VOLTAR

Uma dívida secular

CB, Brasil, p. 10
28 de Jun de 2006

Uma dívida secular
Governo federal demora em reconhecer territórios ocupados por descendentes de escravos. Mais de 2,5 mil comunidades são cadastradas oficialmente, mas apenas oito têm área demarcada pelo Incra

Hércules Barros

As mais de 2,5 mil comunidades remanescentes de quilombos no Brasil vivem um apartheid velado. Conquistaram o direito à terra por meio de leis, mas o reconhecimento oficial dos territórios ocupados pelos descendentes de escravos, na prática, não garante a posse dos terrenos. O processo de regularização agrário é lento. As titulações de posse garantidas até hoje pelo governo são frágeis, e as famílias sofrem pressão de fazendeiros vizinhos e até mesmo do Estado. O impasse com órgãos públicos ocorre, por exemplo, com a Agência Espacial Brasileira (AEB), em Alcântara (MA), e com a Marinha, na Ilha de Marambaia (RJ).
"O governo precisa conciliar o direito à terra dos descendentes de quilombolas com o interesse e a segurança nacional", defende Rui Leandro da Silva Santos, coordenador-geral de regularização de territórios dos quilombos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O órgão enfrenta dificuldades de negociações e desapropriação, principalmente, com as instituições governamentais.
Das 2,5 mil comunidades quilombolas cadastradas pelo governo, apenas oito têm seu território reconhecido e estão livre de disputas. No momento, o Incra trabalha em 343 processos de reconhecimento de novas áreas. "O procedimento de desapropriação é demorado", reconhece Santos. A comunidade Kalunga, em Cavalcante (GO), é um exemplo. As famílias têm o título provisório da terra, porque ainda não foi feita a desapropriação completa, com o pagamento de benfeitorias aos antigos proprietários. As famílias ocupam uma área de 250 mil hectares.
Na medição de forças entre os órgãos públicos, o Incra sai perdendo. Desde maio, o órgão de regularização fundiária concluiu o relatório técnico que identifica e reconhece a área da Ilha de Marambaia em favor dos remanescentes de quilombos mas, até o momento, o documento não foi publicado.
O motivo do atraso é que a região é ocupada pela Marinha (leia abaixo). "Buscar acordo com a Força Aérea Brasileira é diferente de que com um fazendeiro", reconhece o subsecretário de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, Perly Cipriano, da Secretaria Especial de Direitos Humanos (Sedh).
Amanhã, 27 líderes quilombolas da Ilha de Marambaia têm uma reunião na Casa Civil, que irá intermediar a negociação com a Marinha. Sem o reconhecimento, as famílias não podem ser beneficiadas com os programas sociais do governo, por estarem em área considerada de segurança nacional.
Em Alcântara, depois de se arrastarem por dois anos, as negociações estão mais avançadas.
"Temos a sinalização de uma proposta definitiva para breve", ressalta a procuradora-geral da Fundação Palmares, Ana Maria Oliveira. De acordo com o Incra, foram desapropriados 62 mil hectares até então ocupados por 165 comunidades quilombolas para atender aos interesses da AEB e da Aeronáutica.
Na ilha, funciona o Centro Espacial de Alcântara, onde há uma plataforma de lançamento de foguetes. As famílias foram deslocadas para outra área, no mesmo município. "Eram necessários apenas 15 mil hectares", afirma Santos, em relação às necessidades de funcionamento da Agência Espacial.
Liminar
A representante da organização não-governamental Coordenação Nacional das Comunidades de Quilombos (Conaq), Josilene Brandão, acredita que a situação dos descendentes de escravos no Brasil pode complicar ainda mais.
"Titulações anteriores a 2003 podem perder a validade porque o PFL (Partido da Frente Liberal) ajuizou, no STF (Superior Tribunal Federal), uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), com pedido de liminar", diz.
Na ação, o PFL pede que seja invalidado o decreto 4.887/03. Se a liminar for expedida, o governo estará impedido de pagar indenizações aos fazendeiros que ocupam áreas que seriam destinadas às comunidades quilombolas. A Adin diz que este procedimento deveria ser regulamento por lei e não por decreto. Apesar dos atrasos na demarcação, Josilene acredita que o governo Lula foi quem mais avançou na regularização fundiária das comunidades. "Para desconstruir o latifúndio no Brasil é preciso mais de quatro anos", comenta.
As comunidades remanescentes de quilombos existem em praticamente todos os estados brasileiros. Das 2,5 mil comunidades estimadas no país, a Fundação Cultural Palmares fez um levantamento antropológico e georeferenciamento de 743. Os estados brasileiros que mais descendentes de escravos são a Bahia e o Maranhão. A Fundação Palmares é responsável por auto-titular as comunidades quilombolas, após visita às localidades e comprovação, por parte dos seus moradores, que o espaço territorial era abrigado por descendentes de escravos.
Até o momento, 611 certidões de auto-reconhecimento foram publicadas no Diário Oficial da União. A certidão garante que o Incra e demais órgãos governamentais assegurem a posse das terras para os remanescentes dos quilombos. Em 1989, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) publicou a Convenção 169, que garante às comunidades o reconhecimento a partir apenas da auto-identificação. Ou seja, não seria necessário a realização de estudos. O documento só foi ratificado pelo governo brasileiro onze anos depois.

No Rio, disputa com a Marinha

Há três décadas, a comunidade quilombola da Ilha de Marambaia, no litoral do Rio de Janeiro, convive em tensão constante com a Marinha. A Casa Civil tenta resolver o impasse, mas os moradores reclamam de descaso. "Não sabemos o que acontece e como estão resolvendo nossa vida", afirma Vânia Guerra, representante das 161 famílias de quilombolas de Marambaia.
O problema começou em 1971, quando representantes das Forças Armadas chegaram à ilha. Alegando questões de segurança nacional, a Marinha montou uma fortificação na região e mantém controle sobre outra área reservada para o desembarque de tropas. O problema é que a mesma localidade é utilizada pelos quilombolas para a pesca e a realização de rituais. Além disso, os quilombolas alegam que os terrenos em questão estão próximos ao seu sítio histórico.
Ontem, cerca de 27 nativos da ilha vieram à Brasília denunciar o que chamam de "opressão" da Marinha e cobrar do governo federal o direito à titulação da área ocupada por eles desde 1856. Do encontro com representantes da Fundação Palmares e da Secretaria Especial de Direitos Humanos (Sedh), o grupo saiu com a promessa de que os órgãos vão acompanhá-los em uma reunião com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e o Ministério da Defesa.
"A Fundação (Palmares) existe por nossa causa. Queremos que ela nos represente e cobre respostas", enfatizou Vânia.
A pedido do ministro da Defesa, Waldir Pires, o chefe de gabinete do ministério, Ricardo Midlej, vai receber os quilombolas hoje. A advogada Ana Maria Oliveira, procuradora-geral da Fundação Palmares, está otimista com as negociações. "O objetivo do encontro é conciliar a preservação da comunidade e o interesse da defesa nacional", afirmou.
Negociação
De acordo com a procuradora, a Marinha não tinha formalizado uma proposta para o impasse, mas pressionada pela Casa Civil, apresentou sua posição há um mês. Para resolver o conflito, a Marinha apenas admite conviver pacificamente com os descendentes de escravos, mas não aceita sair da área ocupada. "O governo federal decidiu resolver com negociação. É melhor do que esse enfrentamento se arrastar por anos no Judiciário", explicou Oliveira.
Ocupada pela Marinha, a região foi declarada Área de Interesse Militar, em 1971, e abriga o Centro de Destramento da Ilha de Marambaia (Cadim). Em documento assinado por mais de 80 organizações não-governamentais, há críticas sobre o uso de argumentos ambientalistas para confundir a opinião pública e sustentar uma estratégia de expulsão e de expropriação dos ilhéus. "Afirma-se, por exemplo, que os moradores são responsáveis pela degradação da área, omitindo que os treinamentos de guerra e o uso privado da ilha para turismo dos familiares e convidados dos militares são o que provocam impactos ambientais", acusa o texto. As 161 famílias são descendentes de escravos do comendador Joaquim José Breves - cafeicultor que durante o Brasil Império utilizava a ilha como entreposto do tráfico negreiro. A área tem 79 quilômetros quadrados de extensão. (HB)

CB, 28/06/2006, Brasil, p. 10

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.