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Vergonha fundiária

CB, Brasil, p. 12
30 de Ago de 2005

Vergonha fundiária
Comunidades quilombolas correm atrás da regularização de suas terras. Das 2.228 existentes no país, só duas foram reconhecidas pelo governo. Líderes criticam a falta de empenho até na execução do orçamento

Paloma Oliveto
Da equipe do Correio

Há mais de 200 anos, seis escravas fugidas se embrenharam no sertão pernambucano, em busca da liberdade. Fizeram a promessa de que, caso conseguissem um pedaço de terra, ergueriam uma capela à Nossa Senhora da Conceição. Foi assim que surgiu o quilombo Conceição das Crioulas, a 400 quilômetros de Recife (PE). Se cada remanescente de quilombo tivesse feito promessa semelhante, seriam necessárias milhares de igrejas dedicadas à Virgem Maria para que o governo federal tomasse a iniciativa de titular os seus territórios. Embora existam 2.228 comunidades em 11 estados brasileiros, somente duas foram regularizadas desde o início do governo Luiz Inácio Lula da Silva.
Na Constituição de 1988, a posse da terra foi assegurada às comunidades tradicionais, segundo o artigo 68. Mas a lei vem sendo cumprida com lentidão. O processo de titulação e regularização demora, em média, um ano. De lá para cá, apenas 70 quilombos foram beneficiados. Como seus antepassados, idosos, adultos e crianças que se negam a sair dos locais estão expostos à violência crescente. Dessa vez, os capatazes são os jagunços de fazendeiros, que os ameaçam de morte, queimam suas casas e tentam desmobilizar as lideranças quilombolas.
Ana Emília Moreira Santos, 43 anos, tem recebido recados suspeitos. Assustada, a coordenadora da Secretaria das Mulheres Negras Quilombolas do Maranhão acusa um proprietário de terras próximas à comunidade de Matões dos Moreira, a 48 quilômetros de Codó, de tentar intimidá-la. "Quando recebeu a carta de notificação do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), dizendo que iriam fazer o estudo antropológico da área, ele começou a falar que ia me matar. E não parou mais", denuncia. O quilombo que abriga 54 famílias tem 4.114 hectares. Mas os remanescentes reivindicam uma área de 5,2 mil hectares.
O Correio entrou em contato com o Incra, órgão do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), mas não obteve retorno. A posição oficial do governo quanto à questão dos quilombolas, porém, tem sido a de alegar mudanças na legislação para justificar o atraso no processo de reconhecimento e titulação das terras. O MDA garante que está implementando um novo processo administrativo e contratando funcionários. Atualmente, há 144 processos movidos por 278 comunidades em tramitação no ministério.
Negligência
Segundo levantamento realizado pelo pesquisador do Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica da Universidade de Brasília (UnB), Rafael Sanzio, o Maranhão é o estado com maior número de comunidades quilombolas no Brasil: 642 territórios de remanescentes. Ana Emília diz que a situação dos quilombos é crítica. "As comunidades estão completamente desassistidas. Não tem energia elétrica, água potável e estrada asfaltada. A educação é péssima e, o pior, as políticas de geração de renda praticamente não existem", reclama. Os quilombolas maranhenses vivem da agricultura familiar mas, com as ameaças constantes, estão evitando as roças. "Temos medo de ir para o mato e morrer por lá", alega a coordenadora da Secretaria das Mulheres Negras Quilombolas do Maranhão.
Para a líder Maria Aparecida Mendes, 34 anos, do quilombo de Conceição das Crioulas, a presença do Estado é falha nas questões fundiárias, o que acirra os conflitos entre fazendeiros e remanescentes. "Sob muita pressão social, o governo nos deu a posse da terra em 1988. Mas até hoje os produtores rurais dizem que não foram indenizados. Parece que ninguém pensou que nesses territórios há muita grilagem. Não adianta dar a terra e nos deixar largados", critica. No final do ano passado, o Movimento Nacional de Direitos Humanos, a Universidade Federal de Pernambuco e outras instituições realizaram um ato público no quilombo, em defesa dos remanescentes, alvos de ameaças e agressões.
Apesar da titulação, os quilombolas de Conceição das Crioulas não têm acesso a todo o território de 18 mil hectares, onde vivem 750 famílias. "Vivemos sob a pressão dos fazendeiros, que dizem coisas como 'quem mexe com terra acaba morto'. Eles intimidam os mais velhos, já colocaram fogo na sede da nossa associação. Mas se tivermos que tombar para ter direito ao nosso território, vamos tombar", avisa Maria Aparecida Mendes, descendente direta de Francisca Ferreira, uma das seis escravas fugidas que fundaram o quilombo.
Retrocesso
Um levantamento divulgado pela organização não-governamental Instituto Socioambiental indica que os R$ 11 milhões do orçamento do MDA destinado ao pagamento de indenização aos proprietários rurais ficaram intactos em 2004. Este ano, a verba passou para R$ 14,4 milhões. Mas, até agora, o governo também não investiu nenhum centavo. O orçamento para reconhecimento, demarcação e titulação teve execução mínima: 8% até junho.
O líder quilombola Roberto Rosa, da comunidade São Miguel, em Restinga Seca (RS), reclama que o laudo antropológico indicando que o local pertence aos remanescentes está pronto, mas, até agora, nenhuma providência foi tomada. "Representantes do Incra estiveram aqui este mês para fazer o levantamento socioeconômico da comunidade e alegaram que há poucos técnicos, que falta estrutura e dinheiro para regularizar nossa situação", lamenta. "A gente compreende, mas parece que, ao longo desses anos, em vez do processo avançar, só retrocede. Por que os sem-terra conseguem assentamentos e nós não?", questiona.
Tataraneto de um dos fundadores do quilombo, Rosa garante que a resposta para sua pergunta está no racismo. "Nitidamente, nosso país tem uma mentalidade de que o povo negro não passa de mão-de-obra barata, que não tem direitos", acusa. "A regularização fundiária é o mínimo que esse país pode fazer como reparação ao regime escravocrata". Ele denuncia que políticos e fazendeiros da região tentam colocar posseiros contra os remanescentes, criando um clima tenso. "Primeiro, perdemos nosso território, comprado pelos fundadores, para os imigrantes que vieram para cá no século 19. Agora, estamos sendo esmagados pelo ódio. Isso aqui está ficando perigoso", alerta.

Aculturação é ameaça

Os quilombos contam a história dos negros no Brasil que não aparece nos livros didáticos. Relatos sobre heróis dos afrodescendentes, gente que desafiou os pelourinhos na luta pela libertação, fazem parte da memória dos remanescentes, orgulhosos de seu passado. Os mais velhos, porém, temem a aculturação provocada pelo estado de abandono em que os territórios se encontram. "Sem política de geração de renda, os jovens acabam indo embora para superlotar as periferias das cidades", conta Ana Emília Moreira dos Santos, 43 anos, coordenadora da Secretaria das Mulheres Quilombolas do Maranhão.
Fundado no início do século 19 por três ex-escravos que adquiriram um pedaço de terra no Rio Grande do Sul, o quilombo de São Miguel, em Restinga Seca, já sofre as conseqüências do desamparo. "Nossa dança, a religião de matriz africana, enfim, nossa cultura está se perdendo. Os jovens vão embora atrás de oportunidade, os mais velhos estão morrendo. Sob a proteção do Estado, a riqueza cultural da comunidade seria mantida", acredita o líder do quilombo, Roberto Rosa.

Memória
Na comunidade de Conceição das Crioulas, titulada em 1988, historiadores da própria comunidade tentam preservar a memória do local. O artesanato, que garantiu às seis fundadoras do quilombo o dinheiro para comprar a terra, ainda é uma atividade forte no sertão pernambucano. Famílias de remanescentes produzem bonecas, bolsas, toalhas, painéis e arranjos com fibra de caruá. A comida típica de origem angolana, o munguzá, faz sucesso entre os quilombolas, que dançam o trancelim, folguedo que mistura elementos africanos e indígenas, cultivam plantas medicinais e entregam corpo e alma às benzedeiras.
"Ainda mantemos muitas tradições. Por exemplo, cada umbuzeiro tem o nome de uma pessoa da comunidade", orgulha-se a líder Maria Aparecida Mendes. Ela lamenta, porém, que os quilombolas não tenham recursos para editar um livro com as histórias narradas pelos mais velhos.
Na semana passada, líderes de comunidades de remanescentes expuseram esse problema à ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, durante o 1o Encontro Nacional de Comunidades Tradicionais, em Luziânia (GO). Um dos assuntos mais debatidos foi a regularização fundiária de povos como quilombolas e indígenas. A ministra afirmou que o atual governo dá visibilidade a essas populações, "que não eram enxergadas pela economia brasileira como produtores, como um setor produtivo dentro do país". Segundo Matilde Ribeiro, a discussão sobre as comunidades tradicionais precisa ser fortalecida. "A minha expectativa é que possamos precisar as ações e as verbas, porque não há ação sem verba", lembrou. (PO)

CB, 30/08/2005, Brasil, p. 12

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