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Uma pajelança para Claudia Andujar

Folha.com
10 de Nov de 2010

Uma pajelança para Claudia Andujar

Quem nasceu depois de 1970 provavelmente perdeu a chance de conhecer a revista "Realidade" e, nela, o trabalho da fotógrafa Claudia Andujar, suíça de nascimento que adotou o Brasil nos anos 1950. Foi ao realizar uma reportagem sobre a Amazônia para a publicação que Andujar --um nome espanhol, recebido do primeiro marido-- conheceu os ianomâmis. E nunca mais se separou deles.
Pouca gente fez mais pelos ianomâmis. Com suas fotos, ela deu uma cara para esse povo isolado nos contrafortes das montanhas de Roraima e do sul da Venezuela. As imagens correram o mundo. Aqueles rostos serenos, orgulhosos e corajosos, com varetas de madeira graciosamente espetados junto aos lábios das mulheres, ajudaram a desfazer a impressão de "povo feroz" disseminada por uns poucos antropólogos.
A fotojornalista acabou por relegar a profissão para dedicar-se em tempo integral à criação da Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), em 1978. Uma ONG do tempo em que a sigla nem existia direito, e que só deixou de existir em 2008.
Com a ajuda de gente como o senador Severo Gomes, Andujar finalmente viu criada e homologada a Terra Indígena Yanomami, a maior do Brasil, maior que Portugal. Foi em 1992, por ninguém menos que Fernando Collor. Apenas quatro anos depois da nova Constituição, que tem um dos capítulos sobre direitos indígenas mais generosos do planeta.
O último encontro de Andujar com os índios se deu na semana passada, durante a Quarta Assembleia da Hutukara Associação Yanomami. A reunião aconteceu em Toototobi (AM), um posto indígena a 1h40 de voo de Boa Vista (RR).
A nova ONG foi criada pelos próprios indígenas em 2004, e por eles é mantida e gerida. Todos os diretores são índios, sob a presidência de David Kopenawa Yanomami, outro gigante da sobrevivência cultural.
Durante a reunião, os ianomâmis deram repetidas mostras de gratidão a Andujar. Com quase 80 anos, a fotógrafa anda com ajuda de uma bengala. Por onde passava, recebia manifestações de carinho de homens e mulheres mais velhas, ou de seus filhos e netos.
Assim que foi reeleito presidente da Hutukara, Kopenawa lhe deu um abraço e agradeceu pelos ensinamentos recebidos --ele que é hoje um grande "pata", líder reconhecido por todos por falar grosso com os brancos.
Kopenawa é também um respeitado xamã (pajé, na expressão tupi-guarani). Quando viaja para fora de suas terras, muitas vezes vai com outro xamã, Levi, em cuja companhia se sente mais poderoso. Levi protagonizou, na assembleia, um ritual para curar as pernas de Andujar.
No transe xamânico desencadeado com a aspiração nasal do pó "yãkoana", Levi chupava seguidamente algo do joelho da fotógrafa, sentada numa cadeira de praia. Saía depois dançando e jogava esse algo longe. Andujar contou depois que a experiência foi muito "forte", adjetivo com o qual concordaria até quem não acredita em nada daquilo.
Dois dias depois, encerrada a assembleia, foi a vez de Andujar surpreender. Mulheres ianomâmis dançavam e cantavam no círculo central da maloca construída para a reunião, dando alguns passos para trás e depois avançando com pancadas vigorosas de sandálias de borracha na terra batida.
Andujar, apoiada no braço de um jovem branco, apareceu no meio das índias. Foram poucos passos, mas bastaram para levantar a plateia.
O repórter especial Marcelo Leite viajou de Boa Vista (RR) a Toototobi (AM) a convite da Hutukara Associação Yanomami

Marcelo Leite é repórter especial da Folha, autor dos livros "Folha Explica Darwin" (Publifolha) e "Ciência - Use com Cuidado" (Unicamp) e responsável pelo blog Ciência em Dia (Ciência em dia). Escreve às quartas-feiras neste espaço.

Folha.com, 10/11/2010

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/marceloleite/828153-uma-pajelanca-…

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