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A travessia

Valor Econômico, Opinião, p. A11
Autor: SILVA, Jose Graziano da
30 de Nov de 2015

A travessia

Por José Graziano da Silva

Os sobressaltos do calendário traduzem a incerteza de nossa época. Em setembro, a comunidade internacional reunida na Organização das Nações Unidas aprovou os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, reiterando uma visão cooperativa para os desafios comuns da humanidade.
Dois meses depois, atentados terroristas na França, Líbano, Mali, Nigéria, Egito e Paquistão entre outros países ameaçam transformar a esperança em medo, a cooperação em surtos de xenofobia. O desfecho dessa encruzilhada influenciará o futuro que teremos.
A folha seguinte do calendário reserva um pedaço da resposta a essa dúvida. A comunidade internacional reúne-se essa semana em Paris na 21ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (CoP- 21).
É a chance de retomar a ambição da Agenda de Desenvolvimento 2030, injetando medidas críveis, compartilhadas, à meta de limitar o aquecimento global a menos de dois graus centígrados.
A natureza nos impele de volta à idade da razão em escala global.
Para atende-la com a rapidez que o desafio climático requer, a humanidade a partir de agora terá que se unir em uma travessia jogada em três frentes simultâneas: adaptação, mitigação e resiliência.
Nunca a expressão 'destino comum' foi tão verdadeira na dimensão econômica e ambiental. Mas será devastador ignorar a sua contrapartida política e diplomática.
A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação aposta nesse discernimento. A FAO se preparou para agir na extensa linha de fronteira na qual alterações climáticas extremas ameaçam exacerbar a injustiça social, sendo a fome e a pobreza as suas manifestações mais ostensivas.
Cerca de 800 milhões de pessoas padecem de fome crônica em pleno século XXI; 160 milhões de crianças menores de 5 anos carregarão sequelas do raquitismo para o resto de suas vidas; 50 países mais pobres do planeta encabeçam a lista dos mais afetados pela mudança climática.
Eles respondem por menos de 1% das emissões globais. A assimetria dos efeitos cobra maior cooperação no ataque às causas.
A intersecção entre pobreza e eventos extremos impõe à conferência de Paris a mesma atenção que os ODS dispensaram ao principal reduto desse entrelaçamento: as áreas rurais.
Nelas se concentram 80% dos pobres do mundo.
Sobre elas recairão 25% do impacto das mutações ambientais, conforme projeções da FAO.
Não se trata apenas de evitar que uma rotina ambiental extremada agudize a insegurança no núcleo duro da fome.
A dominância climática alterou a ordem dos fatores: não pode mais haver núcleo duro da fome, se não quisermos jogar a humanidade em uma roleta de eventos sociais extremos.
Essa é a nova regra do jogo em que a dominância ambiental passou a dar as cartas: nosso curinga é a justiça social.
Mudanças na dinâmica das estações, da hidrologia e da temperatura afetarão mais e mais a oferta e a geografia da produção agrícola planetária.
Mantida a rota atual, temperaturas mais elevadas impulsionarão a proliferação adicional de pragas -inclusive transfronteiriças e pandêmicas.
O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) prevê uma queda de 10% a 25% na produção das principais lavouras até 2050.
Se a pobreza do campo é o elo mais frágil da cadeia, a primeira ação consiste em fazer da rede mundial de 500 milhões de unidades da agricultura familiar uma trincheira de transição ancorada em produtividade, resiliência e adaptação à nova dinâmica ambiental.
Não são adornos retóricos, são boias de uma travessia cercada de incertezas por todos os lados.
Estamos falando de erguer pontes com a disseminação de técnicas testadas e aprovadas; de agroecologia adaptada às novas condições de solo e água; de manejo de baixo impacto; de plantio direto; da agricultura climaticamente inteligente; de melhoramento de sementes; de controle biológico de pragas. Mas também de sua contrapartida operacional: cooperativismo e crédito ao pequeno produtor; justiça fundiária e assistência técnica; aquisições de safra associadas a programas de segurança alimentar. Em resumo, de políticas públicas indutoras do desenvolvimento com convergência social; e de planejamento democrático, em substituição ao salve-se quem puder que produziu o caos.
Não temos mais o direito de afrontar o óbvio: iniciativas para aumentar a renda e a segurança alimentar dos mais pobres, dar-lhes condições de adaptar à mudança climática, e mitigar o efeito estufa, dependem de um grau de cooperação política inédito entre as nações e dentro de cada nação.
Dois bilhões e quinhentos milhões de moradores pobres do campo compõem a linha de frente dessa peregrinação em busca de uma ponte viável para o futuro. Os contingentes mais frágeis da humanidade, e a sorte de seus meios de subsistência -colheitas, criações, recursos pesqueiros e florestais, espremem-se na travessia abafada e incerta.
Há uma bússola disponível. A proposta pela FAO inclui providências agrupadas em quatro pontos cardiais: políticas públicas de governança de risco na agricultura; informação meteorológica e alertas precoces associados a mitigações; assistência técnica, crédito e manejo para adaptação; redução de vulnerabilidade e estruturas de resposta rápida para pronta recuperação ante o infortúnio.
É caro? Não. Para cada US $ 1 investido pelo Estado em medidas de redução do risco, US $ 2 a 4 dólares retornam aos cofres públicos na forma de prejuízos abortados ou mitigados. O preço em vidas humanas não foi calculado. Seu valor é único.

José Graziano da Silva é diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO)

Valor Econômico, 30/11/2015, Opinião, p. A11

http://www.valor.com.br/opiniao/4334936/travessia#

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