VOLTAR

Uma guerra sem vencedores

Veja, Brasil, p.60-64
04 de Mai de 2005

Uma guerra sem vencedores
Conflito em Roraima é obra do Brasil que, da ditadura para a democracia, mudou seu projeto amazônico

Otávio Cabral, de Pacaraima

Há quase quatro décadas, quando o regime militar vivia seu apogeu econômico, milhares de brasileiros foram incentivados pela propaganda oficial a se deslocar para o pedaço mais inóspito e desabitado do país - a Região Norte, com seus rios e matas intermináveis. A massa de recém-chegados, embalada pelo projeto do Brasil-potência e pelo surto desenvolvimentista, foi atraída pela doação de enormes extensões de terra e pela distribuição de incentivos em Roraima, Rondônia e no Pará. A idéia era fazer a região amazônica dar um salto em seu desenvolvimento econômico e, com isso, incorporá-la ao resto do país.
Bem, o tempo passou, e o Brasil oficial simplesmente mudou de projeto para a Amazônia. Em vez de transformar a região num celeiro de grãos e gado, sucessivos governos passaram a dar maior ênfase à preservação da floresta, à criação de santuários ecológicos e à manutenção dos índios no estágio pré-histórico, abrindo espaço apenas para projetos econômicos ambientalmente corretos. Nada de grandes e incertas investidas desenvolvimentistas em franco desafio à vocação da floresta. Em Rondônia e no Pará, o progresso ainda conseguiu manter abertas algumas clareiras. Mas, nas regiões de mata mais fechada e terras alagadas, afogou-se o sonho de uma Amazônia desenvolvida. O problema mais dramático ocorre atualmente em Roraima. Os brasileiros e seus descendentes que acreditaram na pregação dos militares estão agora em Roraima perdidos na contramão da história, insistindo em vão em ser cidadãos produtivos, integrados à economia moderna, quando tudo a sua volta - governo, igrejas e ambientalistas - conspira para devolver a mata a seu estado prístino.
Em Roraima, brancos e índios entraram em estado de beligerância desde que o presidente Lula, três semanas atrás, homologou a criação da Raposa Serra do Sol, uma imensa reserva indígena de 1,75 milhão de hectares, algo como doze cidades de São Paulo, destinada a ser a moradia de 16.400 índios de sete etnias. A reserva fica no extremo norte de Roraima, na fronteira com a Venezuela e a Guiana. Os índios e seus aliados aplaudem a homologação da reserva, imensa e rica em minérios, inclusive ouro e diamante. Há trinta anos, os índios desejam a criação da reserva por motivos legítimos: queriam a garantia de uma área em que pudessem viver segundo a própria cultura, sem ter de lutar pela terra com os fazendeiros brancos. A argumentação dos silvícolas e de seu enorme time de defensores profissionais e idealistas é principalmente ambiental. Alegam que, com a expulsão dos fazendeiros, se coloca um ponto final na poluição dos rios, no aterramento de lagoas e na depredação da caça. Em suma, o modo de vida primitivo dos índios seria em si um fator de proteção para o meio ambiente. Pode até ser. Não é o que mostra a história recente de outras reservas, onde a cobiça dos caciques, aliada à corrupção de seus designados protetores brancos, leva ao descaso com a maioria e à continuação da atividade econômica - às vezes de maneira ainda mais turbinada do que no status quo anterior. "A Raposa Serra do Sol abrirá o caminho imprescindível para que nossa cultura, costumes e organização social sejam preservados", diz o índio macuxi Marinaldo Justino Trajano, 39 anos, coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), dono de um belo jipe Pajero e de um moderníssimo telefone móvel por satélite.
E como ficam os brancos que acreditaram nos sonhos de desenvolvimento, atenderam aos apelos do governo e ali derramaram seu suor e arriscaram seu futuro? Os brancos foram contra a demarcação da reserva por motivos igualmente legítimos: protestam contra a perda de suas fazendas duramente trabalhadas com lavouras e gado. Para eles, Lula assinou o atestado da morte econômica de Roraima, já que na reserva se concentra quase toda a produção de arroz, que responde por nada menos que 11% do PIB do Estado. Os brancos reclamam que a reserva não deveria ter sido demarcada em terras contínuas, mas em grandes ilhas. Se fossem atendidos, a área ficaria 15% menor, mas, em contrapartida, se preservaria o que há lá dentro: três pequenas cidades, quatro vilarejos, oito estradas e catorze grandes lavouras de arroz. Agora, os brancos têm prazo de um ano para deixar a região e receber sua indenização. Eles estão com pintura de guerra no rosto. "Sair daqui não está nos nossos planos. Não vamos sair daqui nem se o presidente Lula e o ministro Thomaz Bastos vierem aqui tentar nos tirar", reage o fazendeiro Renato Quartiero, filho de Paulo César Quartiero, prefeito de Pacaraima, cidade parcialmente localizada dentro da reserva indígena.
A troca de projetos nacionais, do desenvolvimento a qualquer custo para os imensos santuários ecológicos, começou a se materializar em Roraima em 1992, quando foi homologada a reserva dos índios ianomâmis. No ano seguinte, demarcou-se a reserva de São Marcos, que fica emendada à reserva demarcada agora. "Só sobram 10% do estado para o cultivo agrícola. Assim não há economia que resista e que cresça", reclama o governador, Ottomar Pinto, do PTB, que decretou luto oficial de sete dias contra a demarcação de Raposa Serra do Sol e, na semana passada, bateu nos principais gabinetes de Brasília para reverter a decisão, mas saiu de mãos abanando. O governador exagera quando fala em apenas 10%, mas isso não invalida seu protesto: restam 17% de Roraima para o uso da agricultura. Isso mostra que, com o tempo, talvez Roraima passe por uma inversão histórica: os índios vão se expandindo, e os brancos, seguindo-se na marcha atual, acabarão reduzidos a um pequeno naco de terra. Será, assim, uma espécie de reserva da civilização em um estado indígena.
As estimativas variam dramaticamente, mas em geral é aceito que em 1500, quando a esquadra de Pedro Álvares Cabral aportou na Bahia, havia aqui entre 2 milhões e 4 milhões de índios, de mais de 1.000 etnias. Como em qualquer processo civilizatório vitorioso em todos os tempos, a colonização das Américas pelos europeus foi feita sobre montanhas de cadáveres - físicos e culturais. A população indígena brasileira atualmente não passa de 350.000 indivíduos e desfruta condições de vida singularmente diversas. Existem índios que quase não têm do que reclamar, como os 4 700 que habitam o Parque Indígena do Xingu, uma vasta área, quase do tamanho da Bélgica, situada na divisa entre Mato Grosso e Pará. Os povos do Xingu dispõem de uma ilha de fauna e flora intocadas e a salvo da cobiça alheia. Ao mesmo tempo, são brindados com algumas dádivas da civilização que, por sinal, eles adoram: assistência médica, motores de popa, telefonia por satélite e comida farta. Essas benesses, somadas ao ócio endêmico das populações tropicais, estão fazendo da obesidade um dos poucos problemas de saúde das populações indígenas do Xingu. São índios vencedores da guerra cultural com os brancos. Outros índios tiveram pior sorte. Vivem em condições dramáticas. São principalmente aqueles das reservas de Dourados, em Mato Grosso do Sul, onde a fome vem ceifando a vida de indiozinhos. Existem até tribos vivendo como na época de Cabral - caso dos canoés e dos akuntsus, de Rondônia, contatados por indigenistas apenas dez anos atrás. Agora, os 16.400 índios acabam de ganhar condições privilegiadas para viver na Raposa Serra do Sol. Essa vitória, porém, não encerra a questão nem para os próprios índios.
Explica-se: o conflito em Roraima não é binário, com índios de um lado e brancos de outro. Entre os índios, não são poucos os que também protestam contra a demarcação e a subseqüente expulsão dos brancos e suas delícias - como luz elétrica, televisão, celular, dinheiro. Os brancos dizem que, dos 16.400 índios, cerca de 10.000 seriam contra a demarcação. Mas os aliados dos índios usam o mesmo número de 10.000 para dimensionar o tamanho dos que seriam a favor da reserva. Na confusão dos números, há uma certeza: os índios estão divididos. Na semana passada, VEJA visitou a região de Surumu, dentro da reserva, onde existem 28 aldeias indígenas. Dezenove eram favoráveis à reserva e nove, contrárias. Eudinei Peres de Oliveira, por exemplo, é um índio macuxi e, como todos os macuxis, tem nome de branco, certidão de nascimento, carteira de identidade e título de eleitor. Aos 32 anos, cinco filhos, ele é contra a demarcação da reserva. Ele trabalha numa lavoura de arroz há dois anos e ganha três salários mínimos - que vão integralmente para sua família, já que, na fazenda, ele recebe comida, uniforme, alojamento e assistência médica.
"Quando eu era pequeno, a vida era muito difícil. Minha família vivia da caça e da pesca, não tinha roça, muitas vezes não tinha o que comer. Agora, meus filhos estudam, podem ter um futuro melhor com o dinheiro que eu ganho", diz ele. "A demarcação vai ser muito ruim, porque a Funai não tem dinheiro para fazer o que os fazendeiros fazem pelos índios." O índio Jairo Pereira da Silva também é macuxi, tem 36 anos, é vice-coordenador do CIR e pensa exatamente o contrário de seu colega de tribo - e, inclusive, tem uma memória distinta sobre o passado. "A comida na minha infância era farta", diz ele, acrescentando que "os arrozeiros aterraram as lagoas onde os índios caçavam pássaros e pescavam, poluíram o meio ambiente com agrotóxicos, contaminaram a água, acabaram com a fauna." Ele conta que, além de tudo, os índios são enganados pelos fazendeiros. Como exemplo, cita uma parceria na qual os índios entravam com mão-de-obra e os fazendeiros, com sementes e máquinas. Diz que a sociedade rendeu 400.000 reais com a venda de arroz, mas os índios, segundo ele, ficaram com apenas 12.000.
Com os índios reivindicando direitos históricos sobre a terra e os brancos protestando contra a injustiça de perder tudo, Roraima entrou em ebulição. Em Boa Vista, já houve três protestos, um deles com 15.000 pessoas, número respeitável numa cidade de 220.000 habitantes - e todas as manifestações foram amplamente divulgadas pelos meios de comunicação locais, empolgados opositores da reserva. Em Pacaraima, o prefeito, Paulo César Quartiero, até ajudou a erguer barricadas numa rodovia federal - ele que tem duas fazendas de arroz na área da reserva. A maioria dos 242 carros de Pacaraima circula com fitas verde-amarelas e pretas, em sinal misto de patriotismo e de luto. Na cidade, que vive da agricultura produzida na reserva e do contrabando de gasolina venezuelana, há pichações por todo canto contra o presidente Lula e o PT, o "Partido dos Traidores".
O prefeito Quartiero responde a cinco processos sob suspeita de incentivar ataques a índios favoráveis à demarcação e, com os crescentes boatos de que teria sua prisão decretada, refugiou-se na cidade venezuelana de Santa Elena do Uairén, instalou-se num hotel e, de lá, por meio de um celular venezuelano pré-pago, administra Pacaraima. "Fui pego como bode expiatório dessa demarcação, que não é boa para ninguém de Roraima, só para as ONGs internacionais e para os Estados Unidos", afirma o prefeito, fazendo referência a um argumento caro aos militares brasileiros - o de que a reserva, sendo em área de fronteira, deixa o Brasil vulnerável aos estrangeiros. No protesto mais violento ocorrido até agora, um grupo de índios seqüestrou quatro policiais federais. Até a sexta-feira passada, cerca de 2.000 índios, armados com arcos, flechas, tacapes e armas de fogo se recusavam a libertar os reféns do cativeiro. A pedido do Ministério da Justiça, o Exército colocou 1.000 homens de prontidão, para o caso de uma emergência. A idéia de reverter a decisão de criar a Raposa Serra do Sol, porém, não existe. "A demarcação é um assunto encerrado", diz o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. É mesmo. Os problemas que ela gerou, porém, vão se arrastar ainda por muito tempo.

A favor da reserva
De volta aos bons tempos

Jairo da Silva, 36 anos, macuxi: "Na infância, a comida era farta"
Quem são: 16 400 índios que vivem dentro da área da Raposa Serra do Sol, divididos em sete etnias e distribuídos por noventa aldeias, mas uma parte significativa dos índios não gosta da idéia da reserva
O que produzem: na área da reserva, os 16 400 índios produzem apenas para sua própria sobrevivência
Há quanto tempo estão na área: desde sempre, mas os primeiros contatos com os índios da região datam do século XVII
O que querem: defendem a demarcação em área contínua da Raposa-Serra do Sol, tal como foi feito pelo governo. Querem, agora, parcerias com o governo, ONGs e igrejas para desenvolver projetos na região. Defendem, ainda, a permanência dos programas sociais dos governos federal e estadual e a manutenção das benfeitorias nas aldeias, como água, luz elétrica, escolas e hospitais
Quem são os aliados: o governo federal, a Igreja Católica, as igrejas evangélicas, ambientalistas, indigenistas e ONGs, além da classe política de fora do Estado de Roraima

Contra a reserva
Fora do país

Quartiero, o prefeito foragido: duas fazendas na reserva
Quem são: 2 000 agricultores e pecuaristas que vivem em três cidades e quatro vilas dentro e no entorno da Raposa Serra do Sol
O que produzem: 100 000 toneladas de arroz, 3 000 toneladas de banana e 8,5 toneladas de milho por ano
Há quanto tempo estão na área: os primeiros migrantes chegaram em 1905, mas a lavoura de arroz, principal produto da região, só começou a ser desenvolvida a partir de 1994
O que querem: defendem que a demarcação da área não seja em terras contínuas, preservando as fazendas da região, e pedem compensações do Estado pelos prejuízos
Quem são os aliados: a classe política de Roraima, empresários, uma parcela dos índios e a esmagadora maioria da população não-índia do Estado

Veja, 04/05/2005, Brasil, p. 60-64

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.