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Transposição também divide agricultores

O Globo, O País, p. 14
09 de Out de 2005

Transposição também divide agricultores
O novo velho Chico: colonos dizem que hoje água do São Francisco não é usada por muita gente que vive às margens

Sindicatos rurais temem que alterações no leito do rio acabem beneficiando apenas grandes projetos de irrigação
A discórdia sobre o destino que a transposição dará ao rio da integração nacional, como o São Francisco é chamado, não se limita aos políticos. Ela também mobiliza pequenos agricultores e trabalhadores rurais do Nordeste. O presidente da Confederação dos Trabalhadores de Agricultura, o pernambucano Manoel Santos, é a favor. Mas no sertão os sindicatos já começam a se inquietar com as conseqüências da obra, até mesmo em estados que teoricamente seriam beneficiados com a intervenção pretendida pelo governo federal.
- A causa é nossa também, e não apenas do governo e da Igreja. Não acreditamos que a transposição seja solução para o semi-árido. É um projeto faraônico que vai atender mais ao agronegócio do que ao camponês. De elefante branco, o sertão do Nordeste já está cheio - disse o cearense José Santana Monte, da cidade de Icó, que fica a 360 quilômetros de Fortaleza.
Agricultores também fazem greve de fome
Na segunda feira passada, ele entrou em greve de fome com mais três agricultores em solidariedade ao frei Luiz Flávio Cappio, que passou 11 dias sem comer em Cabrobó - a 586 quilômetros de Recife - por acreditar que a transposição vai mesmo é prejudicar os nordestinos mais pobres.
Em Petrolina, a quase 800 quilômetros de Recife, o presidente do sindicato dos trabalhadores rurais, Francisco Pascoal Cipriano da Silva, também encara a obra com descrença:
-- Moro na beira do rio e quero que a água vá para nossos companheiros da caatinga. Mas por que o governo não a leva a quem já está perto? Moro a 50 metros da beira do São Francisco e não tenho água para irrigar meu roçado.
Silva lembra que a situação se repete entre as três mil famílias de assentados em projetos de reforma agrária nos municípios de Petrolina, Orocó, Cabrobó, Lagoa Grande e Santa Maria da Boa Vista, que ficam às margens do Velho Chico.
- Para os grandes (empresas de irrigação) tudo, para os pequenos (lavradores) nada. Temos nesses municípios três mil famílias assentadas que moram em distâncias de 500 metros a um quilômetro do rio e amargam a mesma sede do sertanejo do meio da caatinga. Por esse motivo, louvo a greve de fome do bispo - diz Silva, lembrando que somente em Petrolina há dois projetos de irrigação oficiais inacabados.
Sindicalista de Pernambuco tem mesma descrença
O presidente da Federação dos Trabalhadores de Agricultura de Pernambuco, Aristides Santos, compartilha do temor.
- Se a água não tiver tarifa diferenciada para os pequenos, vai acabar a agricultura familiar - prevê.
Em Sergipe e Alagoas, o maior temor com obra
Curso do rio já sofreu diversas mudanças por causa de barragens
Descoberto há 504 anos no dia 4 de outubro - data dedicada a São Francisco - ele é encarado como rio da integração nacional. Para os sertanejos, é o Velho Chico. Nasce na Serra da Canastra, em Minas, e percorre 2,7 mil quilômetros até a foz entre Alagoas e Sergipe, estados que mostram o maior temor com as conseqüências da transposição. O rio é uma fonte de vida para as populações ribeirinhas, os chamados beiradeiros.
Ao longo dos anos, o curso do rio sofreu uma série de mudança para abastecer barragens como Sobradinho - que já foi o maior lago artificial do mundo - que alimentam nove usinas do sistema Chesf e duas da Cemig. Usando a água do rio, elas têm capacidade instalada para produção de 10.475 megawatts. É difícil calcular a quantidade de água que as turbinas das hidrelétricas movimentam por dia, mas, segundo a Chesf, o São Francisco tem uma vazão média de 2.719 metros cúbicos por segundo. Se toda essa água servisse ao abastecimento doméstico, mataria a sede de 700 milhões de pessoas segundo cálculo do engenheiro Sérgio Torres, da Companhia de Abastecimento de Pernambuco (Compesa).
Irrigação criou no sertão a Califórnia brasileira
As águas do rio servem para consumo humano e industrial e alimentam projetos de irrigação que transformaram o submédio São Francisco na Califórnia brasileira, com fruticultura voltada para a exportação. De Petrolina decolam cargueiros carregados de mangas, melões, melancias e uvas para a Europa.
O uso das águas do rio, no entanto, não tem sido racional. Ele recebe dejetos de esgotos domésticos, sofrer com a contaminação por agrotóxicos de projetos irrigados e começou a sumir em algumas regiões. Segundo prefeitos de municípios próximos à foz, o mar começa a dominar a área antes ocupada pelo rio. Os inimigos da transposição dizem que ela funcionará como uma hemorragia em quem precisa de transfusão de sangue.
Transposição foi criticada por Lula na campanha
Criticada por Lula durante a campanha e depois encampada como um dos principais projetos do seu governo para o Nordeste, a transposição consiste na construção de 720 quilômetros de canais de concreto que levarão água do São Francisco ao semi-árido de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. Segundo o Ministério da Integração Nacional, a obra exigirá R$4,5 bilhões em investimentos, e puxará para aqueles estados o equivalente a 2% do que o rio joga hoje no mar. Segundo o ministério, a expectativa é que a obra beneficie 12 milhões de pessoas. Mas o Comitê da Bacia do São Francisco é contra o desvio da água. Afirma que 80% do total captado servirá ao agronegócio e a criação de camarões em cativeiro.

O Globo, 09/10/2005, O País, p. 14

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