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Transgênicos sem drama

CB, Opinião, p.15
Autor: MARZAGÃO, Augusto
14 de Jan de 2004

Transgênicos sem drama

Augusto Marzagão
Jornalista, é autor do livro A semeadura e A colheita (Editora Ao Livro Técnico)

Certos temas altamente polêmicos, como o dos produtos transgênicos, às vezes passam muito tempo hibernando em áreas marginais ou restritas da opinião pública, até que um dia saltam de repente para o centro nervoso dos debates e das decisões, causando intensa mobilização geral em torno tanto de sua natureza como dos seus efeitos. No Brasil, a fogueira dessa temática sensível foi inicialmente provocada por uma fagulha nascida da produção de soja transgênica no Rio Grande do Sul, tudo partindo da própria ilegalidade do plantio em face da legislação nacional, tanto mais que envolvia sementes contrabandeadas da nossa vizinha Argentina.

A isso se juntava o complicador de uma empresa multinacional, a americana Monsanto, aparecer como fornecedora monopolista de um produto por ela pesquisado, patenteado e lançado no mercado mundial. Posições de setores nacionalistas e conservacionistas - de nutrólogos, de nutricionistas, de saúde pública e individual, de ''experts'' em biossegurança, de conveniências mercadológicas e outras - entraram no mesmo bolo da controvérsia, que enveredaria ainda por emotivos aspectos ideológicos e éticos.

A crise da soja transgênica no Rio Grande do Sul, envolvendo milhares de produtores, uma safra considerável e, em razão disso, o interesse do próprio governo do estado, quase sacrifica a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, uma das principais jóias da coroa do ministério Lula, e afastou do PT o deputado Fernando Gabeira, um ícone da causa conservacionista. Mas tudo acabaria numa solução de emergência, que apagou temporariamente o incêndio: uma medida provisória que deu sobrevida aos fazendeiros encalacrados para zerarem o seu ''estoque transgênico'', ou seja, de sementes não-renováveis, e estabeleceu condições para fiscalização da comercialização do produto geneticamente modificado dentro do país e as exportações.

Entro nesse assunto não como um conhecedor dos prodígios da engenharia genética, mas como um jornalista que tem acompanhado de perto as relações entre o homem e a natureza, tomando invariavelmente, embora em fanatismo despropositado, o partido dos que defendem a preservação do meio ambiente contra qualquer atividade predatória, que consideram uma ameaça à própria vida humana e ao seu destino na Terra. E a transgenia não pode faltar na agenda de preocupações de qualquer sentimento ou movimento ligado à problemática ecologia. O importante, então, é pavimentar o caminho da racionalidade entre posições que se transviam para os lados da precipitação meramente instintiva ou passional.

Gerado em laboratório para melhorar a produtividade, a qualidade, a economicidade e a pureza de certos alimentos, livrando-os sobretudo dos agrotóxicos, o processo transgênico sofreu, ao mesmo tempo em que cumpria essa tarefa, a acusação de causar danos ambientais em pelo menos determinadas áreas agrícolas. Daí as resistências públicas que ganharam inclusive a opinião leiga das ruas e de movimentos sociais como o MST. Dada a verdadeira confusão que se criou em torno do problema, penso que, antes de mais nada, é preciso desdobrá-lo em duas questões: a primeira seria a dos transgênicos em geral; a segunda, a da soja transgênica.

Até o momento não se conhece, aqui ou no exterior, nem uma conclusão abalizada de cientistas, pesquisadores, laboratórios etc. Apontando os riscos para a saúde humana no consumo de alimentos geneticamente modificados, surgem apenas especulações jamais documentadas no sentido negativo. Em contrapartida, ouço dizer que processos transgênicos têm sido aplicados na produção de insulina, o que teria barateado sobremaneira o fornecimento dessa substância aos doentes de diabetes, melhorando a sua qualidade de vida e a sua segurança, ao mesmo tempo em que pesquisas avançam no sentido do uso de organismos transgênicos para a prevenção de várias doenças e o retardamento de processos degenerativos. Por outro lado, não se tem conhecimento de lesões ambientalistas em relação ao uso de transgênicos, o que já se baseia numa experiência acumulada de mais de duas décadas. Entretanto, não devemos considerar devidamente encerradas as dúvidas sobre eventuais riscos, dúvidas essas que justificam, por exemplo, as cautelas da ministra Marina Silva.

Enfim, se quisermos uma conclusão realista, desdramatizada, sobre o caso brasileiro, poderíamos, talvez, traçar as seguintes linhas de consenso:
1) Nada explica em todas as regiões produtoras a substituição do plantio da soja natural pela transgênica já que somos a segunda potência mundial na exportação do produto, com vendas e lucros crescentes. Ocorre, sobretudo, que as nossas exportações se concentram na Europa e na China, áreas compradoras infensas à soja transgênica. Por que sair dessa trajetória comercial cem por cento consolidada e confiável?

2) De qualquer forma, não há razão para simplesmente proibir o plantio do produto geneticamente modificado, pois isso significaria truncar um avanço tecnológico no campo dos alimentos, tal como fizemos num passado recente em relação à informática. Não esqueçamos que contamos aqui com a competência, a credibilidade e a visão de futuro da Embrapa.

3) Já prevista pelo governo na sua política de biossegurança, a rotulagem bem discriminada da soja transgênica no mercado interno deixaria ao consumidor a opção de adquirir ou não o produto. À liberdade de produzir corresponderá, assim, a liberdade bem informada de consumir.

CB, 14/01/2003, Opinião, p. 15

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