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Autor: Oswaldo Braga de Souza
09 de Jun de 2010
As 55 famílias que vivem na área prevista para a implantação de uma Reserva Extrativista (Resex) com 400 mil hectares às margens do rio Iriri, na Terra do Meio, no Pará, começaram finalmente a decidir o destino de suas terras, depois de décadas de abandono e exclusão. Cerca de duzentas pessoas referendaram publicamente, inclusive por aclamação, a proposta de criação da Unidade de Conservação (UC), em uma reunião organizada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), entre 19 e 20 de janeiro, na localidade conhecida como praia do Frisan, a 320 quilômetros de Altamira (PA) em linha reta. O evento pretendia esclarecer os moradores da região e colher subsídios técnicos e pode ser considerado um passo fundamental para a criação da reserva. Os laudos para a formalização do processo já estão praticamente finalizados e a expectativa é que o governo federal decrete a UC dentro de um ou dois meses.
O entusiasmo que marcou a reunião estimulou também o início de uma organização mais consistente da comunidade. Os ribeirinhos elegeram uma espécie de junta provisória da futura associação de moradores do Iriri. A idéia é preparar o caminho para a constituição efetiva da entidade e começar a discutir com o governo os próximos passos para a decretação e implantação da Resex.
O clima de festa do encontro no Iriri contrastou com o que ocorreu em outra reunião de esclarecimento organizada pelo Ibama no processo de criação da Resex do Médio Xingu, no dia 14 de janeiro, na localidade conhecida como Pedra Preta, às margens do rio Xingu, entre dois ou três dias de barco de Altamira. Lá, um grupo influenciado pela Amazônia Projetos Ecológicos, empresa pertencente ao conglomerado CR Almeida e que se diz dona da área, manifestou-se contrariamente à criação da UC. A empresa está dando emprego aos ribeirinhos e vem distribuindo cestas básicas e remédios para conquistar a confiança e a simpatia da população.
A área reivindicada pela Amazônia Projetos Ecológicos, de 1,2 milhão de hectares, também incide sobre o território previsto para a Resex do Iriri. Mas as pretensões de empresas da CR Almeida na Terra do Meio não acabam por aí: a Indústria, Comércio, Exportação e Navegação do Xingu Ltda. (Incenxil) reivindica a propriedade de outro latifúndio gigantesco de 4,7 milhões de hectares que incide igualmente sobre a área prevista para a Resex do Iriri. Somadas, as duas áreas cobiçadas pelo grupo CR Almeida na Terra do Meio representam um império de 5,9 milhões de hectares.
Corredor de áreas protegidas
A Resex do Iriri também é considerada importante na consolidação do mosaico de áreas protegidas da Terra do Meio, proposto em um estudo realizado pelo ISA, em 2002, sob encomenda do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Entre o final de 2004 e o início de 2005, seguindo as sugestões do trabalho, o governo federal criou a Estação Ecológica (Esec) da Terra do Meio, o Parque Nacional da Serra do Pardo e a Resex do Riozinho do Anfrísio (736 mil hectares), totalizando mais de 4,2 milhões de hectares protegidos. Restariam ainda ser oficializadas uma Área de Proteção Ambiental (APA), na região de São Félix do Xingu, a Floresta Estadual do Iriri, entre as Terras Indígenas (TIs) Kuruaya e Baú, e a Resex do Médio Xingu. A implantação da APA e da Floresta Estadual é um compromisso assumido pelo governo paraense, desde fevereiro de 2005, que ainda não foi cumprido.
A complementação do mosaico poderá significar a constituição de um grande corredor de áreas protegidas com cerca de 26 milhões de hectares, provavelmente o maior do mundo e que deverá estender-se por quase toda a Bacia do rio Xingu, desde o Parque Indígena do Xingu, no norte do Mato Grosso, passando pelas TIs Capoto-Jarina, Menkragnoti e Kayapó, no sul do Pará, até o arco de TIs ao norte da Terra do Meio (Cachoeira Seca, Arara, Kararô, Koatinemo e Trincheira-Bacajá).
A Terra do Meio é um dos últimos grandes trechos de floresta contínua ainda intocada no Pará. A pesquisa realizada pelo ISA, em 2002, revelou que a região é uma das mais ricas do País em biodiversidade e outros recursos naturais, como jazidas de ouro e uma grande concentração de madeiras de lei, sobretudo do valioso mogno. Por essa razão, a área é alvo de grupos de grileiros e madeireiras ilegais. Quase todos os ribeirinhos entrevistados pela reportagem do ISA no local relataram casos de perseguições, expulsões, ameaças e outros crimes praticados por pistoleiros.
Mobilização em defesa das terras
Na região do rio Iriri, já há algum tempo, os moradores iniciaram uma pequena mobilização para proteger suas terras. Organizações como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Fundação Viver, Produzir e Preservar (FVPP), que atuam em Altamira, também vêm apoiando o movimento e fazendo um trabalho de esclarecimento da população sobre seus direitos. Além disso, pela proximidade, os moradores do Iriri tem muito contato com os ribeirinhos da Resex do Riozinho do Anfrísio, criada em novembro de 2004. Notícias sobre investimentos e benefícios já obtidos pela Associação dos Moradores do Riozinho do Anfrísio (Amora), como a compra de um barco e a aprovação de um projeto de cerca de R$ de 100 mil para comercialização dos produtos da comunidade, têm chegado ao Iriri e estimulado a luta pela criação de uma Resex ali também.
"No Iriri, os ribeirinhos estão mais conscientes do significado da criação de uma reserva em seu território e dos benefícios que isso vai trazer para eles", avalia Antônia Melo da Silva, integrante da FVPP e coordenadora do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) na região da Transamazônica e Xingu. Ela considera que a diminuição da pressão exercida por grileiros e mesmo pelas empresas ligadas à CR Almeida resulta do maior grau de organização da comunidade. "Este é um momento histórico na vida dessas populações, principalmente porque elas passam a ser os sujeitos dessa conquista, da melhoria da qualidade de vida e da garantia de suas terras".
Apesar da população ter clareza de que quer garantir a conservação dos recursos naturais que explora tradicionalmente na região, o que coincide com os objetivos da Resex, restam ainda dúvidas básicas em relação às normas para a utilização destes recursos. Durante a reunião dos dias 19 e 20, os riberinhos do Iriri levantaram várias questões, como ocorreu na reunião do Xingu, sobre eventuais restrições às suas atividades tradicionais e manifestaram temor por possíveis represálias de grileiros e pistoleiros, no caso da UC ser oficializada. Os "beiradeiros", como também são conhecidos os ribeirinhos, temem, por exemplo, que sejam proibidos de pescar, de retirar madeira e de portar armas de caça caso a Resex seja decretada.
O receio é tão grande que os funcionários do Ibama foram obrigados a repetir várias vezes, durante a reunião, que a caça, a pesca, o cultivo de roças e a retirada de madeira em pequenas quantidades, entre outras atividades tradicionais dos moradores, são garantidos pela lei, mesmo antes da aprovação do plano de manejo da área. A falta de escolas e de qualquer tipo de atendimento médico também voltou a ser citada como problema importante. Muitas pessoas afirmaram que os dois temas devem ter prioridade no processo de implantação da Resex.
"O primeiro trabalho que faremos na região será um esforço para tirar os documentos de vocês para que passem a existir para o Estado. Hoje, vocês simplesmente não existem", anunciou, durante o evento, Marco Antônio Delfino, procurador recém-empossado do Ministério Público Federal (MPF) em Altamira, ressaltando a importância do registro dessas comunidades para que possam ter acesso aos benefícios e serviços públicos básicos. Ele prometeu conversar com a prefeitura de Altamira e com o governo estadual para que sejam construídos na região uma escola e um posto de saúde. Delfino disse que recebeu várias denúncias sobre a atuação de grileiros e pistoleiros e prometeu apurá-las o mais rápido possível.
Povo esquecido
"Aqui não tem escola, não tem atendimento médico, parece que somos um povo esquecido", lamenta Josefa Jerônima da Silva, a dona Zefa, 53 anos, 42 deles no rio Iriri. Mesmo sem saber dizer ao certo como vai funcionar a Resex, ela se diz a favor de sua criação porque julga que, depois que o assunto passou a ser discutido na região, a atuação de grileiros e pistoleiros diminuiu bastante. "Antes disso, os bandidos iam à casa da gente e diziam que éramos 'piabas' que os 'tucunarés' iam comer. Diziam que não tínhamos direito a nossa terra. Que quem tinha direito era quem tinha dinheiro. Acho que isso não vai acontecer mais", acredita a ribeirinha, que, como conta, "não tem leitura".
Dona Zefa é uma parteira de mão cheia, tem dez filhos (sendo uma menina adotada), mas já perdeu seis, por aborto, pneumonia e malária. A matriarca tem ainda doze netos. Comunicativa e cativante, esta paraense franzina de pouco mais de 1,60 m parece personificar a resistência, a luta e a história cheia de adversidades, mas também a alegria, dos beiradeiros da Terra do Meio. Ela já foi ameaçada de morte por se recusar a sair de sua terra e conhece várias histórias de vizinhos assassinados pelo mesmo motivo. Depois de 33 anos de casada, separou-se e hoje vive na mesma localidade com os dez filhos.
Dona Zefa explica que, durante o casamento, trabalhava junto com o marido em atividades normalmente realizadas pelos homens. Ela diz que sabe fazer de tudo o quanto é preciso para sobreviver na região: pesca, caça, capina, corta seringa, faz farinha, apanha e carrega castanha. E ainda tem tempo para cuidar dos filhos e netos. "Espero que Deus ajude para que o governo olhe por nós. O governo ainda não fez nada de bom porque nós não éramos reconhecidos, mas tenho a esperança que ele olhe por nós agora".
A intuição de dona Zefa de que o processo de criação da Resex pode diminuir a grilagem de terras é corroborada por organizações da sociedade civil que atuam em Altamira. "A criação das UCs na Terra do Meio teve um efeito imediato que foi frear a grilagem de terras. O preço da terra despencou. Ninguém quer comprar mais nada lá", comenta Tarcísio Feitosa, da CPT. Ele adverte, no entanto, que a situação pode ser revertida se o governo não fizer um esforço concreto para garantir sua presença e implantar efetivamente as áreas protegidas na região. Enquanto isso, os desmatamentos ilegais continuam avançando.
Há mais de um ano, o Ibama, em parceria com o governos estadual e a prefeitura de Altamira, vem desenvolvendo um trabalho de identificação das famílias e mapeamento de suas áreas de uso e dos recursos naturais da região. Antes disso, as instituições do Estado praticamente inexistiam. Há mais de 30 anos, não há uma escola no lugar A maior parte dos moradores não tem documento de identidade e nunca teve atendimento médico. O índice de mortes por doenças como pneumonia, malária e diarréia, por exemplo, é bastante alto. O analfabetismo beira os 100%.
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