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Turista paga US$ 1.000 para provar daime

FSP, Cotidiano, p. C4
05 de Mai de 2008

Turista paga US$ 1.000 para provar daime
O chá da ayahuasca usado em rituais pode ser "tombado'; Folha publica relato sobre o uso místico dele no Acre

"Espero que nós possamos celebrar em breve o registro da ayahuasca como patrimônio cultural da nação brasileira", disse o ministro da Cultura, Gilberto Gil, em discurso na última quinta-feira, durante cerimônia realizada no Centro de Iluminação Cristã Luz Universal, também chamado de Alto Santo, em Rio Branco (AC). Abaixo, repórter-fotográfico da Folha conta como foram os 15 dias que passou no vale do Juruá, no Acre, onde o Santo Daime nasceu. Lá, comunidade que usa o chá alucinógeno ayahuasca em celebrações místicas recebe brasileiros e estrangeiros interessados em aprender a religião daimista.

Antonio Gauderio
Repórter-Fotográfico

A ayahuasca pode ser o próximo bem imaterial a ser tombado pelo Ministério da Cultura, categoria que hoje inclui o samba de roda do Recôncavo Baiano, o ofício das baianas do acarajé e o tambor de crioula do Maranhão -aguardam registro o modo artesanal de fazer queijo de minas e a capoeira.
Se o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) aprovar o "tombamento" da ayahuasca, os rituais relacionados ao consumo da substância passarão a receber apoio do ministério para a sua preservação.
No Brasil, o uso místico do chá de ayahuasca é feito por algumas comunidades religiosas. Entre elas, está a que visitei, no vale do Juruá, no Acre (a 630 km de Rio Branco), na divisa com o Peru, onde nasceu o Santo Daime. Estive lá em fevereiro, para acompanhar a colheita do cipó e o preparo do chá alucinógeno, e participei do ritual religioso. Ao todo, passei 15 dias na região.
A Fundação Livre para o Estudo da Cultura da Ayahuasca da igreja Flor da Jurema recebe visitantes brasileiros e estrangeiros que queiram conhecer a prática da religião daimista desde o processo de feitura do chá, a vacina do sapo kambô e os usos do rapé e do colírio sananga. Para isso, o visitante deve levar apenas lanterna e repelente, além de desembolsar, no mínimo, US$ 1.000 (R$ 1.650). Inclui hospedagem e alimentação em pousada sem energia elétrica e com redes para dormir na beira do rio onde se toma banho. E o daime, é claro.
Davi Nunes de Paula, 33, foi quem construiu a igreja Flor de Jurema. Filho de seringueiro, curso primário incompleto e ativista ambiental, Nunes de Paula é casado com Fabiana Piedade Rabelo, 26, paulista, engenheira de produção industrial. A festa de casamento foi no restaurante Leopolldina, localizado no primeiro andar da Villa Daslu -custou R$ 30 mil. Presente do sogro.
Durante todo o processo do feitio do chá, que dura 15 dias, o visitante pode meditar ou participar do trabalho, sempre bebendo o daime. "Bebam à vontade, aproveitem que vocês estão na fonte e quem quiser levar ou receber no seu país a gente manda, respeitando a legislação local", diz Mirim, Antonio Altamiro Rosa Parente, 59, o alquimista da igreja, responsável pela feitura do chá nos dez diferentes graus de concentração para o consumo interno e para exportação.
Mirim, que parece não gostar de falar sobre a idéia de lucro com a bebida sagrada, foge do assunto quantidade produzida, preço e destino. Os trabalhadores, todos daimistas, ganham a ajuda de custo de R$ 30 por dia, mais alimentação e alojamento e, evidentemente, daime.
Tomei a bebida amarga e enjoativa logo ao chegar à Flor da Jurema. Nos três primeiros dias, porém, só senti enjôo.
Fui para a mata colher o cipó e lá experimentei o rapé, outra prática que os caboclos aprenderam com os índios. É usado para limpar a mente. Sem nunca ter fumado na vida, permiti que me soprassem no nariz pó de tabaco com folha de alfavaca, casca de jatobá e de canela da mata, folha de sansara, entre outras plantas medicinais.
Foi a experiência mais próxima da morte de todas que conheci. Vi a escuridão mais profunda, densa e concreta. Minhas pernas não agüentavam o peso do corpo e tive de me sentar de cabeça baixa, com os cotovelos nos joelhos.
Fiquei assim por uns dois minutos e voltei a respirar ouvindo o canto de um hino do Santo Daime entoado pelo caboclo. "(...) Eu vivo na floresta, ela me pertence."
Vomitei, espirrei, tossi e babei. Tudo ao mesmo tempo. Pela hora seguinte caminhei cambaleando e me atolando nas poças de lama do chão, me enroscando em cipós e me cortando nas folhas de tiririca.
No dia seguinte, experimentei a sananga. Indígena, é um colírio feito da batata de um arbusto chamado sananga. Quando a gotinha do caldo branco caiu no meu olho, pareceu que o globo ocular ia sair fora do crânio, ardência infernal. Ao abrir os olhos, porém, as cores estavam vivíssimas e o foco era mais do que nítido. E nada do "barato" do daime.
Aí foi a vez de tomar a vacina do sapo kambô. Atribuem-lhe propriedades mágicas e terapêuticas: quem passa por ela, desenvolveria o poder de atrair caça e mulheres, seria curado de todas as doenças físicas e espirituais, se salvaria de picadas de cobra, além de ficar mais forte. Apesar disso, no mês passado, um empresário de Pindamonhangaba (SP) morreu com a aplicação da vacina. Diagnóstico: envenenamento.
Atendendo à exigência de estar em jejum, me apresentei ao "terapeuta caboclo" que me feriu a pele do braço em sete pontos alinhados, usando a ponta de um cipó em brasa. Com a ponta de uma faca, ele depositou em cada ferida uma porçãozinha da gosma tirada da pele do sapo kambô, verde e manso.
Subiu-me um calor dos pés à cabeça. Meu sangue fervia. A barriga e o esôfago se contraíam. Enjôo e diarréia vieram com dor nas têmporas, arcada dentária, ânus. Fiquei com medo de morrer envenenado. Mas minha audição estava agudíssima. Depois de meia hora melhorei. Mas só voltei a ser eu mesmo depois do banho de rio.
Na igreja Flor da Jurema, terceiro dia de visita, numa porção de mata virgem ameaçada pelo desmatamento, pela malária e pelo progresso que chega com a construção da Estrada para o Pacífico, ao som de hinos, enfim senti pela primeira vez o efeito da ayahuasca.
Tive delírios por cerca de uma hora e, depois de duas horas de sono profundo numa rede, acordei.
A doutrina do Santo Daime separa os homens das mulheres durante as sessões e proíbe o sexo três dias antes e três depois dos trabalhos religiosos, para que a pessoa esteja "livre dos males mundanos".
Todos os dias o daime é bebido, de manhã, de tarde e de noite, durante os 15 dias do feitio do chá, que acontece nos meses de fevereiro, abril, agosto, setembro e novembro. Fora dessa época, é só aos domingos, quando se realizam os trabalhos de cura ou de oração, e homens, mulheres e crianças bebem.
Com cinco noruegueses, dois suecos, um finlandês, um paulista e uma gaúcha, passei 15 dias tomando o daime, na igreja ou na selva, sempre acompanhado das orações ("pais nossos", "ave marias" e "salve rainhas") e dos hinos de proteção, perdão, salvação.

FSP, 05/05/2008, Cotidiano, p. C4

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