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Tesouro no meio da selva

O Globo, Amanhã, p. 8-11
07 de Ago de 2012

Tesouro no meio da selva
A Amazônia abriga a maior diversidade de vida do planeta e 12% das espécies de plantas já descritas. Mas para a riqueza da floresta gerar lucro e empregos sem a destruição do meio ambiente é preciso intensificar a pesquisa científica e facilitar as parcerias com empresas privadas

Chico Otávio
chico@oglobo.com.br

A primeira recomendação que um pesquisador recebe ao ingressar na equipe do Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA) é ficar de boca fechada. Para explorar economicamente um dos maiores santuários de vida selvagem do planeta, um dos cuidados básicos é assinar acordos de confidencialidade com os parceiros privados. Em ocasiões especiais, no entanto, a regra pode ser quebrada. A clonagem do curauá - uma planta amazônica da família das bromélias, cujo fruto se parece muito com um abacaxi em miniatura - foi uma dessas ocasiões. Amargo demais para virar suco, o curauá entrou no radar dos pesquisadores após a descoberta do potencial econômico das fibras de sua folhas. Além de servir para revestimento de colchões e forro de carros, as folhas do curauá podem entrar na cadeia produtiva de celulares e equipamentos eletrônicos em substituição à fibra de vidro.
Nada mais simbólico do que um abacaxi para ilustrar o esforço do país na busca por um novo ciclo de desenvolvimento econômico para a Amazônia - uma região que tem no desmatamento o maior inimigo. O Brasil é o país com a maior biodiversidade do mundo e a região amazônica abriga muitos de seus tesouros biológicos. Há 85 mil espécies descritas (43% do total do país). E isso representa apenas uma pequena parte do potencial estimado para a região. A flora, a fauna, os fungos e os micro-organismos da floresta são vistos como matéria-prima para a produção de remédios e alimentos. Só que toda essa riqueza não valerá nada, caso não seja estudada pela ciência. E está aí uma das dificuldades crônicas da região. A Amazônia ocupa 61% do território nacional, mas absorve apenas 4% dos doutores e grupos de pesquisa do país.
- São formiguinhas contra um gigante. Existe pesquisa de qualidade, mas não há escala para o desafio econômico e as oportunidades que a região representa para o país - lamenta o pesquisador Ulisses Galatti, do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém.
Só que transformar pesquisa em dinheiro e tirar a Amazônia do limbo científico não são tarefas fáceis. É necessário conciliar interesses muitas vezes conflitantes. Os cientistas estão empenhados em superar a fronteira do conhecimento. Os empresários apostam na biodiversidade como fonte de lucros. E as comunidades locais dependem da natureza para sobreviver. São interesses que envolvem cifras atraentes. Só na última década, o Museu Goeldi, instituição vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), descreveu 130 novas espécies, entre plantas, animais e fungos.
Em menos de um quilômetro quadrado da Floresta Amazônica há mais espécies de plantas do que em todos os países da Zona do Euro. Uma única árvore, por exemplo, é habitat de numerosos tipos de invertebrados, de formigas a aranhas, passando por abelhas e besouros.
Em número de plantas descritas, a Amazônia tem hoje catalogadas 60 mil espécies, o que representa 12% das espécies do planeta. E ainda há três mil espécies de peixes de água doce, 849 de anfíbios, 540 de mamíferos, 1.700 de aves, 693 de répteis e 13 mil de fungos. Além de ser de longe o bioma mais rico do planeta Terra, a Amazônia é, ao mesmo tempo, a floresta com o maior número de espécies descritas. Só que, paradoxalmente, é também onde se estima haver o maior número de espécies a descobrir.
Superar o desafio da biotecnologia vai muito além da identificação de novas espécies. É preciso isolar o princípio ativo (a substância que confere ação de interesse para a produção de fármacos, por exemplo) e descobrir onde aplicá-lo. Criado em 2002, o Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA) precisou de uma década para clonar as mudas do curauá - etapa obrigatória para garantir a produção em larga escala para a indústria. Resta agora atrair parcerias estratégicas. Ou seja, encontrar empresários que acreditem no potencial da fibra amazônica e de outro, rastrear comunidades locais dispostas a plantar as mudas.
A imensidão territorial e as transformações provocadas pela ação humana não bastam para explicar o desconhecimento sobre o potencial da biodiversidade amazônica. Estudos sobre esse tesouro no meio da selva, como o Censo da Biodiversidade, conduzido pelo Museu Paraense Emílio Goeldi, estão apenas no começo. A situação é agravada pela pequena quantidade de pesquisadores residentes na região, muitos deles motivados por posições ideológicas que se chocam com a ideia de explorar comercialmente o patrimônio genético nacional.
No ano em que o CBA foi inaugurado, em Manaus, o mercado internacional de produtos biotecnológicos movimentou US$ 780 bilhões. De olho nesse mercado o projeto saiu do papel para ser um centro de excelência na Amazônia. Visto como um projeto estratégico, a meta era abocanhar uma parcela dos negócios mundo afora. Pesquisas começaram a ser desenvolvidas nos laboratórios montados para explorar o potencial da floresta. Só que, nesses dez anos, os projetos ambiciosos minguaram, a ponto de a instituição ter corrido risco de virar um elefante branco.
Nenhuma patente foi registrada e o centro não tem personalidade jurídica própria, o que o impede de contratar cientistas diretamente. E pior: os recursos do CBA são originários somente dos impostos pagos pelas 600 empresas da Zona Franca de Manaus (Suframa).
Para evitar a paralisia, driblar a burocracia e impedir que o CBA virasse de fato um elefante branco, a saída foi se aproximar do setor privado e se submeter as regras de mercado. O sigilo passou a ser exigido nas pesquisas em andamento e as equipes de cientistas mudaram a dinâmica de trabalho. Agora, elas atuam apenas numa das etapas do desenvolvimento do projeto.
- Inicialmente, os colegas reagiram mal à ideia de trabalhar em linha de montagem. O Brasil não tem essa experiência. Os cientistas sempre foram vinculados à academia. Mas fomos obrigados a cortar esse vínculo. Não fazemos mais pesquisa básica - analisa o farmacêutico José Augusto Cabral, coordenador de Produtos Naturais da instituição. - Quem planeja fazer um mestrado ou mesmo um doutorado, tem que procurar outro lugar para trabalhar.
Regras de mercado
Os parceiros privados hoje respondem por 72% do orçamento do CBA, que é de R$ 102 milhões. E como todos trabalham numa espécie de linha de produção, os 64 cientistas do CBA estão espalhados pelos 16 laboratórios do centro e envolvidos em diferentes projetos, dos fitoterápicos aos bioterápicos, passando por sais, açúcares e corantes. A regra do silêncio não pode ser quebrada jamais. O centro é o fiel depositário do patrimônio genético conferido pelo Conselho Gestor do Patrimônio Genético Nacional (CGEN).
Só que para explorar o patrimônio genético amazônico é preciso contar com o apoio logístico das comunidades ribeirinhas. São elas que garantem a produção em escala industrial.
Algumas experiências bem-sucedidas indicam que a parceria entre os cientistas, os empresários e as comunidades é possível. É o caso do município de Eirunepé, na região do Alto Juruá, a 1.700 quilômetros de Manaus.
Há dez anos, os 320 moradores da Vila União, nessa cidade ribeirinha, fornecem açúcar mascavo para a Coca-Cola. O insumo é um dos componentes do refrigerante. A empresa garante, anualmente, a compra de 700 toneladas de açúcar, que são extraídas dos canaviais da região.
- A empresa nos dá a garantia mínima de sobrevivência. O excedente podemos vender para qualquer outro interessado - comemora José Geildo do Nascimento, de 35 anos, presidente da Cooperativa Agroextrativista da Vila União.
No entanto, a parceria entre Eirunepé e o setor privado é exceção e não regra. Os estudos sobre a valoração da floresta ainda estão engatinhando e precisam incluir o potencial madeireiro e de serviço ambientais.
Isso significa a inclusão da proteção dos mananciais, a polinização, a dispersão de sementes e os potenciais turístico e biotecnológico.
- É muito trabalhoso organizar toda a informação ainda dispersa.
Ainda mais que nem sabemos dimensionar direito o potencial de outros biomas até mais conhecidos, como a Mata Atlântica e o Cerrado - admite Galatti.
Escassez de livros
Apesar de sermos o país com a maior biodiversidade do mundo, boa parte desse conhecimento está nas mãos de estrangeiros. Um dos principais livros sobre a flora da região foi escrito por um botânico alemão no século XIX. Os estudos de Carl Friedrich Philipp von Martius ainda são considerados uma referência. Ele catalogou, na época, 22.700 espécies de plantas. Os estudos avançaram e hoje se sabe que o Brasil detém 12% de todo o patrimônio de plantas do mundo.
O acervo de espécies de plantas catalogadas é de 60 mil, mas ainda não representa a totalidade da riqueza florestal brasileira. Conhecer em detalhes o bioma amazônico é, segundo especialistas, condição primordial para preservá-lo.
Um estudo publicado recentemente pela revista americana"Science" apontou que a lista de animais em extinção na Amazônia deve continuar a crescer. Até 2050, segundo previsões da revista, de 80% a 90% das espécies de mamíferos, aves e anfíbios que vivem em regiões desmatadas da floresta poderão entrar na lista de extinção.

O Globo, 07/08/2012, Amanhã, p. 8-11

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