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Tese registra os mistérios da medicina popular da Amazônia

Amazônia Real - http://amazoniareal.com.br
Autor: Liège Albuquerque
02 de Dez de 2013

Não há uma criança que morou no interior da Amazônia que um dia não tenha sido benzida e o "quebranto" misteriosamente sumido. Também é comum o uso de chás com ervas que vão muito além do capim santo como segredos para a cura de muitos males em comunidades onde médicos nunca ultrapassaram as fronteiras.

Esse mundo de benzedeiras, pajés, parteiras é alvo de pesquisa de doutorado da arqueóloga Daiane Brum Bitencourt, "Remédios da terra, amuletos e medicina familiar: uma análise etnoarqueológica dos usos e recursos de cura da população ribeirinha no Baixo Amazonas (Oriximiná/PA e Nhamundá/AM) 1870-1940", desenvolvido na PUC do Rio Grande do Sul.

Por um mês, Daiane e o namorado fotógrafo Diogo Travagin viajaram pelo interior da região colhendo os primeiros dados para a pesquisa. A viagem rendeu muitas fotos e um documentário, que está sendo produzido por Diogo, e o leitor do portal vê uma pequena amostra abra aqui.

Daiane explica que o recorte temporal de seu trabalho é baseado nas datas dos primeiros registros da paisagem pelos naturalistas e botânicos na região do Baixo Amazonas. "O período coincide com as tentativas de modernização do país em exaurir as moléstias tropicais, sinônimo de atraso, com as Reformas Sanitárias, quando os sistemas de saúde não ocidentais, a floresta e os contágios foram mal vistos pelos governantes brasileiros", destaca.

As entrevistas com os ribeirinhos, quilombolas e indígenas, o ponto alto para a documentação da pesquisa, vão acontecer no segundo semestre do ano que vem. Segundo a doutoranda, o período escolhido é porque há a possibilidade de "mergulhar" no que há mais tradicional por aquelas bandas, festejos populares como os Encomendadores de Almas, religiosos como o Círio de Santo Antônio e registro de lendas como as serpentes dos Lagos Erepecu e Erepecuru, formadores dos rastros e sinuosidades dos rios. Leia a seguir, entrevista com a pesquisadora ao portal Amazônia Real.

As entrevistas começam no ano que vem, pelo que vi em seu cronograma. Mas sua viagem para a Amazônia foi o que lhe inspirou?

A ideia inicial do projeto era a de montar um banco de dados audiovisual, onde outros pesquisadores, além dos historiadores e arqueólogos, pudessem se valer para estudos científicos acadêmicos e também que fosse de livre acesso a comunidade em geral. Após longas conversas com Diogo Travagin, este me sugeriu a ideia de montar um documentário com este material que viria a ser fornecido pelos campos de coleta de dados, valorizando e tornando acessível e didático todo o desenvolvimento da pesquisa. Além disso, nos interessa levar todas as informações possíveis para as próprias comunidades pesquisadas, como uma forma de retorno da pesquisa além do reforço a própria cultura local. Como parte do cronograma do projeto já estão em desenvolvimento as entrevistas propriamente ditas que ocorrerão no segundo semestre de 2014. Isto se deve não somente pela necessidade da organização da logística, equipe e equipamentos, mas também pela inserção e estabelecimento mais abrangente da rede de contatos e festejos (culturais e religiosos) que acontecem ao longo desta temporada na região estudada. A exemplo disso temos ainda atuantes parteiras, consertadores (torções), benzedores e rezadores. Nesta viagem que fizemos entre setembro e outubro de 2013, nossa intenção era a de coletar o maior número possível de dados, documentos, imagens e vídeos, para um levantamento histórico, arqueológico e cultural. Somado a isso, conseguimos dar o pontapé inicial para o registro audiovisual desta trajetória que buscou aliar o campo da tese, como os processos de construir esta pesquisa histórica ao mesmo tempo em que procuramos mostrar para sul e sudeste, principalmente, outras características de realidade cultural, histórica e geográfica dentro de um mesmo e imenso país.

Quanto tempo vocês passaram e foram por quais cidades? Deu para adiantar algo para sua pesquisa no seu relatório de campo?

A pesquisa ocorreu entre os dias 09 de setembro a 08 de outubro deste ano. Neste um mês, passamos por dois estados (Pará e Amazonas). A pesquisa compreendeu as cidades de Belém, Santarém, Oriximiná, Terra Santa, Manaus e Careiro da Várzea. Neste meio tempo, conseguimos coletar dados sobre a região, buscar documentação primária (registros antigos e cartas dos antigos governantes das províncias), projetos sociais e culturais desenvolvidos pela Secretaria de Educação e Prefeituras locais, além das indicações dos possíveis entrevistados. Outros fatores também foram fundamentais para a experiência em campo como pesquisadores e indivíduos comuns, as experiências de navegar por estes dois estados (barcos, navios e lanchas) e de passar alguns dias na Reserva do Rio Juma, no meio da selva.

E sobre o documentário, qual a intenção?

O documentário veio apoiado na ideia de transformar a pesquisa em algo acessível e de fácil compreensão para qualquer pessoa. Os recursos audiovisuais tornam a experiência do conhecimento mais agradável e como pretendemos atingir os mais diferentes tipos de pessoas, nada melhor que o audiovisual para isso. Além de nos apoiarmos na tese de doutorado estamos também visando um segundo objetivo, que é o de mostrar o norte para o Brasil. Não queremos deixar a oportunidade de estar pisando em terras amazônicas passar em branco no que diz respeito à quebra de preconceitos sobre o que realmente existe neste lado do país. A tese será dividida em três etapas, mais a etapa piloto que já foi concluída. Logo, temos o objetivo filmar e lançar mais três vídeos que, além de registrar a pesquisa, mostrará também o lado bom do Pará e do Amazonas, fugindo um pouco das tristes notícias que vemos o tempo todo nas grandes mídias e quem sabe até incentivar o turismo pelo norte. O vídeo de 1 minuto que enviamos é um making off do documentário. Esperamos que as pessoas se interessem e continuem acompanhando a pesquisa.

Por que escolheu os cinco municípios da região do Baixo Amazonas?

O Baixo Amazonas teve forte influência na escolha para o desenvolvimento da pesquisa. Um ano atrás, trabalhei como arqueóloga para uma empresa de consultoria científica nesta região. Deveria naquela época escavar e encontrar vestígios de sítios arqueológicos, com o propósito de resgatar estes materiais antes dos impactos ambientais que viriam a sofrer pela construção de uma linha de transmissão. Entretanto, algo naquela região aguçava ainda mais minha curiosidade. Para cada localidade em que nos encontrávamos, muitas histórias eram contadas, desde as histórias de família até as que sempre me chamaram a atenção como as lendas dos encantados, dos botos e de curas através da mata e rituais, por exemplo. Naquela região, pude perceber um enorme potencial para estudar as diversas culturas e até mesmo a miscigenação de outras tantas.

Dada sua localização geográfica (Baixo Amazonas) e características dos diversos grupos que habitam ou já habitaram estas terras, nos é possível, ainda na atualidade, vislumbrar nos rostos, nas tradições familiares, na alimentação e modo de fazer, nos contos, folclores e suas histórias populares estas descendências. O objetivo da tese é não se fixar em determinados grupos étnicos, mas sim, estudar os comportamentos e formas de curar dos diversos grupos, desde os que descendem dos quilombolas, dos indígenas, dos ribeirinhos e de todas as misturas que estes grupos tiveram entre eles e com os colonizadores, misturas estas que ainda podemos perceber através da oralidade, por isso a importância do registro desta cultura e do documentário.

Na pesquisa-piloto você conseguiu levantar quais as doenças mais comuns na região? Como elas são tratadas, com quais ervas/medicamentos naturais?

As primeiras doenças descritas pelos colonos e também por consequência dos contatos entre os ameríndios com estes colonos, conforme salienta Flávio Edler (no livro Boticas e Pharmacias: uma história ilustrada da farmácia no Brasil) eram "a varíola, a disenteria, a malária, febre tifoide e paratifoide, as boubas, o maculo (fístula anal), a sífilis, a lepra, a elefantíase-dos-arábes (filariose) e a opilação (ancilostomíase)". Já no final do século 19 e começo do século 20, período que compreende o recorte temporal da pesquisa em questão, outros estudos também alarmavam a população científica e política foram os dos médicos Alfredo da Matta, João Coelho de Miranda Leão e Wolferitan Thomas, que no ano de 1908, na cidade de Manaus, publicaram os dados sobre as doenças mais comuns enfrentadas na capital do Amazonas e em suas zonas periféricas (Itacoatiara, Barreirinha, Parintins, Maués), eram estas a peste bubônica, a hanseníase, as doenças venéreas e o impaludismo (malária). Também se mantinha o beribéri, a febre amarela, a febre hemogrobinúrica. Atualmente, as doenças mais enfrentadas ainda são a malária, a dengue, a febre amarela, a ancilostomíase e a leishmaniose, conforme relatos de moradores das regiões pesquisadas. Ainda hoje sabemos que muitos moradores locais buscam a cura através das ervas e entendem os sintomas com os seus conhecimentos já herdados através de seus familiares. Assim como a Medicina Preventiva nos auxilia a evitar certos hábitos e lugares, a profilaxia entre os moradores também é exercida, evitando assim, no caso da malária, determinados horários em que o mosquito transmissor ataca e os locais onde este fica. Dado o fato da pesquisa ainda estar em processo de levantamento de dados, os resultados ainda são preliminares e iniciais. Mas podemos citar os exemplos de algumas cascas de árvores ou sua seiva que são utilizadas para amenizar algumas doenças, tais como a árvore Amapá que trata sintomas da tuberculose, o chá da casca do Açaí que ajuda a diminuir a anemia, a seiva da árvore de Quinina que misturada com água ajuda na prevenção da malária por causa de sua concentração no organismo, muito difundida na região amazônica.

Vi nos seus objetivos específicos que será analisada inclusive a forma como é extraída a matéria-prima dos medicamentos. Teve algum deles que chamou mais sua atenção?

Sim. Como procedimento de pesquisa de campo, será feito um acompanhamento e registro destas extrações como forma do saber das comunidades na manutenção desta floresta. Ao estudarmos os recursos terapêuticos obtidos através da floresta (mata nativa), estes nos explicitam a relação do homem com a natureza e a dependência deste para com esta, fomentando o entendimento sobre os saberes medicinais da terra e manutenção da paisagem pelos indígenas, caboclos e ribeirinhos. Até o presente momento me chamou a atenção a retirada de seiva e a mistura de quinina para auxiliar no combate a malária, não somente pela forma de se fazer, mas pelos relatos de moradores que dizem nunca terem tido esta doença na vida por tomarem este chá todos os dias.

Para você, que é do sul do país, imagino que tenha visto ervas que nunca viu. Alguma lhe chamou a atenção, deu vontade de beber (o chá)?

Certamente. Meu contato com o Norte do país já vem acontecendo desde o ano de 2011 quando iniciei minhas atividades como arqueóloga na Amazônia. Desde então tenho tido apreço pelos modos de vida, comportamentos, linguagem além da culinária e suas propriedades terapêuticas, muitas vezes, como a caldeirada de piranha, que segundo moradoras da região próxima a Nhamundá, ajuda na fertilidade. A diferença entre o sul e o norte é imensa. Mas em alguns casos, como as receitas caseiras de chás para resfriados e dores de barriga, podemos dizer que se assemelham um pouco. Entretanto, pelo porte de algumas espécies de árvores, a diferença entre o Sul e o Norte só aumentam. Sempre fui curiosa, logo a vontade de experimentar algo da região sempre esteve presente. Com esta última viagem, todas as ervas, cascas ou seivas de árvores entregues ao grupo pelos guias em Careiro da Várzea (AM) eu acabei experimentando. Por seu gosto mais adocicado, a seiva da árvore Amapá foi a que mais me agradou, além da sua forte história sobre sua terapêutica contra a tuberculose.

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