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Um deserto de cana

CB, Opinião, p. 25
Autor: PINSKY, Jaime
17 de Mar de 2007

Um deserto de cana

Jaime Pinsky
Historiador,professor titular da Unicamp, organizador da obra coletiva O Brasil no contexto, 1987-2007, Editora Contexto

Aparentemente, nada de novo: quarta-feira quente e abafada em São Paulo, formação de nuvens e chuva forte no final da tarde. Ruas inundadas, automóveis submersos, trânsito parado. Lá pelas oito da noite, a repercussão do temporal ainda se fazia notar por toda a cidade: lentidão insuportável, motoristas apertando a buzina (imaginavam, com o ruído, poder transformar em pó as filas de veículos à sua frente?), todo mundo atrasado.
As chuvas sempre existiram. A situação, agora, poderia estar até um pouco melhor: o rio Tietê não transborda mais e as bocas de lobo estão limpas. O problema é que nunca houve tantos veículos na cidade, nem no estado, nem no Brasil. Enquanto cada pedaço de metrô demora muitos anos e várias vidas para ficar pronto, a cada dia as montadoras despejam milhares de veículos em cidades, como São Paulo, que já não têm mais ruas disponíveis para todos. Simplesmente, os carros não cabem mais nas metrópoles e em muitas cidades médias brasileiras.
O crítico literário Anatol Rosenfeld costumava dizer que há uma lógica de análise e uma lógica de síntese. A primeira é a do físico que constrói a bomba atômica ou do químico que aperfeiçoa os gases utilizados para os genocídios nazistas. Conceberam seus produtos com inteligência. O governante, contudo, precisa pensar com a lógica da síntese, que exige a determinação da finalidade de cada invento e as conseqüências sociais envolvidas. Há alguns anos, nossa principal metrópole raramente atingia 100 quilômetros de congestionamento em qualquer dia do ano.
Hoje, esse número só não é atingido em semanas de janeiro, quando muita gente viaja.
Onde é que vão colocar os novos carros?
Mas algo mais grave está ocorrendo. A febre do etanol, vulgarmente chamado de álcool, contagiou todo o estado de São Paulo.
Numa viagem de quase 500 quilômetros que realizei, no sentido oeste, por uma estrada em que transitei muito no passado recente, não consegui identificar os lugares que antes reconhecia como o posto depois das mangueiras, ou o lugar que vende suco, entre o cafezal e o pomar de laranjas. Foi tudo arrasado, com cana plantada até a beira do asfalto. O estado está se transformando num deserto: verde, quando brota a cana, mas parecendo um grande areal quando ela é colhida e algo próximo de infernal quando das queimadas.
As queimadas, por sinal, são um capítulo à parte. Cidades antes recomendadas pelo ar puro têm sido campeãs de poluição, envenenado os pulmões, não apenas dos trabalhadores rurais, como de toda a população. Não se trata apenas da sujeira que elas produzem, caindo sobre roupas no varal, piscinas e quintais. Pessoas alérgicas, ou com qualquer problema respiratório, têm a vida transformada num inferno. Mães têm sido aconselhadas a tirar os filhos de muitas cidades (como se isso fosse uma operação fácil) durante as semanas e meses em que se queima a cana, aparentemente sem nenhum critério ou controle.
De resto, muitos responsáveis pelas fazendas aproveitam as queimadas para "acidentalmente" tocar fogo nas reservas florestais, destruindo matas primárias ou secundárias, matando a fauna e empesteando o ar. As conseqüências das ações não lhes interessam.
Seu negócio é a quantidade de cana plantada, o tanto de álcool obtido (lógica de análise), o importante é avançar sempre, queimar as árvores de modo explícito ou dissimulado, mas sempre mesquinho, e plantar mais alguns metros para aproveitar o boom do etanol para ficarem um pouco mais ricos.
Mesmo numa cidade bem administrada e rica como Indaiatuba, a apenas 100 quilômetros da capital, pude constatar isso pessoalmente: belas árvores, reserva florestal de uma grande fazenda da cidade, abrigo de muitas espécies animais, estão sendo lenta e sistematicamente sacrificadas à sanha do lucro sem freios nem pudor.
E por aí vamos. Enquanto o biocombustivel aprovado por Bush estiver na crista da onda, as ondas verdes da planta, as nuvens negras dos incêndios e a destruição de nossas poucas matas continuarão. Depois disso, e ainda na nossa geração, teremos que conviver com o deserto.
De resto, que importa que os carros não consigam mais andar, se são lindos e modelos flex?

CB, 17/03/2007, Opinião, p. 25

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