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Um paraíso em perigo

Veja, Ambiente, p.110-18,120
14 de Dez de 2005

Um paraíso em perigo
O desmatamento e uma série de projetos industriais são as novas ameaças ao delicado equilíbrio ecológico de uma das mais preciosas jóias naturais do Brasil. A boa notícia é que ainda há tempo para impedir o pior

Ruth Costas, de Corumbá

O Pantanal Mato-Grossense é um dos maiores, mais complexos e mais frágeis ecossistemas do planeta. Há mais de dois séculos ele vem resistindo à convivência com o homem civilizado. A região conseguiu escapar do triste destino da Mata Atlântica - a exuberante formação vegetal que se estendia ao longo da costa brasileira e de cuja cobertura original restam menos de 10%. Mas nunca como agora foram tão grandes e reais os perigos à bela e rica planície inundável brasileira. Com uma área do tamanho da Inglaterra, o Pantanal abriga uma biodiversidade que só perde para a da Amazônia. São 665 espécies de aves, 95 de mamíferos, 162 de répteis, quarenta de anfíbios, 1.100 de borboletas e mais de 1.700 de plantas. Além da diversidade, a vida no Pantanal chama a atenção mundial pela generosidade do estoque. Vivem na região as maiores populações de alguns animais ameaçados de extinção, como a onça-pintada e a arara-azul.
A preservação do Pantanal se deveu a condições históricas e geográficas. Ao contrário da Mata Atlântica e da Amazônia, formadas principalmente por terras devolutas, cada centímetro do Pantanal tem um dono. Contribuiu também o fato de a região ter permanecido isolada por quase 200 anos. Essa última barreira, a do isolamento, começou a cair na década passada, quando o Pantanal se tornou um dos destinos preferidos de turistas brasileiros e estrangeiros. Muitas fazendas se adaptaram para funcionar como pousadas e hotéis. O turismo é a mais limpa das atividades econômicas, até porque vive da preservação das belezas naturais. Mas, infelizmente, o Pantanal não é uma ilha. A região passa por um fenômeno que lembra muito a agonia do Parque Nacional do Xingu, onde vivem em excelentes condições milhares de indígenas brasileiros. O pesadelo do Xingu é a degradação ambiental que ocorre a sua volta. O do Pantanal também. Com uma agravante. O Pantanal é uma planície alagada cercada de planaltos. Essa característica geológica desfavorável facilita a entrada no paraíso de todos os tipos de detritos produzidos pela ocupação econômica a seu redor.
De acordo com um levantamento recém-concluído, entregue a VEJA na semana passada pela ONG Conservação Internacional, 17% da cobertura vegetal original do Pantanal já foi destruída para a abertura de áreas de pastagem, quase o dobro do registrado em 2000. É uma informação de assustar. Mantido esse ritmo, a vegetação típica da região desapareceria em pouco mais de quarenta anos. "O avanço do desmatamento dentro do Pantanal é uma novidade", diz Mônica Harris, diretora do Programa Pantanal da Conservação Internacional e coordenadora do estudo, feito com base em imagens de satélite. "Até o fim dos anos 90, esse era um problema restrito aos planaltos que rodeiam a planície pantaneira." No contexto pantaneiro, a expressão "desmatamento" não significa necessariamente a derrubada de árvores. Também se aplica à substituição do capim nativo por variedades exóticas. O que faz do Pantanal uma região ecológica tão importante é a complexa mistura de campos gramados, florestas tropicais, matas de cerrado e vegetação típica de áreas alagadas. Por isso, a substituição de um pasto por outro tem conseqüências sérias no equilíbrio ambiental.
O avanço do desmatamento é uma das conseqüências do declínio da pecuária extensiva tradicional. Por mais de dois séculos a criação de gado conviveu em harmonia com o ecossistema do Pantanal. Os animais eram criados soltos em pastos de capim nativo e, quando as áreas baixas ficavam alagadas, peões a cavalo conduziam as boiadas para os terrenos altos. Esse manejo tradicional persiste em parte das fazendas, mas nos últimos dez anos um número crescente de pecuaristas tem adotado métodos mais agressivos, como a derrubada das árvores das áreas não alagáveis e a substituição do capim nativo pela braquiária, uma variedade africana, mais nutritiva e palatável para o gado. A mudança é impulsionada por uma combinação de fatores. O primeiro deles é a busca de maior produtividade para competir com o gado de outras regiões. No Pantanal nascem em média quatro bezerros para cada dez vacas, enquanto no planalto chegam a nascer nove. Para muitos criadores, garantir alimento abundante para as reses o ano todo parece a forma mais simples de ganhar competitividade nas áreas alagáveis.
O segundo fator é a chegada ao Pantanal de pecuaristas de outros estados. Eles não se interessam pelo modo pantaneiro de criar gado e implantam o sistema de manejo existente no restante do Centro-Oeste. O terceiro é a reforma agrária familiar. Propriedades que no início do século XX tinham mais de 100.000 hectares - área equivalente à do município do Rio de Janeiro - passaram por sucessivas divisões entre os herdeiros. Hoje há fazendas de pouco mais de 5.000 hectares, pequenas para os padrões locais. "Se metade da propriedade alaga na época das cheias, transformar todo o espaço possível em pasto pode ser uma necessidade", explica Julio Cesar Gonçalves, coordenador do Programa de Estudos do Pantanal da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Por fim, no planalto e nas bordas do Pantanal os produtores que preservam intacta grande parte de sua propriedade têm uma preocupação a mais: as terras podem ser consideradas improdutivas e desapropriadas pelo Incra. "Não existe diálogo entre o Incra e o Ibama", diz Carlos Padovani, pesquisador da área de impacto ambiental da Embrapa Pantanal. "Dessa forma, os fazendeiros ficam indecisos entre regras que tentam limitar os desmatamentos e outras que os pressionam por um aproveitamento maior da fazenda."
Nos últimos cinco anos, os pecuaristas têm encontrado um incentivo a mais para desmatar: eles podem reduzir os custos da "limpeza" por meio de acordos com carvoarias, que já se instalaram na região do planalto e agora começam a invadir as bordas do Pantanal. Os donos das carvoarias se encarregam de derrubar as árvores em troca do direito de usar a madeira para fazer carvão. O produto final é vendido a siderúrgicas, onde é empregado na purificação do minério de ferro retirado de minas localizadas nos arredores de Corumbá, a maior cidade pantaneira, ou em Minas Gerais. Só em Mato Grosso do Sul, estado que abriga 65% do Pantanal, estima-se que existam 5.000 carvoarias, das quais apenas 468 têm existência legal.
O resultado do desmatamento é a redução progressiva das matas de cerrado e da tropical, nichos ecológicos importantes para espécies como o veado-mateiro e a arara-azul. A introdução da braquiária também tende a afastar alguns animais. Segundo pesquisas realizadas pela Embrapa, o número de espécies de répteis e anfíbios cai pela metade em locais em que o solo é coberto por esse tipo de capim. "A braquiária é uma espécie de monocultura, e sempre que você substitui um ambiente complexo por um simples perde diversidade biológica", diz o biólogo Walfrido Tomás, um dos responsáveis pela pesquisa. Diferentemente do que ocorre na Amazônia, onde a lei manda preservar como reserva legal 80% das propriedades, não existe nenhuma lei específica para o Pantanal. Valem as normas do Código Florestal brasileiro, de 1965, que se aplicam em todo o país. Por essas normas, 20% da área deve ser preservada, além das regiões das encostas e das margens dos rios.
Muitos ambientalistas defendem a criação de uma legislação própria para a região. "Uma legislação específica deveria contemplar as características da região e também conceder mais incentivos para os fazendeiros preservarem a riqueza que existe sobre suas terras", diz o biólogo Alcides Faria, da ONG Ecoa, de Campo Grande. Novas regras poderiam ajudar na preservação - mas uma lei a mais pouco significa se o estado não está aparelhado para fiscalizar sua aplicação. A polícia ambiental de Mato Grosso do Sul dispõe de apenas 354 agentes, um para cada 1.000 quilômetros quadrados de território. Como mais de 90% do Pantanal está em mãos de particulares, teria maiores chances a política de preservação que pudesse contar com a colaboração dos fazendeiros. Aliás, deve-se ao esforço de muitos proprietários e organizações ambientalistas o fato de mais de 80% da área ainda ser mantida relativamente intacta. No Pantanal estão localizadas as maiores reservas particulares de proteção natural do país. Essas são áreas privadas transformadas em reservas por iniciativa de seus proprietários. Só podem ser utilizadas para pesquisa, visitação e atividades educacionais. No total, as reservas particulares e as do estado somam perto de 5% da área total do Pantanal. A maior delas é a do Sesc, em Mato Grosso, que abriga 78 espécies de mamíferos e é um dos principais centros de pesquisa da região.
Toda a vida do Pantanal pulsa ao ritmo das cheias e vazantes. Durante a estação das cheias, que vai de novembro a março, os rios transbordam e alagam os campos, o que faz com que os peixes encontrem alimento abundante em meio à vegetação submersa. Em abril, quando o rio começa a voltar para o seu leito, muitos cardumes ficam aprisionados nas lagoas que se formam nos campos. É quando começa a comilança para os jacarés, ariranhas, tuiuiús, biguás e garças. A fartura de alimentos garante a opulência da fauna, o maior chamariz para os turistas que se acomodam nas dezenas de pousadas, hotéis e fazendas que nos últimos anos adaptaram suas acomodações para receber visitantes. "Para o turismo, a preservação da natureza faz parte do negócio", diz o carioca Lucas Leuzinger, que há três anos abriu uma pousada na Fazenda Barranco Alto, à beira do Rio Negro, que serviu de cenário para cenas da novela América. "As onças, por exemplo, passaram a ser vistas como atrações para os visitantes, e não mais como um inimigo que ataca o gado", explica.
Evitar a devastação dentro do Pantanal é importante, mas não garante a preservação da região. Isso porque boa parte das ameaças ao Pantanal é resultado da degradação de áreas que estão fora de seus limites, mais precisamente nos planaltos que rodeiam a região e começaram a ser revirados pela agricultura na década de 70. A planície pantaneira foi formada pelo mesmo espasmo geológico que produziu a Cordilheira dos Andes. A parte que afundou é o Pantanal, cujo regime de cheias e vazantes é regulado pela água dos rios que desce dos planaltos que o rodeiam. A quantidade de água que entra é tão grande e o terreno é tão plano que os rios não dão conta de drenar todo o líquido. "É como se o Pantanal fosse uma grande pia com um ralo minúsculo", explica o hidrólogo canadense Pierre Girard, coordenador do Centro de Pesquisas do Pantanal, uma organização com sede em Cuiabá que agrega universidades públicas e privadas que estudam a região. "Como a vazão da torneira é maior que a vazão do ralo, a água custa a sair e deixa a área alagada." Só 40% da água que entra na "pia" é carregada para fora do Pantanal. O restante evapora quando ainda está na região, o que faz com que grande parte das substâncias tóxicas despejadas na água - basicamente pesticidas usados na agricultura e esgotos urbanos não tratados - permaneça na planície tempo suficiente para provocar estrago. O risco maior é causar a morte de peixes, que são a base da cadeia biológica do Pantanal.
Por milhares de anos, a planície recebeu toneladas e mais toneladas de sedimentos trazidos das áreas mais altas pelo vento e pela água. Esse processo natural se intensificou nas últimas três décadas por causa das lavouras e da erosão nas terras altas. O resultado é o assoreamento dos rios. O caso mais grave é o do Rio Taquari, que saiu do leito normal e alagou 300 fazendas. Para chamar atenção sobre as ameaças que pesam sobre o Pantanal, um ambientalista mato-grossense recorreu a um gesto extremo: imolou-se numa praça central de Campo Grande, a capital de Mato Grosso do Sul, no mês passado. Dirigente de uma pequena ONG, Francisco Anselmo de Barros tinha 65 anos quando morreu devido às queimaduras. Seu derradeiro protesto foi contra o projeto de lei apresentado pelo governo estadual que autorizava a construção de usinas de álcool no planalto onde nascem os rios que correm para o Pantanal. "Ele lutou pela preservação do Pantanal por mais de vinte anos, mas ultimamente estava desiludido, sentindo que todo o seu esforço havia sido em vão", diz sua viúva, Iracema Sampaio. Sob o impacto da morte do ambientalista, a Assembléia Legislativa sul-mato-grossense rejeitou a proposta do governador no último dia de novembro.
O risco da revogação da proibição para a instalação de usinas de álcool na borda do Pantanal segue a mesma lógica do risco representado pelos pesticidas e pelo esgoto urbano. Mesmo que as usinas não estejam localizadas dentro do Pantanal, seus resíduos tóxicos iriam acabar nos rios da planície por uma simples questão de física: a água corre para baixo. Os ambientalistas preocupam-se com outras possibilidades de poluição do ar e da água contidas em três projetos que estão sendo implementados a toque de caixa pelo governo de Mato Grosso do Sul. Um deles é a criação de um pólo industrial para produzir fertilizantes e plástico em Corumbá, aproveitando a passagem por lá do gasoduto Brasil-Bolívia. Outro projeto é atrair siderúrgicas para processar em Corumbá o minério de ferro, que já é extraído do subsolo do município por duas grandes empresas, aumentando o valor agregado do produto que sai do estado. A terceira e última idéia, que recebe também o apoio do governo de Mato Grosso, é a retomada de um antigo projeto, engavetado em razão dos protestos no Brasil e no exterior, para construir uma hidrovia ligando a cidade de Cáceres ao Porto de Nueva Palmira, no Uruguai. Pelo plano original, para tornar o Rio Paraguai navegável 365 dias por ano, seria necessária uma operação gigantesca para aumentar sua calha. O aumento da vazão do rio poderia drenar parte da água do Pantanal e destruir o equilíbrio de seu delicado ecossistema. A exploração racional da Amazônia é uma equação que ainda não foi resolvida. Esse desafio no Pantanal é ainda mais complexo, arriscado e sem volta. Por isso, é bom pensar duas vezes antes de abrir as portas do paraíso à civilização.

Veja, 14/12/2005, Ambiente, p. 110-118, 120

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