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Todas as mulheres do mundo de Damares

O Globo, Sociedade, p. 39
07 de Abr de 2019

Todas as mulheres do mundo de Damares
De índia a petista, conheça as conservadoras escaladas para o ministério de Damares
Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos juntou secretárias de perfis variados para tratar de temas como ensino domiciliar, suicídio e automutilação

Audrey Furlaneto
07/04/2019 - 04:30 / Atualizado em 07/04/2019 - 11:47

RIO - Das nove secretarias do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) , seis são ocupadas por mulheres.Ao contrário do que se vê no Ministério da Educação (MEC), que vive em clima de paralisia criado por uma disputa interna, Damares Alves parece ter conseguido um feito: congregar diversidade em torno de um discurso coeso, de alto teor conservador. Foi do único núcleo de poder feminino no governo Bolsonaro , por exemplo, que saiu a proposta de reforma do ensino à distância. Na semana passada, a ministra foi defender sua visão de "homeschooling" na Câmara, uma pauta que, em outras administrações, poderia ter sido elaborada pelo MEC.

O conservadorismo é o que une as mulheres à frente das secretarias de Damares. Não se fala em feminismo, mas em ouvir mais os homens. A estrutura de proteção à comunidade LGBTI não foi alterada, mas defende-se a família "tradicional". As protagonistas do MDH são um retrato de muitos Brasis: convivem uma líder indígena, uma amiga da primeria-dama Michelle Bolsonaro que é surda e uma evangélica petista que assinou manifesto em defesa de Dilma Rousseff durante o processo de impeachment. Petrúcia Andrade é a única que já discordou, no passado, de Damares em tema central: assinou manifesto em defesa da descriminalização do aborto.

As mulheres de Damares apareceram com desenvoltura no primeiro trimestre no Congresso, no exterior e em cidades do interior anunciando projetos que vão do combate ao suicídio indígena à prevenção da automutilação - ainda que sem apresentar políticas detalhadas.

Uma das iniciativas mais ambiciosas, mas ainda em estado inicial, é a tentativa de parceria com o Facebook e o Google para a criação de um sistema de buscas para crianças desaparecidas.

O GLOBO procurou todas as secretárias, mas três delas não quiseram dar entrevistas. O ministério informou que irá apresentar o conjunto de iniciativas da pasta - que tem orçamento de R$ 450 milhões - "no momento que considerar apropriado".

INÍCIO
01 'SERÁ QUE ESTAMOS OUVINDO OS HOMENS? PRECISAMOS ESCUTÁ-LOS'
02 'POR TRÁS DE TODA MULHER LINDA E PODEROSA, EXISTE ELA MESMA'
03 'MEU AVÔ DIZIA QUE SÓ SE MUDA A REALIDADE COM ESTUDO. FUI ATRÁS DISSO'
04 'COSTURAVA PARA UM PESSOAL DE ELITE E PERGUNTAVA: O QUE ME DIFERENCIA?'
05 'QUERO TRANSFORMAR OS DEFICIENTES EM PROTAGONISTAS DO NOVO GOVERNO'
06 'MANDEI MEU CURRÍCULO, ME CHAMARAM PARA ENTREVISTA E PASSEI'

Será que estamos ouvindo os homens? Precisamos escutá-los'
Angela Vidal Gandra, secretária da família

Filha do jurista Ives Gandra, Angela Vidal Gandra lecionava Direito em Boston quando voltou ao Brasil, em 2017, para trabalhar no escritório de advocacia da família em São Paulo. E também para ficar perto dos pais. Quando se tornou secretária da Família, passou a despachar na capital de segunda a sexta. No fim de semana, voa para São Paulo.

- Papai tem 84 anos. Quero estar perto. É um serviço de família, coerente com meu cargo - diz, rindo, a segunda dos seis filhos de Ives Gandra.

Ela própria decidiu não ter filhos ("não era minha vocação"). Também não se casou ("isso não passou pelo meu caminho"), apesar de "amar a ideia de família". Para Gandra, essa concepção passa sim por casamento - mas apenas entre homem e mulher.

- Sou filósofa do Direito e só posso entender casamento juridicamente: entre homem e mulher.

Indagada sobre o fato de existirem outras formas de união e família, reconhecidas inclusive pelo STF, a secretária responde de bate-pronto:

- Esse ministério é conservador, e meu dever é acompanhá-lo. Homem com homem não é casamento. Uma maçã amarela não pode ser chamada de pera, certo?

Coerente com "a nossa ministra", Gandra também é contra o aborto:

- Mais do que combater o aborto, o que defendemos é a vida. Esse é o ministério da alegria. E da vida - diz Gandra. Ela foi uma das defensoras mais notórias do projeto apelidado por críticos de "bolsa estupro", o auxílio financeiro a mulheres vítimas de violência sexual que não interromperam a gravidez.

Única secretaria sem orçamento próprio - foi concebida após a elaboração orçamentária -, a da Família está usando recursos de outros setores do ministério.

Um de seus nortes é a criação do "Observatório da família", voltado para "proteger a noção familiar, de acordo com a Constituição". A iniciativa, Grandra diz, será importante para "dar voz aos homens".

- Será que estamos ouvindo os homens? Precisamos escutá-los - diz a secretária do Ministério da Mulher.

'Por trás de toda mulher linda e poderosa, existe ela mesma'
Tia Eron, secretária de políticas para mulheres

"Entenderam que de fato não mandam nessa 'nega' aqui. Nenhum dos senhores manda." A frase lapidar é de Eronildes Vasconcelos de Carvalho, que adotou a alcunha de Tia Eron ao longo de sua trajetória política - ela foi quatro vezes vereadora em Salvador e, depois, deputada federal pelo PRB. A afirmação de que ninguém era dono dela foi proferida diante de deputados no Comitê de Ética da Câmara, após muito mistério, quando ela deu o voto decisivo para a cassação do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha.

Aos 46 anos, formada em Direito, viúva e mãe de dois filhos - Éden e Eva -, ela é mais conhecida pelo grito de independência no Congresso do que pela atuação como deputada. Obreira da Igreja Universal, integrava a bancada evangélica. Entre seus pares, sua atuação foi considerada inexpressiva.

Com R$ 26,6 milhões de orçamento, cabe a Eron elaborar políticas públicas de proteção à mulher. O ministério também se recusou a apresentar as metas da área comandada pela ex-deputada.

A secretaria de Eron responde por projetos como o disque denúncia 180, que atende mulheres vítimas de violência, e é responsável pelas campanhas de prevenção à violência sexual e doméstica contra a mulher.

Também está a cargo de Eron implementar políticas públicas para facilitar o acesso ao aborto legal na rede pública. Uma parceira importante de Tia Eron na secretaria é Sara Winter, autodeclarada antifeminista e militante contra o aborto. A ministra Damares, por sua vez, defendeu a vida desde a concepção em encontro internacional na ONU, mas ainda não foram detalhadas diretrizes da nova administração para a área.

No Twitter, ela segue os passos de Damares e faz postagens com frequência. Na rede social, publica frases soltas, já não tão de efeito como a que marcou a cassação de Cunha. Na semana passada, cravou: "Por trás de toda mulher bem-sucedida, linda, independente e poderosa, existe ela mesma. Grave isso!".

'Meu avô dizia que só se muda a realidade com estudo. Fui atrás disso'
Sandra Terena, secretária da promoção da igualdade racial

Aos 37 anos, casada e mãe de três filhos, Sandra Terena é curitibana, mas cresceu em comunidades indígenas. Se seu pai, Marcos Terena, é ídolo da secretária da Promoção da Igualdade Racial, os conselhos espirituais vêm da índia Isolina, "pajé mulher, que só não me batizou por eu ter nascido na cidade".

- Sou terena, mas me identifico muito com os guaranis, que são religiosos, param para fumar e rezar todo fim de tarde. Sempre que posso, vou à casa de reza e peço a Isolina que interceda por mim.

Ela lembra que suas atribuições ultrapassam as causas indígenas. "Há os afrodescendentes, os povos ciganos, os quilombolas", lista, todos no escopo da secretaria, que conta com orçamento de R$ 11 milhões.

Terena reafirma diariamente sua origem, a desfilar de cocar pela Esplanada dos Ministérios. A moda pegou: não raro, Damares também aparece de cocar no gabinete.

Terena segue regra comum às secretárias da ministra: não a critica. Ao contrário. Questionada sobre o fato de a ministra ter uma filha adotiva indígena, que teria sido levada irregularmente da aldeia, como revelou a revista Época, a secretária defende a chefe:

- Ela tem amplo diálogo com os pais da filha adotiva. O problema é a imprensa, que tenta desacreditar o trabalho da Damares.

Formada em Jornalismo, Terena fez estágio no jornal "Gazeta do Povo", de sua cidade natal. Depois, bancou um documentário que "denuncia a omissão do poder público com a prática do infanticídio nas aldeias":

- Meu avô dizia que só se muda a realidade com estudo. Fui atrás disso. Meus irmãos e eu estudamos. Eles através do vestibular indígena (processo seletivo específico), e eu com bolsa da Funai.

Perguntada sobre trabalhar em um governo criticado por várias lideranças indígenas de esvaziar a Funai, ela não titubeia:

- A Funai está sucateada há muito tempo. Pela primeira vez uma mulher indígena é secretária nacional. Este é um governo de inclusão.

'Costurava para um pessoal de elite e perguntava: o que me diferencia?'
Petrúcia de Melo Andrade, secretária da criança e do adolescente

Há uma estranha no ninho de mulheres de Damares. É Petrúcia de Melo Andrade, filiada ao PT por Minas Gerais, signatária de um manifesto em defesa da ex-presidente Dilma Rousseff durante o processo de impeachment e de um documento em defesa da descriminalização do aborto, apresentado no ano passado em audiência pública no Supremo Tribunal Federal.

Aos 65 anos, a psicóloga comanda um dos mais altos orçamentos do ministério - a Secretaria da Criança e do Adolescente tem verba de mais de R$ 47 milhões.

Ao anunciar a nomeação da petista (sem mencionar seu partido), a pasta informou que sua prioridade seria "a prevenção da automutilação e do suicídio, da violência sexual contra crianças e adolescentes e da gravidez não intencional".

Alagoana de Penedo, fiel da Igreja Batista Central, ela fez especialização em Criminologia e Violência Urbana. Construiu sua trajetória política em Minas Gerais. Na cidade de Contagem, trabalhou nas secretarias municipais de Desenvolvimento Social e de Direitos e Cidadania. O ministério não permitiu que a secretária concedesse entrevista ao GLOBO.

Andrade faz a linha discreta, na contramão de sua ministra, que alterna postagens diárias em diferentes redes sociais. Ela não tem perfil oficial no Twitter. A conta do Instagram que leva seu nome tem apenas duas publicações, ambas feitas em janeiro passado. Numa entrevista disponível no YouTube, ela conta ter sido costureira quando a família migrou do Nordeste para Minas Gerais:

- Costurava para um pessoal de elite e perguntava: o que me diferencia dessas pessoas? Percebi que era acesso à Educação e fui estudar. Quando estava na faculdade, pensava: tenho uma responsabilidade social com o outro. Vim do Nordeste sem a mínima condição.

'Quero transformar os deficientes em protagonistas do novo governo'
Priscilla Gaspar de Oliveira, secretária da pessoa com deficiência

Priscilla Gaspar de Oliveira foi assim anunciada pelo ministério: "Primeira surda a ocupar um cargo no 2o escalão do governo federal". Mãe de três surdas, casada com um surdo, ela estima que sejam quase 30 os deficientes auditivos na família.

Formada em Pedagogia e mestre em Educação pela PUC-SP, ela chegou ao cargo de secretária da Pessoa com Deficiência pelas mãos da primeira-dama Michelle Bolsonaro, que, na posse do presidente, discursou sobre sua principal bandeira: a inclusão dos surdos. Militante da causa, Priscilla contou ao GLOBO que é amiga de Michelle há três anos. Ao longo da campanha de Bolsonaro, foi intérprete do candidato em alguns de seus vídeos. Mas sua militância, afirma, remonta à infância.

- Meus pais e meu tio sempre lutaram para preservar a língua de sinais, desde 1970. Sou a única da família a nascer como pessoa surda bilíngue por ter domínio de duas línguas ao mesmo tempo! Com essa minha facilidade de comunicação, consegui manter contato com políticos em São Paulo para preservar escolas bilíngues que corriam o risco de serem fechadas. A minha luta sempre foi voluntária e nunca pensei que chegaria aonde estou hoje.

Sobre sua função, afirma que é "fiscalizar as leis existentes e cobrar ações da sociedade". E quer "transformar todos os deficientes em protagonistas do novo governo".

Nos corredores do ministério, ela é considerada rígida e de difícil acesso. Há quem veja sua militância arraigada em torno da surdez como uma limitação em secretaria que trata de muitas outras deficiências. Sobre a sua própria, ela discorre com desenvoltura:

- O surdo é o deficiente que sofre mais rejeição linguística .

Sua secretaria tem R$ 7 milhões de orçamento. O ministério se negou a fornecer informações sobre os projetos da área.

'Mandei meu currículo, me chamaram para entrevista e passei'
Jayana Nicaretta da Silva, secretária da juventude

Aos 18 anos, Jayana Nicaretta da Silva foi eleita vereadora em Santa Catarina, em União do Oeste, cidade com menos de 3 mil habitantes. No mesmo ano, passou em sete vestibulares, "três para universidades federais", como faz questão de destacar. Entre Veterinária e Engenharia de Petróleo, ficou com a segunda. Durante os quatro anos de mandato, equilibrou-se entre a universidade, em Pelotas, e a Câmara, em União do Oeste, percorrendo de ônibus o trajeto de 700 km entre as cidades.

- Fiz esse sacrifício pela política. Mas no final tive que decidir se me candidatava de novo ou se concluía o curso. Optei pelos estudos - diz ela, que terminou a faculdade no ano passado. Foi quando recebeu a ligação de um amigo de Brasília: - Pediram meu currículo e me chamaram para uma entrevista. As perguntas giraram em torno de minha experiência em gestão. Após dois encontros, passei.

Aos 24 anos, a filiada ao PP foi nomeada secretária da Juventude, com orçamento de R$ 19 milhões. Seu foco, diz, está em "preparar a juventude para a Quarta Revolução Industrial" - termo que ela repete quatro vezes em dez minutos de conversa.

- É a internet das coisas, a inteligência artificial - explica, com frase curta, marca da sua objetividade.

Um projeto é um contêiner com impressoras 3D para circular em comunidades longínquas e "treinar jovens para lidar com alta tecnologia". Outro é o combate à automutilação infantil, em parceria com a Secretaria da Criança e do Adolescente.

- O que é muito legal nesse ministério é essa coisa da transversalidade. As secretarias trabalham, de fato, juntas.

Antes da nomeação ela disse ter sofrido com o que detectou ser doutrinação ideológica em salas de aula. Ao GLOBO, foi mais sucinta:

- Isso eu falava antes. E ainda vejo (doutrinação), sim. Mas aí não vou me alongar porque não tem nada a ver com meu cargo.

O Globo, 07/04/2019, Sociedade, p. 39

https://oglobo.globo.com/sociedade/celina/de-india-petista-conheca-as-c…

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