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Um macaco pacífico que destruiu mitos

O Globo, Ciência e Vida, p. 52
Autor: STRIER, Karen
06 de Ago de 2006

Um macaco pacífico que destruiu mitos
Pesquisadora americana que se dedicou ao estudo dos símios revelou novos padrões de comportamento

Entrevista: Karen Strier

Karen Strier desembarcou em Caratinga, Minas Gerais, jovem estudante de doutorado da universidade de Harvard, para uma trajetória que desmontaria as convicções científicas sobre o comportamento dos primatas. Karen já havia estudado os babuínos do Parque Nacional do Amboseli, no Quênia. Pensava estudar, para seu doutorado, os bonobos ou os chimpanzés. Mas seu orientador lhe falou dos muriquis de Caratinga e a apresentou a Russel Mittermeier, presidente da Conservação Internacional, e ele a trouxe ao Brasil para conhecê-los. Veio, viu e gostou. Optou por estudar esses simpáticos e desconhecidos macacos do Novo Mundo, em vez dos prestigiados primatas de grande porte do Velho Mundo, que haviam sustentado por décadas a noção de que havia um padrão de comportamento típico dos primatas que chegava, na cadeia evolutiva, até o primata humano.

Voltou aos EUA, levantou fundos para sua pesquisa e começou um estudo que já dura 26 anos. Foi pavimentando cuidadosamente seu caminho para o centro da primatologia mundial. Em 1994 publicou um artigo que virou referência obrigatória para qualquer trabalho sério sobre o comportamento de primatas e até sobre o comportamento humano. "O mito do primata típico" desmoronou o paradigma tradicional da antropologia sobre o comportamento dos primatas e contribuiu para substituir a idéia de um comportamento padrão pela noção mais rica e correta da diversidade de comportamentos. Esse ano passou a fazer parte da prestigiosa Academia Nacional de Ciência dos EUA.

O Globo: Quando você veio estudar no Brasil era jovem, não conhecia o país, não falava a língua. Não teve medo?

Karen Strier: Medo tinha, mas a sensação maior que eu tinha, antes de falar português, era solidão. Eu me sentia muito sozinha. As pessoas eram simpáticas, mas conversavam entre elas. Para não me sentir sozinha, ficava na mata. Com os muriquis, eu não me sentia sozinha.
Hoje está totalmente integrada, conhece todo mundo, é madrinha de casamento. Como conseguiu se integrar?

Karen: Tem gente aqui que eu conheço mais da metade da minha vida. Isso é profundo. Conheço gente aqui há mais tempo do que conheço meu marido. Na época eu achei que, ao fim da pesquisa, eu não iria voltar. Mas recebi uma carta do pessoal daqui me dizendo que haviam nascido filhotes. E eu perguntei: quem nasceu? Filho de quem? Fiquei interessada, procurei financiamento e voltei. Quando cheguei, estava sendo esperada na porta do ônibus pelo senhor Feliciano e outros moradores. Foi lindo. Senti que estava voltando para casa. E aí voltei de novo, voltei de novo e continuo voltando sempre.

Você e o senhor Feliciano eram totalmente diferentes. Você fazendo doutorado em Harvard e ele um homem local, ex-tropeiro. Como vocês se entenderam?

Karen: Eu era muito nova e ele era um cavalheiro, ele se sentia responsável. Não tinha responsabilidade, mas achava que tinha que cuidar de mim. Sempre perguntava por mim e eu estava sempre trabalhando e isso fez com que ele me respeitasse. Ele também era muito trabalhador. Eu sempre respeitei as regras estabelecidas por ele, sabia que estava aqui graças a ele, nas terras dele. Entendi meu lugar e não me sentia importante. Na época as pessoas tinham suspeita dos estrangeiros. Eu não mostro dentes, sei me comportar. Estudo primatas, afinal de contas.

Você consegue entender o que o levou a preservar numa época em que ninguém tinha a mentalidade ambiental?

Karen: O que ele falou para mim é que ele preservou a mata para segurar a água que precisava para o café. Eu tinha mais educação formal que ele, mas repare que ele não precisou de educação formal para saber coisas muito importantes e práticas. Ele também se apaixonou pelos muriquis e por isso defendeu a mata.

Depois do doutorado, qual foi o caminho de sua carreira nos Estados Unidos?

Karen: Eu recebi a oferta de uma bolsa para estudar primatas na Ásia, uma bolsa de muito prestígio na primatologia: a Luce Fellowship. Fiquei em dúvida. A decisão era profunda. Eu tinha que escolher ser uma pessoa que estuda várias coisas, ou que se aprofunda num ponto. Se tivesse ido para a Ásia, depois de ter estado na África e na América do Sul, passaria a ter uma visão global dos primatas. Decidi continuar estudando os muriquis no Brasil. Fui para a Universidade de Wisconsin, onde estou até hoje, e mantive aqui as pesquisas de longo prazo.

Quando é que você percebeu que tinha escolhido um objeto de estudo realmente interessante?

Karen: Na época os modelos comparativos de estudo dos primatas eram todos os dos primatas do Velho Mundo, babuínos, macacos reses, macaco japonês, chimpanzés. Tudo muito bem estudado. O comportamento era o mesmo: sistema de hierarquia, macho dominante, agressividade. Os muriquis não tinham esse sistema. Tinha certeza, por ter estudado os babuínos, que os muriquis não se comportavam como os babuínos. A duvida é: se eles não usam esse sistema dos outros, como eles se comportavam? Fiquei com medo de as pessoas não acreditarem que a minha tese contrariava o conhecimento tradicional sobre os primatas. Quem era eu para dizer: olha eu tenho um modelo de estudo do comportamento dos primatas inteiramente diferente de tudo o que existe até hoje? Por isso os primeiros trabalhos que publiquei foram trabalhos muito sistemáticos, dei muitos dados, estudei a alimentação deles, alguns hábitos, coisas assim. Quando eu já era mais reconhecida no meio acadêmico é que incluí o ponto mais importante: o comportamento social deles é totalmente diferente. Em 1994, publiquei o trabalho chamado "O mito do primata típico" na "Yearbook of Physical Anthropology". Esse teve um impacto e tem sido usado como texto de estudo. O que ajudou muito foi que, em 1988, a Sociedade Internacional de Primatologia realizou aqui no Brasil seu congresso. Então, os maiores primatologistas do mundo vieram para cá e vieram ver os muriquis. Entre eles o casal do projeto da pesquisa sobre os babuínos. Eles me apresentaram aos babuínos e eu pude mostrar os muriquis para eles. Aí, eles disseram: nossa, esses macacos não se comportam como os babuínos. Era isso que eu queria provar! Meu orientador de Harvard estava aqui, se você falasse um nome de um primatologista famoso no mundo, ele ou ela estava aqui. Todos conheceram os muriquis, a mata, minha pesquisa. Por isso, quando eu disse que era um modelo diferente, eles acreditaram.

Vinte anos depois a que outras conclusões chegou?

Karen: A visão de longo prazo tem nos ajudado a ver melhor. Nos últimos dez anos nasceram mais machos. Quando eles forem adultos, pode haver mais competição. Aí vamos ver se a falta de agressão, esse pacifismo, é uma conseqüência de uma demografia muito favorável aos machos.

Já tem havido mudança de comportamento?

Karen: Eles estão ficando mais tempo no chão. Não sei se eles não estão se sentindo ameaçados, ou se eles estão aprendendo com a gente. Tem animal aqui que desde que nasceu vive sempre com dois pesquisadores olhando para ele. E o que os pesquisadores fazem? Andam no chão. Tive uma experiência aqui interessante. Estava treinando um grupo de pesquisadores. Tinha muita gente, a equipe antiga e a nova. Umas sete pessoas. O que não é normal tanta gente. Nós estávamos ensinando os novos a coletar as fezes para os estudos genéticos. Tinha uma fêmea numa árvore e, quando ela fez cocô, nós ficamos animados, corremos e coletamos tudo. Eu voltei para os Estados Unidos e, dias depois, os pesquisadores me ligaram e disseram que aquela fêmea estava comendo as fezes. Eu disse: não se preocupem, porque ela não vai continuar com esse comportamento muito tempo. Foi o que ocorreu. O que tinha acontecido? Ela viu sete pessoas animadas, correndo e falando alto em torno das fezes dela. Ficou curiosa e quis experimentar, depois desistiu.

Por que você escolheu essa linha de pesquisa? Em vez de capturar os animais, coletar sangue, pôr um chip, você tem tentado fazer estudos genéticos através das fezes e nunca tocar nos animais. Por quê?

Karen: Não conseguiria fazer uma pesquisa invasiva. O único problema de fazer uma pesquisa menos invasiva é que exige mais tempo. É fácil capturar o animal e pôr o rádio; você pode acordar meio-dia e ligar o rádio e saber onde ele está. Não sou totalmente contra o método, mas eu percebi que, com um pouco de trabalho a mais, não colocaria os animais em risco. Eu sou estrangeira. Se eu vou capturar os animais para estudá-los, como posso impedir que outros o façam? Aqui tudo é muito frágil. Perder um animal é uma porcentagem. Pode-se medir a falta. É um em 300. Eu coleto as fezes, mando depois o material para o Espírito Santo, para a UFES. Ou seja, não estou levando nada para fora do país, o patrimônio está aqui sendo estudado.

Há consangüinidade?

Karen: Todos os dados mostram que isso que acontece em outros lugares - alta mortalidade dos infantes, taxa reprodutiva lenta - não acontece aqui. Aqui tinha dois grupos: Matão e Jaó. Agora eles se subdividiram. Mesmo assim há uma possibilidade de consangüinidade. Outra vantagem aqui, para evitar a consangüinidade, é que temos dados que mostram que as mães evitam copular com os filhos. Assistimos a mais de mil cópulas e foi visto uma ou duas vezes, no máximo, uma fêmea copulando com o filho.

Quais são as novas linhas de pesquisa?

Karen: Tem muita coisa interessante. Por exemplo: os efeitos da demografia no comportamento. Um macho que agora tenha vinte anos viveu dois terços da vida com uma demografia muito favorável, mas o último terço viverá numa demografia menos favorável. O que vai acontecer? Qualquer resultado é interessante. Se mudar o comportamento, eu posso concluir muita coisa. Se não mudar, posso concluir outras coisas importantes também.

Miriam Leitão e Sérgio Abranches (comentarista da CBN e colunista de O Eco. No site www.oeco.com.br, a íntegra da entrevista.)

O Globo, 06/08/2006, Ciência e Vida, p. 52

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