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Um país perverso

FSP, Brasil, p. A5
Autor: FREITAS, Jânio de
22 de Nov de 2007

Um país perverso

A vastidão de miséria negra e branca é o curso normal de uma história a que os indígenas não poderiam escapar

Jânio de Freitas

Na excitação criativa do governo Juscelino, cujas inovações de sentido social, ou simplesmente humanitárias, estiveram longe do nível de prioridades, uma delas foi extraordinária pela originalidade e no objetivo. Eram as Unidades Sanitárias Aéreas, que estariam fazendo 50 anos, se sobrevivessem ao golpe de 64. Idéia da figura especialíssima de Noel Nutels, sanitarista brasileiro com origem na Ucrânia, as Unidades consistiam em uma equipe formada por clínico, dentista, oftalmologista e outras especialidades, equipamentos portáteis de exames e alguns remédios, tudo levado em velho avião da FAB para sucessivas aldeias indígenas.
Cada tribo visitada era toda ela submetida, quase sempre com a colaboração diplomática de um dos Villas Bôas ou outro dos grandes sertanistas da época, aos vários exames ali possíveis, para um registro sanitário das suas condições e eventuais providências. Nas tribos de contato mais recente com os brancos -eram o alvo principal- os exames levaram a constatações nem de longe esperadas: a saúde era uma combinação de perfeições humanas muito mais completa e difundida do que se podia imaginar.
Os xavantes, homens e mulheres maciços e altos, sempre sorridentes mas ressabiados, como confirmação da sua fama de irascíveis, deram a chave para minha reportagem em "Manchete": entre eles, não foi encontrada nem ao menos uma cárie, nem uma só para constar nos registros algum achado. (Por coincidência, a edição dessa reportagem iniciou a prática de um conceito novo de estética e comunicação visual no jornalismo de revista brasileiro, depois passado ao jornalismo diário no "Jornal do Brasil" -origem nunca percebida pelas "pesquisas" sobre a "imprensa em transição").
Tive há pouco notícia daqueles xavantes que faziam e viviam o paraíso da saúde inimaginável: 80 famílias xavantes (as últimas?) vão receber o Bolsa Família, como socorro para tentarem escapar à subnutrição e às doenças que as devastam.
A vastidão de miséria negra e branca que está por toda parte no Brasil, como destino de pelo menos um quarto da população, é o curso normal de uma história -a da "civilização brasileira"- a que os indígenas não poderiam escapar. As florestas caem sob a ferocidade da agroindústria, os morros urbanos são favelas, as periferias das cidades de riqueza são aglomerados da vida desumana. Que país perverso é o Brasil, tão falsamente pacífico, generoso, sentimental até.

FSP, 22/11/2007, Brasil, p. A5

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