VOLTAR

A última flor da Amazônia: indigena e bela

OESP, AlÍas, p. J6
Autor: MINDLIN, Betty
24 de Abr de 2005

A última flor da Amazônia: indigena e bela

Betty Mindlin

Quantos brasileiros sabem que até a primeira metade do século 19 a principal língua da Amazônia era indígena, o nheengatu ("a boa fala"), a língua geral da Amazônia, falada nos núcleos urbanos, cidades, vilas, povoações, muito mais que o português, além de ser meio de comunicação entre índios de línguas vernáculas distintas? E que só na virada do século 20 seria possível afirmar que o português se tornara a língua hegemônica? Hoje se falam quase 200 línguas no Brasil. No século 16, na Amazônia, havia cerca de 700 e, durante todo o período colonial, o português permaneceu minoritário. Viajantes no século 19 observaram famílias européias optando por falar na língua geral com os filhos.

O livro de José Ribamar Bessa Freire - Rio Babel. A História das Línguas na Amazônia (Atântica) - é um marco nos grandes estudos sobre o Brasil, uma história social das línguas, ao se debruçar sobre a expansão da língua portuguesa e a perda irreparável da pluralidade lingüística ativa. Nem mesmo os atuais falantes do nheengatu, na região do Rio Negro, sabem a importância que sua língua já alcançou ou têm memória do processo que a fez retrair-se. Rio Babel deveria ser leitura indispensável e generalizada nos cursos secundários e universidades, acessível a todos os que se interessem em conhecer nossa formação e a atual situação lingüística brasileira. Escrito numa perspectiva interdisciplinar, cumprindo as exigências de historiador rigoroso, que durante anos consultou fontes brasileiras e portuguesas, arquivos, vasta bibliografia , incorpora os estudos lingüísticos, a antropologia, o veio de educador, analista crítico do sistema escolar, e a paixão pela literatura, como o universo da oralidade dos povos da Amazônia, com a densa mitologia e verve de contadores, em parte escrita e registrada em nheengatu.

O percurso das línguas é o espelho do destino dos povos, de sua inteireza e expressão oral insubmissa na diversidade à sujeição pelos colonizadores, à escravização ou ao trabalho explorado e forçado, à absorção pelos dominadores, aos massacres e guerras. Arrancadas de suas terras de várias formas (pelos descimentos, que procuravam trazer os índios para trabalhar para os colonizadores; pelos "resgates" de índios prisioneiros de outros índios, para deles fazer escravos; ou pelas guerras "justas", que também os aprovisionavam para vender), pessoas de povos de diferentes línguas tinham um convívio forçado e aprendiam a comunicar-se. No caso do nheengatu, revelam-se a resistência e a criatividade inesperadas, na sua função de língua supra-étnica, estimulada e difundida pelos missionários, pela catequese. A conversão contribuía para disciplinar a força de trabalho indígena, superando diversidades de língua e facilitando a exploração dos índios como mão-de-obra pelos colonizadores. As autoridades estimulavam o aprendizado da língua geral, o ensino nas escolas e sua escrita. Gramáticas e livros religiosos surgiram, bem como alguma documentação da tradição oral. Ao mesmo tempo, o preconceito persistia: as línguas indígenas eram depreciadas, mais ainda as vernáculas originais faladas nas aldeias. Mesmo o Padre Antônio Vieira, defensor dos índios, chamava-as de bárbaras. Diante do nheengatu, as outras línguas indígenas não tupi eram desprestigiadas, e a língua materna, em todo o seu espectro, era reprimida nas escolas de formas violentas. A língua geral, como as outras considerada inferior e inculta (quem sabe perigosa pelos elos que fortalecia?), foi proibida em meados do século 18 pela metrópole, possivelmente por divergências entre jesuítas e a administração colonial, sendo instituído o uso obrigatório do português.

A história do nheengatu é complexa e ainda deveria ser mais investigada. A língua surgiu a partir do tupinambá do Pará e Maranhão, que muitos colonizadores já conheciam e através do qual conseguiam comunicar-se com povos de língua semelhante na Amazônia. Com reprodução inicial espontânea, foi se transformando e distanciando do tupinambá original no contato com as línguas vernáculas (dos muitos povos indígenas da Amazônia) e com o português dos colonizadores, e aos poucos se tornou objeto de política deliberada nas escolas. Distingue-se, embora semelhante, da língua geral paulista, à qual os livros de Sérgio Buarque de Holanda aproximaram toda uma geração, que praticamente já não era falada no século 19. Há trabalhos interessantíssimos sobre as línguas do tronco tupi, suas origens e diferenças, seu possível parentesco, a confusão que de modo indevido se faz entre o tupi antigo, o tupinambá, o guarani e as línguas gerais como a amazônica e a paulista. Entre os trabalhos clássicos, os de Aryon Dall Igna Rodrigues são fundamentais e contribuem, com muitos outros, para a clareza de Rio Babel, que, apesar de versar sobre a multiplicidade de línguas, flui como águas caudalosas seguindo um enredo.

Várias tendências concorreram para o declínio do nheengatu. Quando o Estado do Grão Pará e do Maranhão (ou seja, a Amazônia), subordinado diretamente a Portugal no período colonial, aderiu ao Brasil, em 1823, um ano depois da Independência, intensificou-se a influência da língua portuguesa falada no resto do país. Novas formas de navegação facilitaram a imigração de falantes do português. A Cabanagem, movimento social de 1835, redundou em 40 mil mortos indígenas, falantes em sua maioria do nheengatu. A Guerra do Paraguai arrebanhou à força grandes contingentes de índios, levados a combater supostos inimigos de língua semelhante, sem entender por quê. E, no século 19, a educação dos índios não mais se dava na língua geral.

Hoje, a história pode ser outra. A partir de 2002, o nheengatu e o baníua foram reconhecidos como línguas oficiais brasileiras no município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. No Brasil como um todo, os índios conquistaram o direito a escolas diferenciadas, multilíngües e multiculturais. A escrita e a oralidade em muitas línguas passam a ser um objetivo explícito. Estudos como o de Bessa Freire contribuem para repensar a política lingüística brasileira e impedir o desaparecimento do grande acervo falado que ainda existe. A Declaração Universal dos Direitos Lingüísticos de Barcelona, de 1996, reafirma direitos fundamentais - como o de defesa na Justiça ou comunicações na língua materna. Os índios poderiam, por exemplo, criar uma Rádio Nacional Indígena, com programas em muitas línguas e também um conteúdo para divulgar a questão indígena para os brasileiros em geral.

Na mitologia aruá, povo de Rondônia de apenas umas dez pessoas, os dois irmãos criadores fazem sair a humanidade do subterrâneo e vão pondo as pessoas em roda. Enquanto um deles vai ensinando a mesma língua a todos, o aruá, o outro, circulando em sentido contrário, vai ensinando uma língua diferente a cada um. E é por isso que hoje, no século 21, dizem os índios, os seres humanos devem entender-se na diversidade, na Babel mundial, e que é preciso aprender a apreciá-la.

Betty Mindlin é co-autora com narradores indígenas e Couro dos Espíritos,
(Senac/Terceiro Nome)

OESP, 24/04/2005, Aliás, p. J6

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.