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Um gasoduto muda a vida no coracao da Amazonia

OESP, Nacional, p.A12
Autor: Roldão Arruda
14 de Nov de 2004

Um gasoduto muda a vida no coração da Amazônia
Projeto que envolve 50 instituições tenta reduzir prováveis impactos ambientais e sociais que marcaram outras obras na região

Anamã - O município de Anamã, com 7.500 habitantes, no coração do Estado do Amazonas, nunca tinha visto tanto movimento. O protético nem teve tempo para uma foto. Em sua oficina de janelas amplas, diante de moldes de gesso, pontes e dentaduras esparramadas sobre a mesa, gritou, sem levantar a cabeça: "Não dá agora. Tenho encomenda para hoje à noite."
A mesma correria e afobação aparecia no Hotel Ana Leite, um sobradão de madeira erguido sobre estacas e com água empoçada debaixo do assoalho. Numa de suas salas, improvisada em salão de beleza, duas cabeleireiras importadas de Manaus se desdobravam para atender uma fila de noivas curiosas e quietas.
Uma das que já estavam sendo penteadas era Raimunda Lelis da Silva, morena de pele luzidia e curtida durante anos pelo sol. Ela contou, enquanto seus cabelos eram puxados com força para trás, que tem 49 anos, vive há 31 com seu companheiro e tem 12 filhos.
"Essa aqui é minha filha", disse, pousando a mão no joelho de outra noiva, Eris Regina, de 25 anos, sentada ao seu lado. "Vamos casar juntas."
"Hora da maquiagem", cortou a cabeleireira, fazendo sinal com a mão para dona Raimunda desocupar a cadeira e aguardar em pé. Foi a parte mais difícil do embelezamento. No calor amazônico, que faz visitantes gotejarem à sombra, a massa de pancake aplicada no rosto da noiva começou a derreter e a escorrer antes do final da aplicação.
Todo o movimento se devia ao casamento coletivo de 108 casais da região, na noite do sábado da semana passada. Foi promovido pelo governo estadual, com recursos da Petrobrás, dentro do Programa de Desenvolvimento Sustentável do Gasoduto Coari-Manaus.
É um programa que começa a deslanchar. O propósito da direção da estatal, do governador Eduardo Braga (PPS) e de 50 outras instituições envolvidas nele é evitar os desastres ambientais que marcaram todas as grandes obras na Amazônia e melhorar as condições de vida na região. Acredita-se que, bem assistida e estruturada, a população suportará melhor o impacto causado pela chegada de quase 3,5 mil pessoas, que irão trabalhar na obra do gasoduto.
Serão 383 quilômetros de tubos, que levarão o gás natural da reserva da Petrobrás em Urucum até Manaus. Irão cruzar o território de oito pequenos municípios da região e os arredores de mais de cem comunidades ribeirinhas.
Anamã está meio do caminho. Em setembro uma equipe do programa visitou a região e constatou que uma das principais reclamações da população é a falta de documentos. Daí a idéia do casamento coletivo e gratuito.
A organização ficou a cargo do pessoal do cerimonial do governador. Na sexta-feira, um barco fretado aportou na cidade com uma tropa de gente moça, encarregada de decorar a praça, pentear as noivas, distribuir vestidos, fazer fotos, organizar a recepção aos parentes e convidados. Até carpete vermelho estenderam no caminho dos noivos.
Rabetas e voadeiras
Anamã tem poucos automóveis - a viatura da polícia militar, a ambulância, um Gol a serviço do prefeitura. Nem precisa mais, uma vez que a única estrada disponível para entrar ou sair da cidade é o leito do Paraná-Anamã, rio de andar pesado e águas barrentas, afluente do Solimões, que desliza sua imensidão a dois quilômetros dali.
Na estação das chuvas, que começa em dezembro, o rio sobe, galga rapidamente os quase 15 metros de barranco que o separam da cidadezinha e vai lamber o assoalho das casas.
Agora, com os rios baixos e a navegação mais difícil, a viagem até Anamã, numa embarcação grande e potente, demora em média 16 horas. São quase 200 quilômetros contra a corrente do Solimões, até a embocadura do Paraná-Anamã.
Durante toda a tarde daquele sábado foi intenso o movimento de rabetas e voadeiras no rio. A rabeta é um barquinho, movido por um motor minúsculo, geralmente de 5 HP, com a hélice pendurada numa longa haste. Quando os passageiros se aboletam nela, parece improvável que consigam flutuar. É o fusquinha do lugar. A voadeira é maior, com motor de 25 HP.
Raimunda, a que estava no cabeleireiro, havia chegado mais cedo, vinda da comunidade de Socó, a mais distante das 38 que existem ao redor de Anamã. Ela não sabe dizer qual a distância exata. Mas na medida do lugar, que é a viagem de rabeta, são seis horas de rio e matas.
Ela e seu companheiro, assim como os outros velhos casais que oficializaram sua união naquele dia, não o fizeram antes por falta de dinheiro. Na média, a certidão de casamento custa R$ 140. Uma fortuna para certas comunidades onde o único dinheiro que se vê durante meses a fio é o da aposentadoria de uma outra pessoa que já conseguiu se documentar e receber algum benefício da Previdência.

Obra desperta sonhos nos ribeirinhos
Benefício mais esperado é o salto na geração de energia elétrica
Os ribeirinhos não sabem com certeza o que esperar do Gasoduto Coari-Manaus, cujas obras começam em maio. Preferem acreditar que trará benefícios. O mais esperado é a melhoria no sistema de energia elétrica.
Nas negociações conduzidas pelo governo do Estado com a Petrobrás e os representantes dessas populações, ficou acertado que cada uma das oito cidades do percurso contará com uma extensão do gasoduto. Isso pode representar um salto na geração de energia, hoje obtida a partir de termelétricas a óleo diesel, transportado de navio até o interior do Estado. O gás levado até a porta da cidade tornaria o fornecimento mais barato e seguro.
"Vai custar caro, mas vai valer a pena", grita Manuel Vieira. Ele é o encarregado da manutenção do motor a diesel que garante a energia de Anamã - um monstrengo barulhento, plantado na rua principal da cidade.
Pelo projeto inicial, a tubulação passaria ao largo das cidadezinhas. Os estudos sobre viabilidade econômica mostravam que era desaconselhável a construção das extensões. Mas, segundo informações do secretário de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas, Virgílio Viana, a mudança foi uma reivindicação dos ribeirinhos. "A Petrobrás concordou e para isso vai ter que desembolsar R$ 70 milhões a mais do que estava previsto", conta o secretário.
Poupa-Tempo flutuante
O benefício que o gasoduto já trouxe para os ribeirinhos foram as visitas do navio Zona Franca Verde - uma espécie de poupa-tempo flutuante, misturado com ambulatório. Nas cidadezinhas onde já ancorou - Anori, Codajás, Anamã e Capiranga -, distribuiu certidões de nascimento, carteiras de identidade, títulos de eleitor, e outros tipos de documento, além de propiciar consultas com clínicos gerais.
Ao estimular a documentação, o governo do Amazonas quer facilitar o acesso a benefícios previdenciários e programas sociais, como o Bolsa-Escola. É uma forma de injetar dinheiro no interior.
De acordo com o secretário estadual de Trabalho e Cidadania, Marco Antonio da Costa, no interior do Rio Grande do Sul 18% da população recebe algum tipo de benefício da Previdência. No interior do Amazonas, só 6,2%.
Longa espera
Em Arixi, comunidade distante uma hora de rabeta de Anamã, o ribeirinho Damião Nunes Mota, de 58 anos, conta que já usou o poupa-tempo flutuante para obter certificado de reservista e carteira de trabalho. Mas o melhor, segundo ele, foi a oportunidade do casamento coletivo.
Pelas contas dele, quando os negócios na roça vão bem, chega a ganhar R$ 400 por mês. Nos meses piores, só R$ 150. "Dinheiro aqui não é fácil e acho caro pagar R$ 140 por uma certidão de casamento. Por isso fui adiando."
Adiou 37 anos. Esse é o tempo de sua relação com a ribeirinha Odete Loredo, de 52. Nesse tempo tiveram 14 filhos e, juram os dois, nunca brigaram.
Um dos vizinhos de Damião, Leão Matos, de 74 anos, conta que ele e a mulher sobrevivem com o salário mínimo que recebem da aposentadoria rural. E que ainda sobra um pouco para ajudar os filhos.

OESP, 14/11/2004, p. A12

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