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USP vai criar um 'museu vivo' do cerrado na capital

OESP, Metrópole, p. C9
16 de Out de 2011

Aluno de mestrado descobriu espécies únicas da vegetação em meio a obras de terraplenagem, a poucos metros da Botânica

RODRIGO BURGARELLI

A Universidade de São Paulo (USP) vai inaugurar um "museu vivo" do cerrado na Cidade Universitária, na zona oeste da capital. O museu será composto por uma rede de reservas desse tipo de vegetação, que cobria boa parte da cidade de São Paulo há alguns séculos, mas que foi praticamente extinta da malha urbana ao longo dos anos. A inauguração das reservas vai ocorrer no dia 7 de dezembro.
O anúncio só foi feito após um aluno de mestrado da Botânica descobrir espécies únicas da vegetação de cerrado em uma área onde está sendo construído um conjunto intitulado Parque dos Museus. Há cerca de duas semanas, o Estado revelou que 1.328 árvores teriam de ser cortadas para dar lugar ao complexo de 53 mil m² - o equivalente a uma pequena floresta urbana como o Parque Trianon.
"Quando fiquei sabendo disso, fui na mesma hora ver que tipo de vegetação havia ali. Fui de roupa social e sapato de reunião. Eu me sujei todo, mas valeu a pena. Encontrei espécies que não existem em nenhum outro lugar da cidade", diz o ambientalista Ricardo Cardim, autor das descobertas. Ele procurou autoridades da universidade, que então decidiram suspender as obras de terraplenagem.
"Vamos agora transplantar toda a vegetação de cerrado que ainda está na área das obras para as novas pequenas reservas que vamos criar nesse entorno", afirma o professor Welligton Delliti, coordenador de Gestão Ambiental da USP.
Ao visitar o local das obras, porém, fica claro que uma significativa - e rara - área de cerrado provavelmente foi destruída pelas máquinas. O trecho mais bem preservado, com uma variedade rara de língua-de-tucano e uma das poucas totalmente cobertas por capim-flecha do cerrado, está dentro do perímetro das obras, a poucos metros do local que já foi terraplenado.
A explicação para o problema está na legislação ambiental - no levantamento obrigatório para autorizar a obra, é exigido apenas o número de árvores a serem cortadas, e não é necessário avaliar a biodiversidade nem a raridade dos outros tipos de vegetação existentes no local. Por isso, a cúpula da universidade sequer sabia da existência desse cerrado, mesmo a área estando a poucos metros da Botânica.
Fragilidade. "O cerrado é uma vegetação frágil, que precisa de luz para crescer. Se chega uma planta que tapa o sol e não tem predadores naturais por ser de outra região do globo, é difícil que ele sobreviva", explica Cardim. "Há pouca pesquisa sobre como espécies de cerrado podem germinar e serem plantadas. Essa descoberta poderá ser uma grande fonte de conhecimento", completa professora Vânia Regina Pivello.

Área ganhará uma trilha e será aberta à visitação
Ideia é que estudantes e professores atuem tanto na recuperação da vegetação quanto na monitoria do local

O núcleo do museu vivo será um terreno de cerca de 3 mil m² que fica do lado do Instituto de Biociências. Atualmente, existem exemplares nativos de cerrado no local, mas a maior parte da área está tomada por plantas invasoras - a maioria mexicanas ou africanas, trazidas para a universidade na década de 1970 para efeitos de paisagismo.
Além das invasões, grande parte da área ainda é utilizada para descarte de galhos e outros resíduos de plantas cortadas. A coordenadoria promete agora limpar o local, cercá-lo e identificar as espécies de cerrado, criando uma trilha aberta à visitação. Além disso, um plano de manejo será elaborado para retirar todas as plantas invasoras e deixar as nativas rebrotarem. A ideia é que estudantes, pesquisadores e professores da universidade atuem tanto na recuperação da vegetação original quanto no monitoramento das visitas.
No interior. No mesmo dia em que será inaugurado o museu vivo de cerrado na USP, o reitor João Grandino Rodas vai assinar um decreto declarando como áreas de preservação mais de mil hectares de reservas biológicas em pelo menos quatro câmpus da USP que funcionam no interior. A criação das unidades de preservação acontecerá durante um evento oficial da Organização das Nações Unidas (ONU) na universidade, entre os dias 6 e 8 de dezembro, para comemorar o encerramento do Ano Internacional das Florestas.
Em Piracicaba, 120 hectares do câmpus urbano serão transformados em reserva. Outros 4 mil hectares de estações experimentais fora da área urbana também serão protegidos. Já o câmpus de Pirassununga ganhará cerca de 400 hectares. Reservas ecológicas também serão criadas nos câmpus de São Carlos e Ribeirão Preto. / R.B.

Centro da cidade era coberto por esse tipo de bioma
A cidade de São Paulo é famosa por estar em área de encontro de biomas, mas grande parte da região central da cidade - como as áreas dos bairros de Vila Mariana, Bela Vista e Jardins - era coberta por cerrado. Outra prova disso é que o nome da antiga vila que deu origem à cidade, São Paulo dos Campos de Piratininga, traz referência a esse tipo de vegetação - campo é outro nome pelo qual o cerrado é conhecido.
Hoje, esse bioma está praticamente extinto na malha urbana e só é encontrado na região do Butantã e no Pico do Jaraguá. Fora da capital, há cerrado também no Parque Estadual do Juqueri, em Franco da Rocha. / R.B.

Preservação não deve considerar apenas as árvores

Análise: Ricardo Cardim

Como podemos avaliar o valor da vegetação urbana? Essa pergunta é respondida na legislação ambiental considerando um fator básico, o tamanho da planta, que geralmente corresponde a árvores. Se pensarmos somente nos serviços ambientais, essa linha de pensamento é correta. Afinal, quanto maior o porte, maiores os serviços ambientais. Entretanto, em um país megabiodiverso como o Brasil, esse pensamento é no mínimo perigoso.
São Paulo, assim como outras cidades brasileiras, herdou um vasto patrimônio de fauna e flora, de grande biodiversidade, onde originalmente milhares de espécies conviviam em complexas interações ecológicas em diferentes paisagens como a Mata Atlântica, campos-cerrados, capões de araucárias e várzeas. Passados quase 500 anos de colonização, pouco sobreviveu dessa natureza ancestral, principalmente aquelas formas de vida que não apresentavam a beleza óbvia de uma grande árvore ou o esplendor da floresta tropical.
Um caso emblemático são os campos nativos, tipo de cerrado que nomeou a metrópole nos seus primeiros tempos de São Paulo dos Campos de Piratininga. Formada em sua maioria por arbustos e ervas de diferentes espécies, essa rica vegetação de estatura baixa segue desconhecida da maioria, relegada ao título de "mato". Entretanto, dentro do contexto ecológico e histórico, suas plantas podem ter o mesmo valor que uma figueira centenária. Exemplos são as espécies sobreviventes nos cerradinhos da Universidade de São Paulo (USP), como o murici-do-campo, fruta-de-pomba, língua-de-tucano e muitas outras, que já ocuparam extensas áreas do Município e hoje estão restritas a populações ínfimas.
Detentoras de genética resultante da evolução milenar com as condições locais, plantas assim não são substituíveis por árvores ou exemplares de mesma espécie de outras regiões, sendo formações únicas que devem ser preservadas a todo custo para essas e as futuras gerações. É urgente mudarmos a concepção de que somente árvores são passíveis de valoração ambiental, sob pena de prosseguirmos com a perda de inúmeros tesouros vegetais desconhecidos. No Brasil, a biodiversidade deve ser uma premissa fundamental para o licenciamento de obras e suas diretrizes ambientais.
A USP acerta quando promove a criação de reservas para os últimos testemunhos dos antigos Campos do Butantã, onde se assenta originalmente o seu câmpus. Tombados e abertos ao público, esses campos-cerrados poderão ser considerados museus vivos da história, cultura e botânica paulistanas.
É ambientalista

OESP, 16/10/2011, Metrópole, p. C9

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