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Um retrocesso inaceitável

O Globo, Opinião, p. 7
Autor: SARNEY FILHO, José
27 de Jul de 2004

Um retrocesso inaceitável

José Sarney Filho

Há pouco mais de uma semana, o Congresso Nacional aprovou projeto de lei que estabelece um novo regime de garantias financeiras para a construção civil, entre elas a cédula de crédito imobiliário e a cédula de crédito bancário. São várias as inovações, que objetivam fortalecer o setor imobiliário, gerador de milhares de empregos, e ampliar a oferta de imóveis, especialmente os residenciais.

Aproveitando-se da inequívoca importância social do projeto -- que levou, em fato político raro no Parlamento, à votação relâmpago do texto, em um dia na Câmara e, no outro, no Senado--, ala atrasada e minoritária do setor imobiliário introduziu dispositivo (artigo 64), que afasta a aplicação do Código Florestal nas "áreas urbanas e de expansão urbana".

O fato é triplamente grave. Primeiro, no plano da ética do processo legislativo, por inserir-se um tal artigo, de natureza estritamente ambiental, em um projeto que, na sua inteireza, cuida de matéria financeira e bancária. Trata-se de condenável oportunismo político, com o óbvio propósito de impedir a discussão pela sociedade civil e pelo próprio Congresso de tamanha virada de rumo da política ambiental brasileira.

Por outro lado, excluir os empreendimentos imobiliários, inclusive grandes loteamentos, das exigências do Código Florestal é condená-lo a não valer onde mais é necessária sua aplicação. Hoje, os maiores e devastadores lançamentos imobiliários se encontram na Mata Atlântica, bioma do qual só restam pouco mais de 5% de sua cobertura original. Está aí todo o litoral a demonstrar a necessidade do Código Florestal, como última barreira à pressão da especulação imobiliária desenfreada sobre o que sobrou de restingas, dunas, mangues e remanescentes florestais.

Não é só. A cada temporada de chuvas, morrem centenas de brasileiros, por enchentes e desmoronamentos, acidentes em grande parte devidos à construção ilegal, já que proibida pelo Código Florestal, de imóveis em áreas de risco. A prevalecer o art. 64, aquilo que hoje, até pelo bom senso, é irregular e inadmissível, passará a ser admitido. Pior, há municípios declarando a totalidade de seu território como área de "expansão urbana", mesmo que genuinamente rural. Ora, se a moda pega e o novo dispositivo não for vetado, em pouco tempo o Código Florestal não mais terá onde ser aplicado, pois boa parte do Brasil, como resultado de declaração formal das administrações municipais, será área urbana ou de expansão urbana.

Finalmente, o art. 64 terá efeito devastador no valor das indenizações milionárias que o poder público federal, estadual e municipal vem sendo condenado a pagar, quando cria Unidades de Conservação ou desapropria imóveis para a reforma agrária. É o Código Florestal que impede o corte raso de boa parte dessas glebas, especialmente se nelas houver matas ciliares, topografia inclinada ou manguezais. Com isso, abre-se ao Erário a possibilidade legal de alegar em juízo a impossibilidade de indenização homogênea para a integralidade da propriedade. Em outras palavras, é descabida sua indenização como se em toda ela fosse possível atividade agropecuária ou a construção de loteamentos de luxo. Deve-se exatamente a esses limites do Código Florestal a redução de até 80% da indenização pleiteada pelo proprietário (ou, como é freqüente, por advogado que "comprou o litígio"), trazendo-se os valores para algo mais próximo do verdadeiro preço de mercado.

O novo artigo 64 é, pois, um retrocesso sem precedentes na evolução da legislação ambiental brasileira. Em particular, sangra de morte a Mata Atlântica, nossos manguezais e toda a zona costeira, mas possibilita, também, agressões a todos os biomas: imagine-se um município no meio da Amazônia que resolva expandir suas áreas urbanas desmatando vastas matas ciliares à beira do Rio Amazonas. Seria um absurdo!

Por outro lado, a repercussão financeira nas contas públicas deve deixar também os contribuintes em pé de guerra. Não se pode sancionar um dispositivo que favorece somente uma minoria, acuada, tanto pela pressão da opinião pública como pela atuação firme dos procuradores do poder público e do Ministério Público.

A manutenção da aplicação do Código Florestal ao setor imobiliário, numa palavra, não só é de rigor pela tradição do nosso Direito, como uma providência hoje imprescindível no combate à máfia das grandes incorporações imobiliárias. Para o bem da nação, a sorte do artigo 64 só pode ser uma: o veto presidencial.

José Sarney Filho é deputado federal (PV-MA).

O Globo, 27/07/2004, Opinião, p. 7

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