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Uma cúpula importante demais para fracassar

JB, Economia & Negocios, p. A18
Autor: WATKINS, Kevin
12 de Set de 2005

Uma cúpula importante demais para fracassar
Além do Fato / Erradicação da pobreza

Kevin Watkins
Diretor do Relatório do Desenvolvimento Humano 2005 - PNUD

Martin Luther King comparava a constituição norte-americana com uma nota promissória que oferecia justiça social e igualdade de oportunidades para todos. Parado em frente ao monumento de Lincoln, em Washington D.C., há quarenta e dois anos ele acusava os sucessivos governos de não terem sido capazes de cumprir com a promessa. "Para os afro-americanos, esta nota promissória tem se tornado um cheque sem fundos", e continuava: "negamo-nos a acreditar que a conta bancária da justiça esteja em bancarrota".
Na próxima semana, a sede das Nações Unidas em Nova York será palco da maior cúpula de chefes de Estado e de governo de todo o mundo para discutir outra nota promissória. Essa nota promissória é a Declaração do Milênio.
A Declaração do Milênio estabelece o compromisso da comunidade internacional com a erradicação da pobreza. Essa promessa está respaldada por metas quantificáveis e expressas nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio - os ODM.
Há pessoas que questionam a validade das cúpulas mundiais, outras, a validade dos ODM enquanto marco conceitual válido para orientar as ações da cooperação internacional. Ambas as concepções estão profunda e perigosamente erradas. O flagelo da extrema pobreza e das profundas desigualdades representa o desafio ético de nossos dias. Num mundo crescentemente interdependente, eles representam também uma ameaça à segurança coletiva e à prosperidade. Um imperativo moral faz com que a Cúpula Mundial das Nações Unidas de 2005 seja importante demais para fracassar e que os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio sejam demasiado importantes para serem desconsiderados.
Enquanto os governos preparam o documento final da Cúpula, é preciso que eles se afastem do modo de negociar artigo por artigo e reflitam sobre aquilo que está em jogo. Como diz o Relatório do Desenvolvimento Humano de 2005, a continuidade das tendências atuais conduzirá a resultados pouco encorajadores.
É o caso da mortalidade de crianças. Em 2015, o mundo estaria 4 milhões de mortes abaixo da meta, o equivalente à população conjunta, menor de cinco anos de idade, das cidades de Nova York, Londres e Tóquio. Na África Subsaariana, a meta seria atingida no ano 2115, ou seja, um século mais tarde.
Superficialmente, a perspectiva de atingir a meta da redução da extrema pobreza para a metade é mais positiva, em parte, pelo desempenho da Índia e da China. Não obstante os dados agregados mundiais, o panorama é mais sombrio quando se analisa país a país: 400 milhões de pessoas continuariam, sem alcançar o ODM, abaixo da linha de pobreza. Um olhar ao objetivo da provisão de educação para todas as crianças do mundo é esperançoso, porém, segundo as tendências atuais, 46 milhões de crianças ficaram sem ir à escola.
As projeções feitas são baseadas em tendências. Felizmente, estas não se traduzem no destino. Ainda há tempo para pôr em prática políticas e investir os recursos necessários para atingir os ODM. Mas o relógio marca seu passo e o tempo é curto. O que fica muito claro é que uma década de "business as usual" não permitirá atingir os ODM, já que trazem implicações em termos de sofrimento humano.
Seria pouco realista esperar que uma reunião internacional desta natureza produza um plano de ação para acelerar o progresso dos ODM. Porém, é importante que os participantes aproveitem a oportunidade que têm de aprofundar a agenda contra a pobreza. Do mesmo jeito, se a reunião de chefes de Estado e de governo produz um comunicado desprovido de conteúdo substantivo, uma mensagem equivocada é transmitida para o mundo. Um resultado dessa natureza deixaria os governos navegando contra fortes correntes de pressão pública, assim como ocorreu com a campanha "Virando a Pobreza História".
Então, o que é que a Cúpula Mundial das Nações Unidas pode fazer para recuperar o rumo desejado? Para começar, fortalecer o momentum gerado na reunião do G-8. No encontro de julho passado, no País de Gales, as nações ricas reuniram-se com os líderes dos países africanos para concertar medidas de incremento da ajuda ao desenvolvimento e da redução da dívida externa.
O comércio internacional representa um desafio ainda maior. Após quatro anos da Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio, as negociações estão travadas. O problema: os países ricos estão pedindo muito e dando muito pouco. Alguns dos países mais pobres enfrentam as maiores barreiras ao comércio com os países ricos. Os subsídios agrícolas estão aumentando e os países pobres se vêem pressionados a fechar acordos sobre investimento, propriedade intelectual e liberalização comercial, que podem ameaçar seus esforços de redução da pobreza.
A não ser que se produzam mudanças, a reunião ministerial programada para dezembro deste ano vai fracassar. Um resultado com consequências devastadoras para a legitimidade do sistema multilateral de comércio baseado em regras. A agricultura é uma prioridade. Atualmente os governos do Norte gastam US$ 1 bilhão por ano em ajuda ao desenvolvimento rural dos países em desenvolvimento, e a mesma quantidade por dia em subsídios a seus próprios produtores agrícolas. Esses subsídios, somados às altas tarifas, não podem ser defendidos. Sistematicamente prejudicam pequenos produtores de países em desenvolvimento tanto em mercados globais, quanto em mercados locais, baixando os preços, fechando oportunidades e reforçando círculos de pobreza.
As potências que subsidiam a União Européia e os Estados Unidos poderiam mandar um sinal claro à Rodada de Doha. O primeiro-ministro britânico, Tony Blair, já fez um chamado para a eliminação dos subsídios às exportações num prazo de cinco anos. Integrada ao compromisso de se fazer cortes mais profundos nos acordos e tarifas, esta medida pode causar uma mudança no contexto negativo pelo qual passa a OMC, destravando negociações em outras áreas.
A segurança é outra área de ação prioritária. Os conflitos violentos ainda são uma das barreiras mais poderosas ao alcance dos ODM, já que o mundo carece de uma estrutura institucional capaz de integrar a prevenção de conflitos, a manutenção da paz e a reconstrução pós-conflito. É a razão pela qual o secretário-geral tem priorizado o estabelecimento de uma Comissão de Construção da Paz. É também a razão pela qual a cúpula deve respaldar o princípio da "responsabilidade de proteger" as populações mais vulneráveis.
Finalmente, a Cúpula da próxima semana vai além da agenda dos ODM e da reforma das Nações Unidas. Há cinco anos, os líderes do mundo fizeram uma promessa aos cidadãos mais vulneráveis. Se como comunidade global não podemos manter essa promessa, então que expectativa temos de superar as sérias ameaças que impõem as mudanças climáticas, a proliferação de armas nucleares, as epidemias e o terrorismo internacional?
O unilateralismo não é uma verdadeira alternativa sequer para os países mais poderosos. Não existe outra alternativa que a cooperação internacional baseada em regras, se desejamos construir um mundo mais estável, mais seguro e menos dividido. A Cúpula das Nações Unidas é uma prova de fogo para o compromisso da cooperação internacional. A cúpula é importante demais para arriscar um fracasso. Por isso, precisamos nos assegurar de que a nota promissória dos ODM não traga um carimbo de "sem fundos".

Kevin Watkins Diretor do Relatório do Desenvolvimento Humano 2005 - PNUD

JB, 12/09/2005, Economia & Negócios, p. A18

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