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Terra de 'todos' é terra de ninguém

O Globo, Sociedade, p. 24
25 de Jul de 2014

Terra de 'todos' é terra de ninguém
Lentidão na cessão de florestas públicas a povos nativos contribui para desmatamento, diz estudo

Renato Grandelle
Enviado especial
renato.grandelle@oglobo.com.br

OAXACA, MÉXICO - Em outubro, quando assumir o Palácio de Bogor, o novo presidente da Indonésia, Joko Widodo, terá em sua pauta uma ambiciosa promessa de campanha. Eleito no início desta semana, Widodo assegurou que seu governo vai restaurar 2 milhões de hectares de florestas degradadas. É um esforço necessário em um país que, entre 2000 e 2012, perdeu 6 milhões de hectares de mata, uma área quase igual ao tamanho da Irlanda. A nação asiática é um exemplo do descaso com as comunidades tradicionais e indígenas. A burocracia que paralisa a legalização de terras para essas populações (por lá, 96% das áreas verdes ainda estão nas mãos de um Estado incapaz de cuidar delas) e a liberdade de ação de empresas poluentes são a fórmula para a crescente emissão de gases-estufa, o motor das mudanças climáticas.
Nos locais em que as comunidades não têm seus poderes legais reconhecidos, as florestas são mais vulneráveis ao desmatamento. A conclusão é do estudo "Garantindo direitos, combatendo a mudança climática", do Instituto de Recursos Ambientais (WRI) e da Iniciativa para Direitos e Recursos (RRI). O relatório avaliou a liberdade de atuação dos povos tradicionais em 14 países. A Indonésia ocupa a lanterna do ranking. No entanto, mesmo os líderes - Brasil, México e Guatemala - enfrentam problemas.
- Existe um impasse, pois o governo quer proteger os interesses nacionais e decidir o que fazer com as florestas, mas as comunidades locais reivindicam os seus direitos - conta o diretor do WRI, Robert Winterbottom. - Todos querem usufruir dos bens econômicos gerados nesses ecossistemas.
PREOCUPAÇÃO TAMBÉM NA ÁFRICA E NA AMAZÔNIA
O Supremo Tribunal da Indonésia determinou que as florestas não devem ser propriedades do Estado, mas a decisão foi ignorada pelo governo.
- Cerca de 50 milhões de pessoas moram nos bosques e precisam deixar suas casas porque grandes indústrias, como a da celulose, podem entrar na floresta e fazer o que bem entendem - lamenta David Kaimowitz, diretor de Recursos Naturais e Desenvolvimento Sustentável da Fundação Ford, que financiou o estudo.
Segundo Kaimowitz, a marginalização das populações tradicionais também ocorre em países como Congo, Camarões e em trechos da Amazônia, onde atuam mineradoras e petrolíferas.
Outro problema brasileiro é a lentidão para reconhecer as comunidades tradicionais. No ano passado, apenas a Terra Indígena Kayabi, no Pará, concluiu esse processo.
- Essas operações são demoradas porque o governo não tem capacidade administrativa para avançar - assinala Kaimowitz. - Além disso, é preciso lidar com a oposição de grupos poderosos, como ruralistas e industriais.
TRAFICANTES EXPULSAM POPULAÇÃO
As comunidades na América Central também contam com territórios ameaçados. No Norte da Guatemala, a região de Laguna del Tigre foi tomada por traficantes, e as concessões de proprietários de terra da região foram cassadas pelo governo, que instalou um batalhão militar no local.
O relacionamento com o Estado é sempre um assunto delicado para os povos tradicionais. Como a concessão de terras guatemaltecas precisa ser renovada a cada 25 anos, as populações indígenas têm de lidar com o humor dos políticos.
- Precisamos fazer um lobby a cada vez que há mudanças no governo - explica Juan Ramón Girón, subdiretor da Associação de Comunidades Florestais de Petén (Acofop), que atua no Norte do país. - Em geral, nosso trabalho é reconhecido. No entanto, algumas decisões são tomadas por falta de informação ou para satisfazer interesses de financiadores de campanhas.
Ao contrário dos companheiros do país vizinho, a população de comunidades tradicionais mexicanas tem suas terras por tempo indeterminado. Sua soberania, porém, está ameaçada.
- A terra é dos povos indígenas, mas o que está sob ela é monopólio do governo - explica Iván Zuñiga, coordenador do Conselho Civil Mexicano para a Silvicultura Sustentável. - O Estado tem demonstrado interesse em explorar os recursos do subsolo, concedendo-os a empresas de água, gás natural e petróleo.
O Parlamento mexicano tem debatido reformas que permitam essas concessões. Sua aprovação, dizem especialistas, terá impactos ambientais em áreas protegidas, como a região do Golfo.
O estado de Oaxaca, no Sul do país, é testemunha de como os setores industriais podem manchar regiões habitadas por populações tradicionais. Uma empresa de mineração canadense, instalada há 200 anos na região de Sierra Norte, contaminou 13 mananciais. As comunidades locais reivindicam a área ocupada pela indústria, que é de 50 mil hectares. Nas grandes florestas analisadas pelo estudo, durante o bate-boca entre Estado, setor privado e povos indígenas, muita água ainda vai passar por debaixo da ponte.

O Globo, 25/07/2014, Sociedade, p. 24

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