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A terra não é do homem

JB, Outras Opiniões, p. A17
Autor: MARZAGÃO, Augusto
30 de Out de 2005

A terra não é do homem

Augusto Marzagão
Jornalista

Não quero ser pregoeiro do apocalipse. Longe de mim o pessimismo malsão dos que olham o mundo com lentes roxas. Mas temo pelo que possa acontecer ao planeta Terra. Em particular, o que possa acontecer à espécie humana no planeta Terra.
Digo isso há mais de vinte anos. Vou repetir em todos os espaços que tiver para escrever, falar, agir. Sei que não sou a única voz. No mundo todo há vozes fortes e límpidas que dizem a mesma coisa. O assunto está na pauta de entidades nacionais, organizações internacionais, ONGs multinacionais, sítios virtuais. Mas nada disso adiantou até aqui. Nada sofreia a atividade predatória do homem. Ele continua convencido que o espaço que o circunda é o quintal da sua casa. Que a Terra é sua propriedade, sobre a qual pode exercer o poder absoluto que se sobrepõe a tudo. Parece ignorar que somos parte de um todo. Talvez a parte menos importante, ou mais dispensável. Um simples fio no tecido da rede da vida, como disse o índio Seattle, há mais de 150 anos. Parece ignorar que o mundo que nos cerca nasceu antes de nós e tem um peso muito maior que o nosso para o equilíbrio do universo.
Claro que não se pode querer que a vida pare, que o chamado progresso estanque, que encaixemos botoques no beiço e voltemos à selva ancestral. Ninguém pretende desativar todas as conquistas alcançadas no curso dos séculos. Que seríamos, hoje, sem elas? Sem as vacinas, a penicilina, os transplantes, as experiências laboratoriais em curso, os tipos móveis de Guttenberg, o rádio, a televisão, as lucubrações freudianas, as sonatas de Beethoven, o piano de Chopin, os filósofos, o gênio de Shakespeare, Goethe, a revolução joyciana, Proust, o canto libertário de Castro Alves, os veículos automotores, o avião, os satélites, o telefone fixo e o celular, o computador, a internet. Nada, provavelmente. Ou melhor, estaríamos paralisados no tempo e no espaço -- bonecos de barro num paraíso artificial, com palmeiras de papel crepom e bichinhos de celulóide.
Mas o que seremos, embora com tudo de bom que alcançamos, se a natureza responder com agressão a agressão que praticamos contra ela? Não temos exata noção, apesar da nossa sapiência, do poder e da extensão do arsenal de que ela dispõe. Ventos, furacões, tornados, chuvas ácidas, tsunames podem ser os mais inofensivos ''artefatos'' do seu poderio bélico. Quem nos garante que armas muito mais poderosas, muito mais destruidoras não aguardam nas entranhas o momento de mostrar que somos apenas frágeis mortais?
Façamos silêncio para alguns minutos de meditação. Esqueçamos por instantes nossas desavenças, nossa cor partidária, nossos interesses mais ambiciosos. Superemos por momentos os complexos de superioridade e inferioridade que dividem nosso mundo entre os que têm o poder do dinheiro e das armas e os que vivem fragilizados pelo subdesenvolvimento. Unamo-nos todos - ricos, pobres e remediados, negros, brancos e amarelos -- unamo-nos todos, mesmo os que têm fome e os que já estão saciados, e de mãos dadas, o coração limpo, façamos uma coisa que é nosso privilégio, pelo menos supomos que seja nosso privilégio, mas não usamos com a freqüência desejada, que é pensar. Vivamos um minuto sem a carga de interesses que movem nossos passos. Façamos o que é preciso fazer, que todos sabemos que é preciso fazer. Mas façamos para valer, de verdade, com toda a verdade de que ainda somos capazes, e não apenas enquanto o eco de gritos de socorro chega aos nossos ouvidos e presenciamos, no bem-bom de nossas poltronas, os horrores de uma tragédia fartamente anunciada, que cresce sob nossos pés.
Nunca vou me cansar de repetir isso tudo. Sou teimoso. Não desisto das coisas em que acredito. Não me cansam os caminhos longos, os atalhos tortos, os obstáculos de transposição difícil. Nem mesmo me importa pregar no deserto, se for o caso.
Sempre que digo essas coisas ouço uma voz feminina que vem de longe, de um passado cada dia mais remoto, mas que permanece claramente audível na minha memória. Sou ainda um menino. Estou em Barretos, no quintal da casa onde nasci, experimentando o fio de um pequeno canivete no lenho de uma árvore. A voz é de minha mãe: ''Não faça isto, meu filho. Não machuque a árvore. As árvores têm vida, como nós. Tudo que está na terra tem vida.''
Tinha razão, minha mãe: tudo tem vida. A natureza em nosso entorno tem vida. Cada planta, cada curso d'água, cada punhado de terra. Têm a vida que estamos consumindo, que teimamos em degradar.

JB, 30/10/2005, Outras Opiniões, p. A17

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