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Vamos aterrar a Guanabara?

O Globo, Opinião, p. 7
Autor: SANCHES, Manuel
21 de Fev de 2005

Vamos aterrar a Guanabara?

Manuel Sanches

Há anos, quando a fusão entre o Estado da Guanabara e o Estado do Rio de Janeiro estava em moda, um jornalista de "O Sol", jornal imortalizado por Caetano, sugeriu em tom de ironia que levássemos a sério a fusão, aterrássemos a Guanabara e fizéssemos ali um gigantesco estacionamento. Quase 500 bilhões de vagas. Um trilhão de reais por hora se houvesse automóveis suficientes. E comparado ao custo do aterro, que também seria altíssimo, calcularíamos o custo-benefício desta política pública e cada um de nós poderia comprar ações desta parceria público-privada. E ficaríamos ricos!

Esta relação custo-benefício, simples, simplíssima, ainda não foi feita pelo Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), cujas entranhas a série de reportagens do GLOBO veio expor publicamente. Em suma, salvar a baía vale mais do que transformá-la, por hipótese, em um estacionamento megalômano? É bom lembrar que para aterrá-la rapidamente, ao invés da agonia lenta dos próximos 300 anos, teríamos que pagar bem mais do que os 800 milhões de dólares que estamos pagando pelo PDBG, este, quase um salário-mínimo para cada um dos habitantes da bacia. E que, é óbvio, como custo de oportunidade, perderíamos todos os prazeres que a Guanabara costuma nos dar, a nós e a todos os seus visitantes. Alguns dos quais, como banhar-se em suas águas como fez a Cláudia Cardinale nos anos 50, nós já perdemos.

O modo de saber se estávamos dispostos a pagar o que pagamos e se estaríamos dispostos a pagar ainda mais pelo PDBG II é, simplesmente, perguntar. Como faz qualquer empresário que quer vender o seu produto. No caso das políticas públicas isto se faz através de um virtual leilão, em pesquisa estatisticamente significativa, à semelhança do que se passa nos leilões onde se avaliam valores não monetizáveis de obras de arte. O custo de uma pesquisa deste tipo, diante do montante dos programas de despoluição, é insignificante, e, no entanto, ainda não sabemos se o contribuinte, como qualquer consumidor, quer ou não pagar por este produto.

Independentemente da eficiência ou não do PDBG - cuja avaliação é função explícita do Tribunal de Contas - a minha opinião é de que vale a pena pagar por uma Baía de Guanabara limpa, mesmo que não sejam aquelas águas cristalinas onde D. João VI costumava se banhar. Bastavam as águas da Cardinale.

Para que os governantes possam definir o que fazer com o programa, é necessário analisar os recursos que já foram usados, os que ainda necessitarão ser consumidos, comparar os benefícios a serem usufruídos e, enfim, confrontar custos e benefícios com outros programas que foram ou possam ser implantados no Estado do Rio, como o metrô, os Cieps, o Favela-Bairro, ou mesmo com um fantástico e hipotético estacionamento. Qual foi (ou será) o melhor investimento? E consultar a população se ela está disposta a pagar pelos benefícios futuros.

É possível usar o turismo, a pesca, a balneabilidade, o valor de venda e de aluguel de imóveis à beira-mar em áreas limpas e poluídas, o custo de transportes para achar praias mais longínquas, e muitos outros indicadores para termos uma idéia de quanto podemos estar dispostos a continuar investindo para ver a baía menos poluída.

Os 250 reais per capita que a população da bacia da Guanabara paga pelos benefícios futuros parecem valer a pena, mesmo que se adicionem os custos de ineficiência e de futura manutenção.

Mas os custos não devem ser distribuídos igualmente pelos usuários, já que alguns usufruem mais benefícios que outros. Como os turistas que se dispõem a pagar mais para verem pela primeira ou segunda vez aquilo que nunca viram. Como as empresas públicas e privadas, a indústria pesqueira, os portos, os navegantes, que podem usar a água até o limite máximo de sua recuperação. Por este uso devem pagar ou negociar os seus direitos. Estabelecido o mercado, calculados os custos e benefícios mantemos a Baía de Guanabara e ainda nos livramos de um indesejado aterro para estacionamento de automóveis.

O Globo, 21/02/2005. Opinião, p. 7

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