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Um país que só existe no mapa

JB, País, p. A3
18 de Jan de 2004

Um país que só existe no mapa
Cartografia usada ainda hoje pelo IBGE traz informações desatualizadas, em alguns casos, há mais de 30 anos

Israel Tabak
isr@jb.com.br

Imagine um mapa da Barra da Tijuca e de toda a Baixada de Jacarepaguá no fim da década de 60. Dois loteamentos maiores, um no início e outro no fim da orla, casas esparsas, sítios, chácaras e as torres redondas projetadas por Oscar Niemeyer, em obras, seriam alguns dos poucos referenciais. Uma região quase desocupada, sem os condomínios e shoppings modernosos, uma das muitas marcas do bairro.
Qualquer um se espantaria se olhasse hoje um mapa oficial da área e topasse com a situação de 35 anos atrás. É justamente isso que está ocorrendo com mapas de algumas regiões importantes do país, em várias escalas. Quase 20 anos de restrições orçamentárias - fruto da estagnação econômica das últimas décadas - traçaram um quadro irreal, visto com preocupação não só pelos técnicos do IBGE como por todos os setores que dependem de dados não defasados. Os gestores estaduais e municipais são um exemplo: o volume do dinheiro federal dos fundos de participação é repartido de acordo com dados atualizados das populações.
Por isso mesmo, 10 anos se tornaram um período exagerado para espaçar os censos demográficos. O IBGE resolveu recensear de novo a população em 2005. Também no ano que vem será feito o censo agropecuário. Mas como pesquisar 58 milhões de domicílios e 5,8 milhões de propriedades rurais, se cada um dos 235 mil entrevistadores receber um mapa/roteiro velho da região a ser pesquisada?
É por isso que o redesenho dos mapas brasileiros, em suas diversas escalas, é uma prioridade do IBGE, explica o presidente do Instituto, Eduardo Nunes:
- A realização do censo, com atividades a serem desenvolvidas em 2004, 2005 e 2006, consta do Plano Plurianual de Investimentos e os custos estão previstos no Orçamento.
O governo prometeu a partir deste ano não contingenciar as verbas previstas no Orçamento, lembra Eduardo Nunes. Não é pouco dinheiro. Para serem gastos nos três anos com o censo estão previstos R$ 650 milhões, dos quais R$ 50 milhões serão usados em 2004, R$ 560 milhões em 2005 (o ano do censo) e R$ 40 milhões em 2006, para trabalhar os dados obtidos.
A maior parte do dinheiro previsto para este ano servirá justamente para refazer os mapas. Serão R$ 30 milhões para que cada pesquisador possa receber indicações precisas - e não defasadas - sobre cada local visitado. A soma dos 235 mil mapas/roteiro a serem entregues aos recenseadores formarão a cartografia refeita do Brasil.
- Num país com 8,5 milhões de quilômetros quadrados, a cartografia não é barata. São fotos aéreas e imagem de satélite - duas técnicas muito caras - que depois são transformadas em mapas - explica Eduardo Pereira Nunes.
Uma confusão não deve ser feita - complementa o coordenador de cartografia do Instituto, Jaime Pitaluga Neto. O fato de os mapas estarem desatualizados não quer dizer que os dados estatísticos se encontrem na mesma situação.
- Temos equipes específicas que levantam diversos dados estatísticos - nas áreas de saúde, educação e habitação, por exemplo - e que estão sempre sendo refeitos. O que não está em dia são as fotos aéreas e as imagens por satélite - esclarece Jaime Pitaluga.
Os dados corrigidos vão beneficiar administradores, planejadores, engenheiros e todos aqueles que necessitam de informações geográficas para definir políticas públicas.
Uma cartografia não defasada é essencial para grandes obras, por exemplo, como a construção de hidrelétricas, estradas ou obras de irrigação.
- Não se pode fazer uma obra como a transposição das águas do Rio São Francisco sem que se conheçam todas as mudanças ocorridas na área, nos últimos anos - adverte o diretor de Geociências do IBGE, Guido Gelli.
- Meandros de rios se modificam, lagoas secam ou diminuem. São muitas mudanças que não estão no mapa - exemplifica Jair Pitaluga.

Histórias de um outro tempo

Quando João Ernesto Gil começou a trabalhar, ainda criança, nas salinas de São Pedro da Aldeia (Região dos Lagos) não havia muitas opções de emprego na área.
- Ou o sujeito era pescador ou salineiro - conta.
João, 60 anos, até hoje transporta sal nos carrinhos de mão, numa das poucas salinas que sobreviveram à maré que varreu a região, desde a inauguração da Ponte Rio-Niterói.
O incremento do turismo, com a conseqüente expansão imobiliária, mudou o perfil da Região dos Lagos e acentuou a decadência da produção salineira, basicamente artesanal.
A salina onde João Ernesto trabalha fica junto à estrada que liga São Pedro da Aldeia a Cabo Frio, às margens da Lagoa de Araruama e está ao lado do maior condomínio da cidade, com mais de 900 casas.
Quem for, no entanto, ao IBGE, e pedir o mapa oficial dos municípios de Cabo Frio, São Pedro da Aldeia e Arraial do Cabo - preparado pelo instituto com a escala de 1 por 50 mil - vai levar um susto: o condomínio da década de 80 que faz divisa com a salina Pajé não está indicado no mapa.
Numa extensa área junto à estrada, o IBGE só registra uma sucessão de salinas, como a Guarani, a Pajé, a Esper, a Santa Luzia, a Maracanã e a Moçoró. Algumas, como a Tupi, fecharam, outras, como a Maracanã, continuam funcionando normalmente e há ainda as que desistiram da maior parte da área antes operada, permanecendo com uma produção muito restrita.
A escala do mapa permite detalhamentos, como localização precisa de fazendas, escolas, igrejas, ambulatórios e fábricas.
O problema é outro: embora a cartografia da área seja a mais recente disponível, a última atualização ocorreu em 1975, representando uma defasagem de 29 anos.
De lá para cá, a produção das salinas declinou ainda mais. E, nos últimos anos, para piorar a situação, está chovendo muito em épocas normalmente secas: a água da chuva "derrete" o sal acumulado nas quadras de armazenamento - tenta explicar Sebastião Oliveira, um dos que ainda não desistiram do setor.
É por fenômenos como este que o pernambucano Benedito Pantaleão, que antes também era empregado de numa salina, se tornou o vigia do condomínio não mencionado pelo IBGE:
- Tem muito pouca gente que ainda mexe com o sal. É sofrido: dá problema de vista e de pele - reclama.
Na época em que o IBGE "atualizou" pela última vez o mapa, o município não tinha mais do que 25 mil habitantes, isso quando Iguaba Grande ainda era um distrito da cidade. Hoje, com Iguaba emancipada, São Pedro da Aldeia conta com mais de 72 mil moradores, como lembra a secretária de governo, Márcia Fontes.
- O declínio das salinas já existia antes de a Ponte Rio-Niterói ficar pronta. Nas últimas décadas, o perfil do município é outro. Veio gente dos centros maiores e até do Noroeste Fluminense, em busca de nova vida e tranquilidade. Com a expansão imobiliária, os problemas da cidade mudaram - relata a secretária.
Hoje, a preocupação é impedir o alastramento dos loteamentos irregulares:
- Isso diminui a qualidade de vida do município, acarreta problemas de saneamento e de desordem urbana - afirma Márcia Fontes.
Na Região dos Lagos, como em outros pontos do Estado, as favelas também se expandiram nos centros urbanos e uma moderna rodovia privatizada facilitou ainda mais o acesso à região. Só não há registro nos mapas do IBGE.

Vazios a serem preenchidos

Algumas áreas do país têm mapas tão antigos - alguns não refeitos há mais de 30 anos - que formam quase "vazios cartográficos", como são chamadas as regiões em que há carência de dados.
O país mudou muito nas últimas décadas: regiões assumiram novas características, movimentos migratórios se acentuaram, mas o IBGE, por falta de verba, não conseguiu acompanhar o processo.
Os técnicos citam como exemplo o litoral e o semi-árido nordestino, o Noroeste da Bahia, até a divisa com Sergipe, zonas de fronteira na Amazônia e de colonização recente no Maranhão, além do Triângulo Mineiro.
- No Triângulo, por exemplo, a economia, antes baseada na agropecuária, se modificou. Hoje por lá também se planta café, soja e laranja - exemplifica o presidente do IBGE, Eduardo Nunes.
Programas oficiais como o Fome Zero e de incentivo à agricultura familiar estão sendo desenvolvidos em alguns destes quase "vazios", que precisam ser de novo fotografados para evitar eventuais falhas nos projetos - alertam os técnicos do IBGE.
Mesmo em áreas mais desenvolvidas há "novidades" que os mapas do IBGE não registram, como parte da moderna malha rodoviária de São Paulo.

JB, 18/01/2004, País, p. A4

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