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Tensão no Maranhão

CB, Brasil, p.8
04 de Jun de 2005

Tensão no Maranhão
Índios guajajara da aldeia Bacurizinho, em Grajaú, denunciam que estão sendo ameaçados de morte por grupos de extermínio ligado a fazendeiros. Cimi pede a abertura de inquérito pela PF

No Maranhão, onde vivem mais de 11 mil índios guajajara, a relação entre o povo e os não-índios continua tão tensa quanto no século 17, quando missionários franceses tentaram estabelecer os primeiros contatos. Há duas semanas, o assassinato do cacique João Araújo Guajajara, 70 anos, dentro da terra indígena de Bacurizinho, em Grajaú (a 600 quilômetros de São Luiz), intensificou a animosidade entre brancos e índios. Revoltados, os guajajara atearam fogo na ponte sobre o rio Mearim, roubaram carros e alimentos e destruíram fornos de carvoarias. Agora, denunciam que estão sendo ameaçados de morte por um grupo de extermínio, supostamente contratado por fazendeiros, madeireiros e carvoeiros da região. "O clima está preocupante", alerta dom Francisco Masserdotti, bispo de Balsas e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Ele pediu a abertura de inquérito pela Polícia Federal. Até agora, apenas a Polícia Civil abriu investigaçao. As cerca de 60 pessoas que vivem na aldeia de Kamihaw, onde o índio foi assassinado, temem uma nova investida por parte dos que invadiram o local no dia 21. Segundo relato dos índios, no final daquela tarde, dez homens chegaram alcoolizados e armados na aldeia. Teriam feito provocações e disparos para o alto, até que decidiram transformar os índios em alvo. O filho do cacique, Wilson, 22 anos, também foi atingido na cabeça, mas resistiu, assim como outro guajajara baleado na perna. A jovem D.S, 16, teria sido estuprada, embora o exame de corpo de delito não tenha sido realizado.
Um fazendeiro da região, Milton Alves da Rocha, foi preso em flagrante no dia seguinte e assumiu que estava no local. Milton Careca, como é conhecido, negou, porém, que tenha sido o autor dos disparos. Ele também protegeu dois de seus filhos, apontados pelos índios como os assassinos de João Araújo. Os suspeitos estão foragidos.
Bloqueio
Na semana seguinte ao homicídio, os guajajara voltaram a ganhar destaque na imprensa local por outro conflito, ocorrido às margens da rodovia BR-226. "Uma história não tem nada a ver com a outra", esclarece Rosimeire Santos, coordenadora do Cimi no Maranhão. A construção da estrada dividiu o território guajajara em duas partes, Cana Brava e Bacurizinho. Segundo os índios, a rodovia levou para o local o tráfico de drogas e a prostituição. Em 27 de maio,segundo testemunhas, eles interditaram a estrada federal, assaltaram caminhões e ameaçaram caminhoneiros. A Polícia Federal foi acionada e, três dias depois, a estrada foi desobstruída.
"Estão colocando os índios como vilões, mas eles são as verdadeiras vítimas", defende dom Francisco Masserdotti. "Não apoiamos violência nem de um lado nem de outro, nem queremos santificar os índios, mas estamos do lado da vida". Segundo o bispo, é preciso levar em consideração o contexto histórico da luta dos guajajara pela terra, intensificada a partir dos anos 50 do século passado.
A explosão de latifúndios no centro do Maranhão levou posseiros a explorar as terras indígenas, cobertas pelas florestas altas da Amazônia e por matas de cerradão (de transição entre florestas amazônicas e cerrados).
Na área de Cana Brava, com 137.329 hectares, de 1952 a 1995 os índios tiveram de conviver com posseiros que fundaram o povoado de São Pedro dos Cacetes. O período foi marcado por batalhas sangrentas, com centenas de mortes em ambos os lados.
Em 1979, a grilagem no Maranhão começou a se intensificar, juntamente com a ação de carvoarias ilegais. Os territórios indígenas foram invadidos aos poucos e, naquele ano, os índios Antônio Leão e Valdomiro Guajajara foram mortos por fazendeiros. O corpo do primeiro foi esquartejado, e o de Valdomiro, queimado, para evitar a identificação. Ninguém foi responsabilizado oficialmente pelos homicídios.
No começo da década de 1980, o governo lançou o Programa Grande Carajás, que incentivava a industrialização e a exportação de matéria-prima na Amazônia Oriental. Com atraentes incentivos fiscais, madeireiros começaram a explorar as florestas do Maranhão, onde surgiram muitas madeireiras ilegais.
Na mesma década, o Ministério da Justiça demarcou e homologou a terra indígena Bacurizinho, onde vivem quatro mil pessoas, com 82.432 hectares. O primeiro estudo antropológico, porém, indicava que a área tinha 145 mil hectares. Instituído em 2001, o processo de revisão de limites está parado na Fundação Nacional do Índio (Funai) e não há notícias sobre o laudo. O Correio tentou entrar em contato com a Funai diversas vezes, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.

Omissão
"Existe prova de que essas terras eram ocupadas pelos nossos parentes. Perto de onde aconteceu o assassinato, tem um cemitério indígena, fora da reserva. Hoje, os madeireiros destroem o lugar onde enterramos nossos antepassados", lamenta o cacique Itamar de Souza Guajajara, 43 anos. "Os fazendeiros querem acabar com nosso povo, mas somos guerreiros, resistentes. Não vamos desistir dos nossos direitos nem que a gente tenha de morrer", diz. Presidente do Cimi, dom Francisco Masserdotti acusa o governo de omissão em relação aos índios guajajara. "Há uma força muito grande do agronegócio, impedindo que os direitos dos índios sejam garantidos. O agronegócio não pode ser mais importante do que a vida", critica. De acordo com o bispo, seria preciso manter um posto policial em Bacurizinho, enquanto o processo de demarcação não terminar. Ele também pede a investigação e a punição das outras nove pessoas que invadiram a aldeia Kamihaw no dia 21 de maio.
O cacique Tomáz da Silva Guajajara, que representa 49 aldeias maranhenses, diz que pretende visitar os índios de Bacurizinho para pedir que eles tenham calma e não se envolvam mais em conflitos. "Não somos de briga, só queremos a nossa terra", garante.
Ele diz que a ação dos guajajara, que queimaram a ponte e saquearam alimentos, foi uma maneira de tentar chamar atenção das autoridades. "Eles estavam desesperados porque denunciaram a situação e não aconteceu nada", acusa.
O líder indígena também reclama do impacto ambiental provocado pelas madeireiras ilegais e pelos carvoeiros. Dom Francisco Masserdotti lembra que algumas localidades próximas à terra indígena estão desertificadas. "A gente não agüenta mais destruição e exige a preservação do meio ambiente", diz o cacique Tomáz Guajajara.

Massacre em 1901
Barra do Corda (MA), 13 de março de 1901. As orações matinais na capela do internato são interrompidas por gritos de guerra. Quatro padres e sete freiras são assassinados com tiros e golpes de tacapes por cerca de 400 índios guajajara. Algumas religiosas conseguem fugir, seguidas por meninas brancas, mas a capela transforma-se em uma poça de sangue. É o início de uma chacina onde morrerão 200 pessoas, incluindo crianças e adolescentes.
O episódio, um dos mais sangrentos da história recente do Maranhão, foi motivado pela revolta dos indígenas contra o trabalho de evangelização dos missionários, que exigiam a retirada das crianças das aldeias para catequizá-las no seminário, localizado em Alto Alegre.
As estradas que davam acesso a Barra do Corda e Grajaú foram bloqueadas pelos índios, que tomaram conta da sede da Missão de São José da Providência de Alto Alegre. De lá, passaram dois meses saqueando fazendas, matando agricultores e viajantes. Assim como aconteceu na Guerra de Canudos, várias expedições de voluntários e membros do exército tentaram, sem sucesso, invadir a missão e render os índios guajajara.
Somente três meses depois, chegaram as tropas enviadas pelo governador Torreão da Costa, que mataram cem índios. Torreão exigiu que a matança parasse e que os religiosos devolvessem as crianças indígenas a seus pais, o que esfriou os ânimos dos guajajara. Vinte foram presos, incluindo o líder Caboré, mentor do massacre. O guerreiro indígena morreu na prisão, dois anos depois. Em 1905, a Justiça de Barra do Corda absolveu os outros 19 índios que haviam sido presos.
A história foi romanceada pelo escritor maranhense Olímpio Cruz, em meados dos anos 80. Nascido em Barra do Corda, Cruz viveu vinte anos entre os índios guajajara, kanela e gavião (todas etnias que vivem no Maranhão), trabalhando como inspetor do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI), hoje Funai. O obra, chamada Cauiré Imana, o cacique rebelde, foi publicada em Brasília ela editora Thesaurus. (PO)

LINHA DO TEMPO
16 de maio Líderes da aldeia Bacurizinho, em Grajaú, alertam a Funai que receberam ameaças de morte e de invasões
21 de maio José Araújo Guajajara, de 70 anos, é morto a tiros na aldeia. O filho, Wilson, também é atingido, mas resiste. Outro índio é baleado na perna. A menor D.S, 16 anos, é estuprada por um dos dez invasores da aldeia.
22 de maio O fazendeiro Milton Alves da Rocha é preso em flagrante, acusado de participação no crime. Dois filhos dele são suspeitos de terem disparados, mas conseguem escapar da polícia.
23 de maio Em represália ao crime, 70 índios queimam uma ponte sobre o rio Mearim, saqueiam fazendas, roubam veículos e ateiam fogo em mil sacas de arroz.
27 de maio 200 guajajara interditam a BR-226, assaltam caminhoneiros e ameaçam incendiar caminhões. Quatro são presos.
30 de maio A PF consegue desobstruir a estrada durante uma operação. Armados com pistolas e escopetas, índios ameaçam reagir. A operação termina sem conflitos.

CB, 04/06/2005, p. 8

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