, mas o clima mais quente provavelmente deixou esses eventos mais intensos", complementa.

O mesmo vale dizer, por exemplo, sobre a seca inédita que atingiu o sistema Cantareira no último verão, ou a seca que já dura quatro anos no Nordeste (leia mais sobre ela no capítulo 3).

"O que ocorre a cada cem anos, como a seca do Sudeste em 2014, no futuro vai ser mais comum. Não sabemos qual será a frequência de repetição, mas teremos mais rapidez de alternância para os dois lados, seco e chuva, e vamos ter de aprender a lidar com isso", afirma o climatologista Carlos Nobre, presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

As modelagens climáticas para o Brasil apontam também um risco de intensificação do processo de desertificação pelo qual passam hoje cinco regiões do Nordeste: em Pernambuco, Piauí, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. É o que explica o climatologista José Marengo, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). "A desertificação é um processo de degradação ambiental, que pode ser agravado pela mudança de clima. Por exemplo, pela redução ou sumiço das chuvas. Os núcleos de desertificação estão em áreas semiáridas, onde as projeções dos modelos mostram condições futuras de aridificação, ou seja, evapotranspiração maior que precipitação e isso eventualmente pode levar a desertificação."

Algumas ondas de calor - evento que ganhou as notícias neste ano na Índia e na Europa -, também já foram observadas no Brasil. Em fevereiro de 2010, uma mistura de temperaturas acima de 39oC e umidade do ar abaixo de 21% levou à morte 50 pessoas na Baixada Santista.

A referência é que dias seguidos com temperaturas acima de 35oC, em que a mínima não baixa a menos de 21oC, e com umidade de 100% podem aumentar os riscos de enfartes, especialmente em quem tem problemas cardíacos e em idosos. No futuro, as modelagens climáticas apontam que regiões Norte e Nordeste devem ser as mais afetadas por ondas de calor.

"Assim como vários outros eventos, esse também acontece de vez em quando, é normal. Mas com o planeta 1oC mais quente, tende a ficar mais grave", explica Nobre. As metas que os países estão levando para a Conferência do Clima de Paris deixam o mundo no trilho de ficar pelo menos mais uns 2oC mais quente, além desse 1oC, até o final do século. "Isso vai diminuir o limiar que as pessoas poderão suportar ao ar livre.", complementa.

Já faz mais de uma década que ele retornou ao povoado de Seridó, no município de Glória, depois de viver 33 anos em São Paulo, e assim que chegou foi recebido com uma boa chuva que o fez achar que a seca do Nordeste era problema do passado. A secura atual, porém, já persiste há cerca de 4 anos e vira e mexe Edivaldo fica com saudade da terra da garoa.

"São Paulo é bom que sempre chove, né?", pergunta sem encontrar confirmação da reportagem. Arregala os olhos ao saber que uma seca histórica no Sistema Cantareira ameaçou o abastecimento de paulistanos. Mas desconfia que não há de ser tão ruim quanto à que vive na Bahia.

Era início de novembro, e Silva diz que já era para estar chovendo. Contava com as "trovoadas" para lhe aliviar um pouco o trabalho - encher e carregar galões de água para matar a sede das cabrinhas que cria e que, já há alguns anos, não encontram mais as fontes do recurso na natureza.

Mais cedo, seu irmão e vizinho, Ademar, de 70 anos, fora à prefeitura de Glória pedir socorro. A bomba para tirar água do poço artesiano tinha quebrado e ele ainda se queixava do preço alto do diesel para abastecer o motor. Sem o poço, os dois irmãos passaram a depender mais do caminhão-pipa, que do dia pra noite subiu o preço de R$ 40 para R$ 50.

Ademar ouviu na prefeitura uma solução que nunca tinha lhe ocorrido. Colocar placas solares em cima do poço e, com elas, gerar a energia necessária para movimentar a bomba que puxa a água. Um pequeno empresário local tentava naquele momento convencer o secretário de Infraestrutura de Glória a usar a energia solar em todo o município. Uma saída para minimizar os impactos da falta de chuva. A cidade é uma das mais de 140 da Bahia em situação de emergência por conta da estiagem. Em todo o Nordeste, são cerca de mil.

A seca que atinge a região afeta tanto o abastecimento humano, animal e a irrigação quanto a geração de energia. A Bacia do São Francisco, onde está localizada Glória, serve algumas das maiores hidrelétricas do Brasil, como a de Paulo Afonso, mas atualmente elas produzem menos da metade do que o fazem em condições normais.

Impacto nas emissões. De acordo com a Chesf (Companhia Hidroelétrica do São Francisco), o reservatório de Sobradinho, que fica à montante dos demais e é de onde é liberada a água para eles, tinha na última semana apenas 1,5% do volume útil. A vazão, que em condições normais era de 2.060 m³/s, estava em 900 m³/s, e o governo estudava baixar para 800 m³/s. Com isso, em vez de gerar 6.000 megawatts médios nas usinas de Sobradinho, Itaparica, Complexo de Paulo Afonso e Xingó, estão sendo gerados somente 2.600 MW.

Na tentativa de evitar um colapso no fornecimento de água, o volume baixo dos reservatórios tem sido priorizado para o consumo humano. Para compensar a baixa das hidrelétricas, boa parte da geração de energia que vinha de fontes hidráulicas tem ficado a cargo das termelétricas, a forma que mais emite os gases de efeito estufa responsáveis pelo aquecimento global. Outra parte vem das eólicas, fonte que tem ganhado força no Nordeste, mas ainda em ritmo lento e aquém do potencial de ventos da região.

É por conta desse acionamento de térmicas que o setor elétrico brasileiro - historicamente um dos mais limpos do mundo (ainda o é, mas a proporção de renováveis na nossa matriz vem caindo) - apresentou, entre 2011 e 2014, um aumento de 171% nas emissões de CO2.

Com essa elevação, aliada a um aumento do consumo de combustíveis fósseis para transporte (diesel e gasolina), todo o setor de energia (não somente o elétrico) está praticamente empatado com o desmatamento como os principais emissores de gases de efeito estufa no País.

Energia responde hoje por 30,7% das emissões, pouco atrás de mudança do uso da terra - jargão técnico para desmatamento -, que contribui com 31,2%. Os dados, válidos para 2014, são da última edição do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg). Essa alavancada da energia nos últimos anos, deixando para trás a agropecuária (atualmente responsável por 27% das emissões), tem levantado um alerta de que o maior desafio climático para o Brasil nos próximos anos será controlar as emissões do setor.

"Se zerarmos o desmatamento em 2030 (como é a meta do governo para a parcela ilegal da perda de florestas) e fizermos a lição de casa na pecuária, poderemos chegar a 2030 com a energia representando mais de 50% da emissões", estima o engenheiro florestal Tasso Azevedo, coordenador do Seeg.

Alternativa à falta d'água. Na pequena escala do povoado dos irmãos Ademar e Edivaldo, mas também para grandes empreendimentos, o aproveitamento não só do sol, mas também do vento, para gerar energia tem feito cada vez mais sentido no seco Nordeste. Considerando que outros cantos do Brasil também podem ter uma redução das chuvas - como a região Norte, onde fica a usina de Belo Monte e estão previstas as hidrelétricas do Tapajós -, investir nas energias renováveis faz sentido para todo o País.

A lógica é simples. "Por mais que sejam fontes intermitentes (que não produzem o tempo todo: se não tem vento ou sol, não tem energia), quando usinas de eólica e solar estão a pleno vapor, e se houver um grande número delas pelo País, com uma melhor rede de linhas de distribuição nacional, elas podem poupar a água que está no reservatório e diminuir a necessidade de ligar as térmicas", explica Ricardo Baitelo, coordenador da campanha de energia do Greenpeace.

E, ao menos para o Nordeste, essa relação de complementaridade é muito direta. Quando chove, não tem muito vento, mas é na seca que tende a ventar mais e, claro, o sol está mais forte. Além disso, se o sol só se faz presente durante o dia, é à noite, na região, que os ventos são mais intensos.

Foi nesse contexto que foi inaugurado, em setembro, o primeiro parque híbrido do Brasil, a 74 km de Glória, no município de Tacaratu (PE), unindo num mesmo espaço a geração de energia a partir do vento e do sol. A planta, da Enel Green Power, tem 34 aerogeradores, com capacidade instalada de 80 megawatts (MW), e 35.650 placas solares, com capacidade de 11 MW. Isso significa que são gerados 340 gigawatts/hora/ano, o suficiente para fornecer energia para 170 mil residências.

Douglas Meneguel, engenheiro eletricista da Enel, explica que a planta de eólica estava sendo instalada no ano passado quando houve um leilão estadual para a contração de energia solar. A empresa percebeu que poderia ser um bom negócio aproveitar que a estrutura de conexão com o Sistema Interligado Nacional construída por eles ainda tinha espaço para a injeção de mais energia, para produzi-la com uma nova fonte.

As condições do Nordeste facilitam a integração: "Boa irradiação e pouca chuva são ideais para a solar, e os ventos aqui são constantes para a eólica", afirma Meneguel.

"A combinação de energia eólica e solar reduz os efeitos da mudança das condições meteorológicas e assegura uma produção de energia mais estável", complementa Luigi Parisi, responsável pela Enel Green Power no Brasil e Uruguai.

Apesar das cifras serem pequenas, quando comparadas com a de uma hidrelétrica, esta produção de energia solar de Tacaratu é hoje a maior do Brasil. O governo federal, no entanto, tem feitos vários outros leilões para solar, aumentando essa fatia. A própria Enel pretende quebrar esse recorde, com a instalação até o final do ano que vem que uma usina em Taboca do Brejo Velho (BA) com capacidade instalada de 254 MW.

Igreja à vista. A crise hídrica no Nordeste e a expansão de ofertas de eólica e solar se encaram quase de frente na região de Tacaratu. Do alto do morro onde ficam instalados os aerogeradores da Enel, é possível ver um dos reservatórios do São Francisco, o de Itaparica, também em seu nível mais baixo da história - cerca de 10% do volume útil. Há um ano estava em 20%.

O reservatório foi criado em 1988 alagando a antiga cidade de Petrolândia - uma nova, com o mesmo nome foi criada ao lado. Desde o ano passado, quando a seca começou a se intensificar, algumas construções que foram inundadas começaram a ressurgir. A igreja do Sagrado Coração de Jesus virou o símbolo da estiagem. Ela nunca foi completamente submersa - abóbada e telhado permaneciam de fora -, mas já há mais de um ano que a estrutura está quase toda exposta.

De barco é possível entrar no templo, que mantém, a uns 2,5 metros de altura a partir do nível da água, as marcas de onde ela chegava antigamente. Quem conta é o barqueiro e pescador Edilson Valdomiro, de 53 anos, que a vida inteira morou na região e viu sua cidade submergir. "A última vez que vi esse rio cheio faz uns cinco anos e nunca tinha visto tão baixo assim. Os peixes diminuíram muito. Pelo menos virou atração turística. Sempre vem noiva querendo fazer foto antes do casamento. Elas acham que a igrejinha dá sorte. Outro dia vieram dois velhinhos que tinham se casado aqui. Eles choraram abraçados quando viram o lugar."

No caminho até lá, restos de árvores mortas, que tinham sido alagadas no passado, reaparecem como esqueletos brancos de dentro do rio. Dali, é possível ver ao alto as turbinas de eólica. Valdomiro nunca parou muito para pensar sobre elas, mas reflete, meio de surpresa. "Melhor ter eólico do que alagar (para criar os reservatórios), né? Aqui venta muito. É mais difícil não ter vento do que ter a seca."

Mas enquanto a oferta de renováveis não é alta o bastante, a Chesf tem recorrido às termoelétricas para garantir o abastecimento de energia. José Ailton de Lima diretor de operações da empresa, explica que com a redução da geração das hidrelétricas de 6.000 MW médios para 2.600 MW, as térmicas hoje estão fornecendo 3.600 MW e as eólicas, 2.600 MW.

Isso encareceu o preço da energia. De volta à Glória, Edite Nogueira de Araújo, que mora no povoado de Ponta da Serra, conta que há um ano sua conta de luz dava uns R$ 4. Hoje são R$ 14. "E bastou bater um vento, passar uma nuvem, cair a neblina, que já falta luz", diz. Seu primo Cícero Coelho de Araújo, presidente da associação do povoado, virou defensor de colocar telhado solar em todas as casas não só do local, como da cidade de Glória. "Estamos tentando financiamento no Banco do Nordeste. Depois serão 20 anos de sossego. Se a pessoa paga hoje R$ 18 de luz, se colocar a placa solar vai pagar uns R$ 5", calcula esperançoso.

Luz para o telhado de todos. O plano de Araújo se encaixa no sistema conhecido como geração distribuída, no qual população, empresas e comércios geram sua própria energia a partir, por exemplo, de um telhado com placas solares. O excedente pode ser jogado na rede, e o valor, abatido da conta de luz.

Nos cálculos de Baitelo, do Greenpeace, o aumento da demanda por energia que vai ocorrer com o crescimento da população e a eventual recuperação da economia até 2050 poderia ser atendida só com a geração distribuída de solar.

Nesse cenário, a questão climática passa a ser não só um problema a ser atacado, como uma oportunidade de negócios. "O potencial de energia eólica e solar no Nordeste pode representar uma mudança no caminho do desenvolvimento daquela região. Se fomentar em escala, tende a gerar o estabelecimento de cadeias produtivas e uma série de serviços associados a estes setores", comenta Carlos Ritll, secretário executivo do Observatório do Clima.

Agir nesse sentido é também garantir uma salvaguarda contra um aumento muito maior das nossas emissões ou uma grave apagão no futuro. "Hoje o Brasil ainda é altamente dependente da água para a geração de energia elétrica. O que por um lado torna a matriz energética brasileira mais limpa que a média mundial, por outro a torna vulnerável se o clima mudar", afirma Roberto Schaeffer, especialista em energia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Ele coordenou um estudo sobre o setor para o projeto "Brasil 2040", que avaliou as vulnerabilidades do Brasil às mudanças climáticas nas próximas décadas. O trabalho apontou para um risco de redução de 20% no potencial hidrelétrico do País.

Também parte do Brasil 2040, estudos feitos pela Universidade Federal do Ceará calculam que temperatura na bacia do Rio São Francisco pode subir de 0,5oC a 2oC até 2040, aumentando a evaporação do solo e a transpiração das plantas (ou evapotranspiração). Os modelos, porém, são incertos sobre o impacto que o aquecimento terá nas chuvas, o que torna difícil saber como será a vazão nos rios. Pode tanto subir 50% quanto cair 20%. Incerteza que, para os pesquisadores, merece atenção do mesmo jeito.

Questionado sobre se a Chesf estava levando em conta as mudanças climáticas em seus planos futuros, José Ailton de Lima disse que "é muita especulação". Segundo ele, a análise é feita com base no comportamento do rio nos últimos 90 anos. "Isso nos trouxe um certo conhecimento. Pegamos esses dados e simulamos como vai ser para a frente. Essa vazão atual está lá nessas previsoes. A probabilidade de acontecer era pequena, mas aconteceu. Mas ninguém dimensiona seus planos pelos extremos. Isso tem custo", afirma. "Se é para levar em conta, tá bom, eu levo, mas e aí? A sociedade atual vai dizer: vou pagar 4, 5 vezes mais caro por uma obra (para um problema) que talvez não aconteça?".

Schaeffer discorda: "É preciso planejar a expansão do setor incorporando a variável das mudanças climáticas. Não podemos mais só olhar para as séries hidrológicas do passado para prever o futuro, porque ele será bem diferente."

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.