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Vale do Javari agoniza com malária e hepatite

O Globo, O País, p. 10-11
27 de Mai de 2008

Vale do Javari agoniza com malária e hepatite
Reserva no Amazonas onde vivem 3.700 índios têm índices de mortalidade infantil de países africanos miseráveis

Demétrio Weber Enviado especial

A reserva indígena Vale do Javari, área do tamanho de Santa Catarina localizada no Oeste do Amazonas, agoniza com a malária, a hepatite e índices de mortalidade infantil só comparáveis aos do Afeganistão e de países miseráveis e conflagrados na África. A reserva abriga 3.700 índios, espalhados em 50 aldeias. Há um número desconhecido de tribos isoladas na região, onde o impacto das doenças é ignorado.
A dificuldade de acesso e de remoção de pacientes graves e a falta de estrutura para a atuação dos agentes de saúde não são os únicos problemas. A Fundação Nacional de Saúde (Funasa), órgão do Ministério da Saúde responsável pelo atendimento indígena, não tem médico algum na região, só enfermeiros e auxiliares. Vale repetir: não há médico nos 8,5 milhões de hectares da terra indígena Vale do Javari.
A taxa de mortalidade infantil na reserva, no ano passado, foi de 123,07 óbitos de menores de 1 ano para cada mil bebês nascidos vivos, índice cinco vezes maior do que a média nacional entre não-índios (22,6, em 2006) e duas vezes e meia acima da média indígena (48,5). Apenas o Afeganistão e seis países africanos, entre eles Serra Leoa, Angola e Libéria, têm taxas maiores, entre os 194 países e territórios monitorados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Mas nenhum supera a aldeia de Massapê: 277,7.
`Antes, a gente morria de velho'
A malária, doença transmitida por mosquito, debilita toda a população. As crianças são as principais vítimas. Segundo a Funasa, os casos de malária superaram o número de habitantes da reserva em 2007, o que significa que pessoas foram infectadas mais de uma vez no ano. Já a hepatite B atingia 7,7% dos moradores, dos quais boa parte não recebe tratamento.
A Funasa lançou em abril uma operação com apoio das Forças Armadas, ao custo de R$ 3 milhões. Até junho, helicópteros levarão os agentes às tribos, onde barcos e soldados dão apoio logístico. Médicos foram recrutados em outras cidades. Entre 15 e 19 de maio, o GLOBO acompanhou a incursão em três aldeias dos marubos: Maronal, São Sebastião e Fonte Boa.
Em São Sebastião, 38% dos índios estavam com malária, incluindo o cacique Maiãpa, de 62 anos, cujo nome civil é Said Reis, e o agente indígena responsável pelo posto local da Funasa, Uaképa, ou Américo Miguel Doles.
- A malária já matou muita gente. Antes, se morria de velho ou de mordida de cobra - disse o cacique Maiãpa, que se tratava da segunda malária no ano.
Os marubos receberam a equipe com desconfiança. Anos atrás, dizem, agentes de saúde foram à região para coletar sangue, mas nunca retomaram. Em Maronal, foi preciso um dia de reunião com o diretor de Saúde Indígena da Funasa, Wanderley Guenka, para convencê-los.
Seqüestro para garantir posto
Em São Sebastião, onde o material de construção do futuro posto de saúde ainda espera o início da obra, os ânimos se exaltaram. As sete garrafas de álcool de limpeza que sumiram da bagagem do dentista da equipe podem ter ajudado - o alcoolismo preocupa o governo, embora a dificuldade de acesso à região reduza o problema.
Dois dias antes, os índios de São Sebastião, cuja população é de 98 pessoas, já haviam cogitado seqüestrar o diretor da Funasa. Eles queriam um documento por escrito com a promessa de início da construção.
Como a maioria não fala português, a reunião teve um intérprete. Constrangido, ele traduziu para Guenka a frase do agente Uaképa, que já perdeu um filho com hepatite e tem uma neta de 6 anos com a doença:
- Se não começar a obra, ele está se preparando para amarrar autoridade mentirosa.
Guenka respondeu:
- Não é um papel que vai garantir nada. Não vim para mentir. Esta operação não foi fácil, tem que convencer gente muito mais forte do que eu no governo. Quase ninguém enxerga o Javari. É esquecido. Não vou assinar esse documento.
O diretor prometeu dar início à obra em dez dias. Ganhou - e usou - um cocar.
Em Maronal, o índio Pei ou Paulo Barbosa da Silva, de 29 anos, é portador de hepatite dos tipos B e D, o mais grave. Sua mulher Vo, de 26 anos, já teve hepatite A. A filha do casal, de 11 meses, contraiu malária pela primeira vez aos 4 e está novamente infectada. Pei, que é professor de ensino fundamental na aldeia, leu um manifesto em português para Guenka. O texto dizia que a área está em situação de calamidade pública e que a operação da Funasa corre o risco de virar "um show em cima dos nossos problemas de saúde", se não houver continuidade.
O repórter viajou de Cruzeiro do Sul (AC) às aldeias a convite da Funasa.

Aqui é Brasil também

O cacique geral dos índios marubos, Ivinimpapa, diz que seu povo não é "bicho de zoológico" para posar em fotografias e cobra mais atenção do governo, especialmente a continuidade dos programas de saúde.
Segundo ele, sua tribo vive esquecida no meio da floresta e sofre com doenças de "homem branco".
-Não estamos aqui como bichos de zoológico à disposição para tirar fotos. Queremos trabalho do governo. Outras pessoas já vieram só para passear - reclamou ele no último dia 17, quando uma equipe da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) prestava atendimento médico aos moradores.
O cacique elogiou a iniciativa, mas lembrou que ações semelhantes foram iniciadas e interrompidas.
Nos últimos anos, uma equipe de saúde chegou a coletar sangue dos índios, mas não voltou nem apresentou os resultados. Desta vez, após um dia de negociação, ele aceitou fazer a coleta. Para dar o exemplo, foi o primeiro da fila.
Quantas e quantas, vezes vi pessoas morrerem de malária e hepatite e não pude fazer nada. A vinda de vocês é uma oportunidade de mostrar a Brasília o que se passa aqui. As políticas públicas do governo não chegam.
Ivinimpapa, de 70 anos, perdeu irmão, cunhado, sobrinho e tio para a malária, a hepatite e a tuberculose. Ele próprio teve malária quatro vezes.
- O que dá mais medo no povo marubo é a hepatite, porque já vi morte assim que provoca sangue na boca. As crianças sofrem muito com a malária -- diz o cacique, que lidera 1,3 mil índios marubos, a etnia mais populosa do Vale do Javari.
Indagado sobre o que gostaria de dizer ao presidente Lula, respondeu:
- Ia dizer que o povo marubo também é brasileiro e precisa do governo. Aqui é Brasil também.
E o governo tem que se orgulhar disso.

O primeiro sutiã a gente nunca esquece
Índias se encantam com acessório, que, segundo elas, deixa tudo no lugar

Usar sutiã virou moda entre as índias marubos, no Vale do Javari. Elas dizem que o acessório é o melhor remédio para seios caídos.
Vaidosas, estão encantadas com o efeito da combinação de sutiãs e colares coloridos de miçangas.
- Antigamente, não usávamos porque não conhecíamos. Depois que tivemos contato com não-índios, todo mundo se interessou. Acho bonito. Deixa tudo assim no lugar, inclinado, normal - diz a índia Viñawa Marubo, que tem o nome civil de Amélia Barbosa da Silva.
Aos 35 anos, ela é mãe de cinco filhos e conta que não usava sutiã na juventude. Viñawa é professora de ensino fundamental numa outra aldeia, a São Sebastião, e recebe salário do governo do Amazonas.
As demais mulheres produzem colares e pulseiras para comprar sutiãs, saias e batom. A bijuteria é vendida nos municípios mais próximos: Atalaia do Norte (AM), a cerca de 450 quilômetros em linha reta, e Cruzeiro do Sul (AC), a 250. A viagem de barco demora dias.
Outra opção é trocar com as agentes de saúde que visitam as aldeias.
O sutiã faz parte do vestuário das mulheres adultas. Adolescentes e idosas andam com os peitos à mostra.
O batom é outro produto feminino que faz sucesso. Ele substituiu o urucum, o pau-brasil e o jenipapo.
Mais do que os lábios, as índias o utilizam para pintar o rosto - o risco vermelho vai de uma têmpora à outra, na altura dos olhos.
Entre os marubos, a iniciação sexual das mulheres começa após a primeira menstruação. É comum ver índias de 13 anos já casadas e com filho no colo. Os homens podem ter mais de uma esposa.
Ao contrário da maioria das índias marubos, Viñawa fala português. Ela aprendeu numa escola mantida por freiras em Cruzeiro do Sul, onde conta que enfrentou muito preconceito por ser índia.
A professora se casou aos 22 anos, o que é considerado tarde na população indígena. Ela diz que, no tempo de sua mãe, eram os pais que escolhiam o marido. Não foi o seu caso.
A tradição mudou, mas casamentos arranjados ainda ocorrem, especialmente se a mulher demora a casar:
- Se ela fica sem marido e alguém se interessa, o pai entrega a filha. Temos que respeitar - diz ela.

Funasa cria operação de emergência para atender índios no Vale do Javari
Até junho, médicas da fundação devem examinar todas as tribos da área

Demétrio Weber
Enviado especial

A operação emergencial lançada pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para prestar atendimento na terra indígena Vale do Javari (AM), com apoio das Forças Armadas, tenta resolver um problema que se agrava há décadas, com repercussão internacional negativa para o Brasil. Até junho, as equipes de saúde esperam examinar todos os 3.700 índios da reserva, fazendo um mapa das doenças e das condições de nutrição. Depois disso, o desafio será garantir a continuidade das ações.
Alarmado com os altos índices de malária, hepatite e mortalidade infantil no Vale do Javari, o diretor de Saúde Indígena da Funasa, Wanderley Guenka, visitou a região em dezembro.
Saiu de lá com uma certeza: a Funasa sozinha não teria meios para resolver a questão. Constatou também problemas de gestão: diferentes órgãos e níveis de governo batiam cabeça, enquanto os índios ficavam doentes. Guenka procurou a Casa Civil em janeiro e obteve o apoio do Ministério da Defesa.
Não é fácil prestar atendimento no meio da Floresta Amazônica, em aldeias aonde só se chega de barco, helicóptero e, em algumas, de avião. A Funasa esbarra também na corrupção: das 51 organizações não-governamentais que recebiam recursos do órgão, apenas 26 tiveram a parceria mantida no ano passado.

Salário de R$ 10 mil não atrai médicos
Agentes de saúde de operação da Funasa usavam repelente

O chefe do Serviço de Assistência da Fundação Nacional do índio (Funai) em Atalaia do Norte, o índio Beto Marubo, diz que o abandono dos indígenas na região se transformou num caso de polícia:

- A política indígena está uma salada, não há foco. O Vale do Javari é problema de polícia.
Tem que investigar, chamar a CGU (Controladoria Geral da União). Gastam errado, os recursos não vão para a saúde - disse Marubo, que é chefe do Serviço de Assistência da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Atalaia do Norte e atuou como intérprete na aldeia Maronal.
Temendo contrair malária, o diretor de Saúde Indígena da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), Wanderley Guenka, e os demais profissionais de saúde aplicavam repelente contra mosquitos o tempo todo. Ele reclamou da burocracia, inclusive das exigências de licitação que emperram até a compra de computadores e a instalação de internet nas comunidades indígenas - o que ajudaria a comunicação das equipes de saúde.

Ao visitar três aldeias dos índios marubos, entre 15 e 19 de maio, Guenka ouviu muitas críticas à atuação da Funasa:
- É difícil responder pelas coisas do passado. Quero responder pelos dez meses em que estou no departamento.
"Para erradicar a malária, só se acabar com a floresta"
Com investimento de R$ 3 milhões, a operação enfrenta problemas de todo tipo. O helicóptero do Exército que levaria os agentes de saúde à aldeia Maronal pifou e teve de ser substituído, atrasando a chegada da equipe em dois dias. O mesmo tinha ocorrido em Massapê. Na véspera da partida de Cruzeiro do Sul (AC) para Maronal, seis agentes permaneciam em Tabatinga (AM), a 700 quilômetros. A agência de viagens da Funasa, que funciona no Espírito Santo, não comprara as passagens aéreas. O diretor exasperou-se. A solução foi fretar um avião, segundo Guenka, pelo mesmo preço das passagens.
Guenka considera um sonho conseguir médicos para atuar no Vale do Javari. O salário oferecido é de R$ 10 mil, mas não atrai interessados. O diretor defende que médicos formados em universidades federais sejam obrigados a trabalhar em áreas indígenas, como contrapartida pelo curso gratuito.
Também médicos que prestam serviço obrigatório para as Forças Armadas, segundo ele, deveriam atuar no Vale do Javari.
O presidente da Funasa, Francisco Danilo Forte, disse que o orçamento da fundação este ano é de R$ 4,5 bilhões, dos quais R$ 280 milhões para a saúde indígena. Segundo Forte, a malária e a hepatite são doenças endêmicas na Amazônia:
- Na área de floresta não tem como erradicar a malária, mas aprender a conviver com ela., (Erradicar), só se acabar com a floresta.

O Globo, 25/05/2008, O País, p. 10-11

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