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Um crime, duas versoes

O Globo, O Pais, p.3
22 de Fev de 2005

Um crime, duas versões

O pistoleiro Rayfran das Neves Sales confessou ontem, em dois depoimentos diferentes, que executou a tiros a missionária americana Dorothy Stang, em Anapu, no Pará. Mas contou versões diferentes para o assassinato e, em cada depoimento, denunciou uma pessoa diferente como mandante do crime. À Polícia Federal, Rayfran disse que matou a freira a mando de Amair Feijoli da Cunha, o Tato, que está preso desde sábado. No primeiro interrogatório, na Polícia Civil, em que foi indiciado por homicídio qualificado, o pistoleiro dissera ter executado Dorothy a pedido de um sindicalista amigo da freira: o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Anapu, Francisco de Assis Souza, o Chiquinho do PT, que já foi vice-prefeito da cidade.

No depoimento à PF, Rayfran contou que o crime foi contratado por R$ 50 mil. Ele afirmou, porém, que não recebeu o dinheiro. A pedido do Ministério Público do Pará, a Justiça Estadual determinou à tarde que o inquérito tramitasse sob sigilo. O pedido foi feito logo após Rayfran prestar o primeiro depoimento acusando o sindicalista. Mas, à noite, o juiz titular da Vara de Pacajá, Lucas do Carmo de Jesus, decidiu revogar a decisão que ele mesmo proferira à tarde. O juiz informou que, reavaliando o caso, considerou que é melhor deixar para a Polícia Civil decidir o que deve ou não ser divulgado sobre a investigação.

O sigilo durou cerca de cinco horas. Nesse intervalo, em Brasília, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato, criticou a decisão da Justiça do Pará. A PF chegou a informar que pediria a revogação do sigilo, o que não foi necessário.

Francisco de Assis de Souza era um dos principais aliados de Dorothy nos projetos sociais que ela desenvolvia. A primeira versão do pistoleiro foi vista pela polícia como uma tentativa de desviar as investigações e, assim, tentar absolver os verdadeiros mandantes do crime.

— Essa história não tem credibilidade alguma — dizia o delegado-chefe da Polícia Civil do Pará, Luiz Fernandes.

Testemunha fez reconhecimento

Rayfran foi transferido ontem de manhã de Anapu para Altamira, onde está preso. Eram 9h35m quando ele chegou num helicóptero Blackhawk no campo de pouso montado no 51 Batalhão de Infantaria do Exército. Sob um forte aparato policial, que incluía soldados do Exército e policiais militares, civis e federais, ele foi levado direto para a delegacia da cidade, onde foi interrogado durante quatro horas. Estava barbudo, maltrapilho, com colete à prova de balas e algemado nas mãos e nos pés.

A testemunha ocular do crime foi levada, encapuzada, para a sala em que ocorria o depoimento, para fazer o reconhecimento de Rayfran. O depoimento do pistoleiro durou quase quatro horas. Da Polícia Civil, ele foi levado direto para a delegacia da Polícia Federal em Altamira. Logo no início do depoimento, Rayfran contou sua segunda versão, confirmando o rumo da investigação realizada desde o assassinato. Segundo um delegado federal, Rayfran admitiu ter executado a freira por ordem de Amair Feijoli, o Tato, para quem trabalhava num pedaço de terra disputado com os colonos do PDS Esperança, assentamento organizado pela missionária e lugar onde ela foi morta.

Em nenhuma das versões, Rayfran acusou o fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, até agora apontado pela polícia como o mandante do crime. A Polícia Federal informou ontem estar bem perto de resolver por completo o crime, em mais um capítulo da guerra surda com a Polícia Civil do Pará em busca da elucidação.

Embora legalmente a investigação esteja a cargo da Polícia Civil, a PF trabalha em paralelo, num inquérito próprio — cada uma das corporações tem um procedimento aberto para investigar o crime. A Polícia Federal se prepara para o caso de a apuração ser federalizada. O pedido de federalização, com base no artigo da reforma do Judiciário que permite transferir para a esfera federal a apuração de crimes contra os direitos humanos, será feito ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) pelo procurador-geral da República, Claudio Fonteles.

Na outra ponta, a Polícia Civil quer se antecipar para evitar a imagem de que as autoridades estaduais não foram competentes para solucionar o caso. Fora isso, a Polícia Civil dá sinais de que pretende tratar o crime como algo isolado, fruto de uma disputa por terra entre lados opostos e igualmente violentos. É uma forma de se livrar da admissão de que os conflitos agrários no estado estão fora de controle. Já a Polícia Federal trata o caso num cenário mais amplo, considerando inclusive a possibilidade de o crime estar relacionado a um grande esquema destinado a grilar terras públicas em todo o Pará.

Acusados estariam tentando ocultar mandante

ALTAMIRA (PA) e BRASÍLIA. Embora Amair Feijoli da Cunha, o Tato, tenha contratado o advogado Oscar Damasceno Filho, sua apresentação espontânea à Policia Civil do Pará, no sábado, foi intermediada por outro advogado: Augusto Septímio, que defende o fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, acusado de ser o mandante do crime.

Septímio também teria dado aos investigadores a informação sobre o lugar em que estava escondido Rayfran das Neves Sales, executor confesso da missionária Dorothy Stang. Juntas, essas informações criaram a suspeita de que o grupo investigado por participação no assassinato pode ter combinado versões com a ajuda dos advogados para evitar que a polícia chegue aos mandantes do crime.

Outro indício é o fato de Septímio ter dito, logo após a prisão de Tato, que a prisão de Rayfran esclareceria toda a história. Rayfran foi preso horas depois e, inicialmente, tentou desvincular Tato e Bida de qualquer participação no crime, acusando o sindicalista Francisco de Assis de Souza, o Chiquinho do PT, de ter encomendado a morte.

— Os depoimentos prestados à Polícia Civil foram combinados. O Chiquinho não tem nada a ver com isso — disse ontem Denise Aguiar, representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ao sair do depoimento de Rayfran em que ele admitiu à Polícia Federal ter mentido ao envolver o sindicalista no crime.

Septímio tem trabalhado em conjunto com o advogado de Tato, Oscar Damasceno Filho, embora os dois neguem que haja relação entre seus clientes num contrato de compra e venda de terra. Damasceno disse que ainda estuda impetrar um hábeas-corpus em favor de Tato, que se entregou no último sábado.

Ontem, Septímio apresentou documentos que, segundo ele, comprovariam ser do fazendeiro Bida a área em disputa com os colonos do Projeto de Desenvolvimento Sustentável, onde morreu a missionária americana. O advogado apresentou documentos de quatro páginas do Incra assinado por Antônio Elídio Coutinho Queiroz, da unidade administrativa do órgão em Altamira (PA). Segundo o advogado, o lote, alvo de disputa com os colonos, é uma área produtiva e estaria inviabilizada para implantação do projeto. Em Brasília, porém, o Incra assegura que as terras do fazendeiro são mesmo áreas públicas.

Menos de duas semanas depois do assassinato de Dorothy, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, voltou ontem a reconhecer a omissão dos poderes públicos no Pará ao longo das últimas décadas. Segundo ele, o problema só começou a ser resolvido no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para Bastos, a morte da missionária está relacionada à reação dos criminosos da região às medidas implementadas pelo governo federal.

— É uma omissão de dezenas de anos e agora essa omissão começou a ser suprida pela presença do Estado lá. A morte da irmã Dorothy foi uma reação a essa presença do Estado na Terra do Meio. O governo federal, desde o primeiro momento, no início de sua administração, está trabalhando no sentido de estabelecer um convívio civilizado que preserve o meio ambiente, a riqueza da Amazônia — disse Bastos, antes de participar de solenidade na OAB.

Lula: No nosso governo não tem impunidade

BRASÍLIA. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva condenou ontem a violência no Pará e afirmou que o governo não descansará enquanto não prender os responsáveis pelo assassinato da missionária Dorothy Stang e de agricultores da região de Anapu. Lula disse que é abominável que as pessoas resolvam os conflitos com um revólver 38.

O presidente voltou a afirmar que os conflitos no Pará são uma resposta dos reacionários e conservadores da área madeireira à atuação do governo na região para regularizar o uso da terra e a exploração das florestas.

— Esses que se precipitaram e mataram pessoas terão que ser punidos. O lugar que está reservado a esses cidadãos, tanto aos assassinos quanto aos mandantes, chama-se cadeia — disse Lula.

Os conflitos fundiários no Pará, que culminaram com o assassinato da freira e de agricultores nos últimos dez dias, foram o principal tema do programa quinzenal de rádio Café com o presidente”. Segundo Lula, o governo está adotando as medidas para punir os responsáveis pelos crimes e resolver os conflitos fundiários no Pará:

— É abominável que as pessoas ainda achem que um revólver 38 seja a solução para um conflito, por mais grave que ele seja. Então, não descansaremos enquanto não prendermos os assassinos. E mais do que isso: prender os mandantes para que a gente mostre, claramente, que no nosso governo não tem impunidade, que a Amazônia é nossa e que vamos tomar conta do nosso território com soberania, sem vacilação.

Lula fez um balanço da atuação na região e afirmou que a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, tem total controle da situação”. O presidente repetiu que o governo decidiu estabelecer áreas de preservação ambiental, legalizou propriedades para fazer reforma agrária e ampliou recursos para agricultura familiar.

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