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Uma reflexão necessária: Saúde Indígena e as Organizações Sociais de Interesse Público - Oscip

Cimi-Brasília-DF
Autor: Roberto Antonio Liebgott
08 de Jul de 2003

Em 1995, o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso,
começou a implementar, nas políticas públicas, o modelo de assistência,
tendo por base a terceirização dos serviços. Esta iniciativa visava
retirar do Estado a responsabilidade com relação à assistência da
população. A partir deste momento executa-se, de forma concreta, as
propostas neoliberais que impôs, nas relações do Estado com a sociedade,
os princípios da competição pelo lucro e a estruturação do chamado
"estado mínimo" que transfere as obrigações de governo (determinações
constitucionais tendo em vista assistência justa, digna e igual para
todos os brasileiros, independente de cor, credo, etnia ou condição
social) à iniciativa privada. Em função disso, nos oito anos do governo
de FHC, foram criadas medidas administrativas com o objetivo de
financiar ou estimular a livre concorrência na administração de escolas,
universidades, hospitais e clínicas.

Foi o período em que o Estado mais cedeu, a particulares, os espaços
públicos para fins empresariais especulativos. Com isso, houve o
alastramento de doenças já erradicadas, cresceu o analfabetismo,
decresceu a qualidade do ensino e da escola pública, a miséria se
alastrou, o estado se tornou omisso diante das questões sociais, houve o
abandono dos bens público, baixo investimento em pesquisa e na formação
dos agentes do estado que prestam serviço para a população. Ou seja, o
estado brasileiro foi sucateado e transformado em ciranda do lucro para
os "parasitas" que ganham fortunas com a doença e a miséria das pessoas.
Esse modelo de governar tem a perspectiva de atingir todos os segmentos
da população e todas as políticas do estado. Por isso, os Povos
Indígenas, mesmo considerados minorias étnicas e tendo assegurado
direitos constitucionais a uma assistência específica e diferenciada
foram, igualmente, vítimas da administração do "estado mínimo".

Em 1996 o Ministério da Saúde, através da Fundação Nacional de Saúde -
FNS, começou a estabelecer, na assistência às comunidades indígenas (na
parte que lhe cabia porque as atribuições em saúde, na época, eram
divididas entre FNS e Funai), a "política" que tinha como base os
convênios firmados com os chamados "parceiros preferenciais". Estes
elaboravam o projeto, o respectivo plano de trabalho e os custos
correspondentes e apresentavam a FNS-Cosai, hoje Funasa-Desai, que
avaliava os pedidos e após aprovação liberava os recursos.

Deste período em diante se iniciou um intenso trabalho de articulação
(junto a organizações não governamentais e indígenas) para estruturar,
em definitivo, a política de terceirização da saúde indígena. O governo
federal, a partir de então, rompe com a perspectiva de criação do
Sub-Sistema de Atenção à Saúde Indígena, que teria por base os Distritos
Sanitários Especiais Indígenas com autonomia administrativa e
financeira, conforme as deliberações e diretrizes da II Conferência
Nacional de Saúde Indígena, realizada no ano de 1994.

Durante os anos de 1996 a 1999, o Ministério da Saúde foi preparando o
"terreno" para que houvesse, por parte das entidades de apoio, Ong's,
Povos e Organizações Indígenas, a aceitação da política. A proposta
governamental passou a ser conduzida pelo Coordenador do DEOP/ Funasa,
Dr. Ubiratan Pedrosa. Ele criou, com o aparato da Funasa, obstáculos
para a aplicação das decisões, definições e diretrizes das conferências
nacionais de saúde indígena e para inviabilizar a aplicação da Lei
Arouca. Com assessoria de algumas Ong, o Dr. Ubiratan decidiu pela
criação dos 34 Distritos Sanitários hoje existentes e articulou
entidades, prefeituras, Igrejas e Organizações Indígenas para que,
através de convênios administrassem, controlassem e executassem as ações
e serviços em saúde nas áreas indígenas. E, com o aval do Ministro da
Saúde, respaldado pela Funasa, pelo Conselho Nacional de Saúde e pela
CISI (Comissão Intersetorial de Saúde Indígena) viabilizou, com o
objetivo de legitimar a política de terceirização, a III Conferência
Nacional de Saúde para os Povos Indígenas no ano de 2001.

Hoje esta política parece enraizada no Estado e é considerada, por Ong's
prestadoras de serviço, como positiva em função de mencionados avanços
no combate a desnutrição, as doenças respiratórias, as parasitoses,
diminuição da malária, alcance significativo nas vacinações, bem como
dispõem de um orçamento maior para infraestrutura e contratação de
pessoal. No entanto, esta avaliação desconsidera que, para impor essa
política, foi sendo desconstruida a perspectiva da participação indígena
na organização, planejamento e execução da política de saúde, bem como
no efetivo controle social. Os Povos Indígenas, com raras exceções, não
têm o domínio sobre o funcionamento da política de assistência e em
muitas situações não sabem a quem recorrer para os legítimos reclames e
reivindicações. Muitas entidades e pessoas que estão engajadas no
trabalho direto com as comunidades indígenas, e que não dependem dos
convênios para desenvolver sua ação junto a elas (indigenistas,
missionários, outros apoiadores da causa), têm uma avaliação menos
otimista quanto aos índices de doença, de desnutrição e de mortalidade
infantil. Têm uma avaliação negativa quanto ao processo de formação dos
agentes indígenas de saúde, quanto à qualificação de funcionários dos
Distritos e da aplicação dos recursos nas ações em área. Também avaliam
que a política em vigor não permite a efetiva participação indígena e
inibe ou intimida as pessoas envolvidas ou dependentes desta política,
no processo avaliativo das ações e serviços em saúde. Esse é um fato a
ser considerado porque quem controla os serviços é o mesmo que contrata
os técnicos e demais profissionais, é o mesmo que administra o dinheiro
e faz, como conseqüência, a avaliação que melhor lhe assegure a
continuidade do convênio e, portanto, a manutenção do dinheiro, dos
cargos e empregos.

Avaliar e analisar o processo de construção da política neoliberal de
FHC iniciada em 1995 e que perdura é fundamental para compreender a
política de saúde para os Povos Indígenas que vem sendo articulada no
governo Lula. Neste sentido é indispensável que o Movimento Indígena e
os indigenistas se apresentem, como protagonistas no processo de
construção de um modelo de atenção a saúde, resgatando os princípios e
diretrizes da longa e bonita história de discussão, reflexão e
formulação de propostas para uma nova política de saúde, que foram bem
explicitadas na II Conferência Nacional de Saúde Indígena.

Neste momento conjuntural é importante a participação efetiva do
Movimento Indígena e indigenista, pois está em curso uma discussão que
busca a manutenção da política imposta pelo governo anterior, com a
novidade de que a relação de parceria será entre a Funasa e as Oscip.
Esta já era uma perspectiva da política de FHC, mas que não teve as
condições adequadas para ser implementada. As tais Oscip serão, em
grande parte, as mesmas organizações não governamentais que hoje prestam
serviço ao governo, desde que se adaptem e se estruturem para assumir
funções e características de empresas prestadoras de serviço.
Certamente, neste processo, outras organizações serão criadas com perfil
empresarial para o trabalho com populações indígenas, bem como empresas
tornar-se-ão "organizações sociais de interesse público". Se for
implementada esta proposta mantém-se a perspectiva da terceirização com
a diferença de que o governo agirá com certa "legitimidade", respaldado
na lei do terceiro setor, para fazer e manter convênios, bem como
fiscalizar e controlar os seus conveniados. Esse é o aspecto,
aparentemente novo, na política apresentada e que respalda o governo
federal, uma vez que o amparo legal, para o estabelecimento de convênios
com Ong's, era questionável. A Constituição Federal estabelece que é
dever da União assegurar a assistência às comunidades indígenas. Esta
atribuição foi transferida indevidamente para organizações não
governamentais com o objetivo de consolidar a política neoliberal da era
FHC e agora reforçada pelo Ministério da Saúde de Lula.

Diante da perspectiva de não haver mudanças na política do Estado
Brasileiro para os Povos Indígenas, torna-se urgente a articulação entre
as forças progressistas, o Movimento Indígena e todos os que lutam pelo
protagonismo destes povos na discussão, organização, formulação e
condução das políticas que lhes dizem respeito. É fundamental que sejam
retomadas as propostas construídas durante décadas (inúmeras vezes
apresentadas para as autoridades brasileiras) acerca do modelo de
assistência em saúde que se pretende para os Povos Indígenas. É
inaceitável que discussões, acerca da saúde indígena, estejam apenas no
âmbito da Funasa/Desai e alguns dos conveniados, uma vez que estes lutam
pela manutenção do sistema e dos convênios. Torna-se urgente o empenho
pela implementação do Sub-Sistema de Atenção a Saúde dos Povos Indígenas
conforme estabelece a Lei Arouca e que seja estruturado, no âmbito do
Ministério da Saúde, uma instância, fora da Funasa, que responda de
forma integral pelas ações e serviços em saúde, rompendo definitivamente
com a terceirização e que agora se traduz em "parceria com as Oscip".

É inadmissível que num governo que se diz democrático e popular, a
política para os Povos Indígenas seja pensada de maneira pulverizada,
setorizada e desconectada da realidade e diversidade de povos e
culturas. O novo governo precisa, de forma urgente, se assessorar de
indigenistas que têm preocupação com a causa dos Povos Indígenas, que
sabem da importância da terra na vida passada e futura destes Povos e
que estas terras devem ser demarcadas. O governo precisa assessorar-se
de lideranças indígenas e de pessoas que sabem que a terra, a saúde, a
educação, a auto-sustentação, a organização social e política, a
religiosidade, os mitos e ritos são uma integralidade e a política
precisa ter esse caráter. O governo não pode esquivar-se da sua
obrigação histórica e de seu dever constitucional de assegurar que os
Povos Indígenas tenham seus direitos garantidos. E isso somente
acontecerá se mudar de atitude e construir a política com a participação
indígena e dos indigenistas desprovidos de interesses politiqueiros ou
econômicos.

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