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Tenotã-Mõ para abrir caminho

Diário do Pará, Caderno d, p. D4
Autor: PINTO, Elias Ribeiro
21 de Ago de 2005

Tenotã-Mõ para abrir caminho
Livro alerta para as conseqüências dos projetos hidrelétricos no rio Xingu

Elias Ribeiro Pinto

O livro Tenotã-Mõ, para seu organizador, Arsenio Oswaldo Sevá Filho, tem uma missão: a de servir de instrumento "para ampliar os debates públicos sobre as hidrelétricas em geral e sobre a Amazônia, seus povos e seus recursos". E um destino manifesto: o de "contribuir para fundamentar as razões, direitos e propostas daqueles que seriam prejudicados, caso fossem concretizados os projetos hidrelétricos planejados pelo governo federal e por grandes empresas".

A publicação se originou de um "Painel de especialistas e de entidades sobre os projetos hidrelétricos no rio Xingu", formado desde 2002 por iniciativa conjunta da entidade Internacional Rivers Network, com a participação das associações populares e sindicais da região de Altamira, agrupadas no MDTX - Movimento pelo Desenvolvimento da Transamazônica e do Xingu.

A fase de pesquisas, de elaboração de textos e de cartografias, que reuniu mais de vinte profissionais de várias áreas, brasileiros e de outras nacionalidades, foi coordenada por Oswaldo Sevá, professor do Departamento de Energia da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp e pesquisador na área de energia e meio ambiente com trabalhos de campo em Tucuruí e na Volta Grande do Xingu, entre outras usinas hidrelétricas.

A preparação do volume teve a colaboração de outras quatro entidades: do ISA (Instituto Socioambiental), da Fase (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional), do Projeto Brasil Sustentável e Democrático, e da Comissão Pró-Índio de São Paulo, que já em 1988 havia editado o primeiro livro sobre os projetos hidrelétricos do Xingu e os povos indígenas habitantes da região.

Dividido em quatro partes (Os Xinguanos e o Direito; Eletricidade Para Quem? Às Custas de Quem?; Natureza: Avaliação Prévia do Prejuízo; e O Antiexemplo Ali Perto. O Povo Ameaçado e Confundido) e 13 capítulos, Tenotã-Mõ reúne artigos de paraenses como o jornalista Lúcio Flávio Pinto, autor de "Grandezas e misérias da energia e da mineração no Pará", e do procurador da República Felício Pontes Jr. e da antropóloga e historiadora Jane Felipe Beltrão, que assinam o artigo "Xingu, barragens e nações indígenas". Entre os pesquisadores estrangeiros com destacada atuação em instituições brasileiras, Robert Goodland estuda a "Evolução histórica da avaliação do impacto ambiental e social no Brasil: sugestões para o complexo hidrelétrico do Xingu", enquanto Philip M. Fearnside comparece com "Hidrelétricas planejadas no rio Xingu como fontes de gases do efeito estufa: Belo Monte (Kararaô) e Babaquara (Altamira)". O organizador, Oswaldo Sevá, assina diversos artigos.

Na "Mensagem de Abertura", dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu, lembra de sua já longa atuação na área, onde chegou na década de 60 e se impressionou com o que viu: "Vindo da Europa, fiquei extasiado contemplando um dos mais espetaculares espaços que Deus criou. Será um último resto do paraíso perdido?"

Testemunha da atuação dos militares na região, em particular durante a presidência do general Emilio Garrastazú Medici, representada no lema "Integrar para não entregar", da qual a construção da Transamazônica era a expressão máxima, dom Erwin, à frente da Igreja do Xingu, "tomou a iniciativa de denunciar as ameaças que pairavam sobre a região do Xingu e seus povos".

Hoje, diz, a ameaça vem do projeto agora denominado de usina hidrelétrica de Belo Monte. "O nome 'Kararaô', o grito de guerra, foi substituído pelo bucólico 'Belo Monte' para que o povo do Xingu não lembrasse mais o facão da Tuíra e os rostos pintados de urucum dos Kayapó contrários à hidrelétrica."

Segundo o bispo, "políticos estaduais e municipais de pouca cultura e muita fanfarrice encheram a boca proclamando a UHE Belo Monte a salvação do oeste do Pará e pregando que o Brasil necessita deste impulso energético para evitar o colapso de sua economia". Mas, conclui, "Deus seja louvado, um grupo de especialistas, professores e pesquisadores de renome, apoiados por instituições e ONGs e a Igreja do Xingu, organizaram este livro que, sem dúvida, desmistifica todo o discurso bombástico do governo brasileiro e das empresas interessadas na barragem do Xingu".

Leia, a seguir, o texto que abre o livro, "Apresentação: resumos técnicos e históricos das tentativas de barramento do rio Xingu", assinado por Glenn Switkes, jornalista da International Rivers Network, editora do livro, e Oswaldo Sevá Filho.

Apresentação
Glenn Switkes e Oswaldo Sevá
Este é um livro feito de capítulos e notas técnicas inéditas, e de alguns trechos extraídos de trabalhos já publicados, que foram assinados por 20 pessoas que acompanham de perto o problema dos projetos hidrelétricos no rio Xingu e na região amazônica. É uma obra de militantes de entidades, de jornalistas e de pesquisadores de várias áreas acadêmicas, participantes de um painel de especialistas e de entidades por nós organizado. Esperamos que seja uma ferramenta fundamental para ampliar e aprofundar o debate sobre a proposta da construção do Complexo Hidrelétrico do Xingu.
Nosso livro é para atualizar um embate de mais de vinte anos.

Nosso compromisso é com as pessoas que vivem e viverão no vale do Xingu, especialmente os que estão ameaçados por esses projetos. Estes milhares de moradores urbanos e rurais, os ribeirinhos, beiradeiros de todo tipo, as muitas aldeias indígenas e seus muitos descendentes, desaldeiados, soltos pelo mundo, misturados com os demais brasileiros, quase todos vão sendo cercados em seu pedaço amazônico.

Cercados lá onde já viviam há muito, e lá aonde chegaram há mais tempo, nessas glebas que transformaram em roças e pomares, em seus recantos cheios de riquezas cobiçadas pelos predadores que a especulação move, que o desgoverno acomoda.

São levas de gentes e gerações que se entrecruzam, os xinguanos antigos como os vários grupos Kaiapó, os Parakanã, os Araweté e os Juruna, também os seringueiros do curto segundo ciclo da borracha (nos anos 1930, 1940), e xinguanos recentes como os colonos e fazendeiros dos travessões da Transamazônica, os pobres e os peões, os comerciantes e artesãos que já estavam e os que vêm chegando a Altamira, a São Félix do Xingu e tantas cidadezinhas e vilarejos.

Todos vão tendo agora que conviver, que se aliar com - ou explorar - os demais pobres errantes que vão à frente da expansão, essa infantaria que vai garimpando ouro, estanho e pedras, serrando árvore, abrindo estrada, fazendo pasto, quase todos trabalhando pros donos, tentando sobreviver, e muitos ainda conseguindo enviar um pouco de renda pros seus que ficaram, pros que deles dependem.

Nesse meio de mundo, chamado de Terra do Meio, um Brasil fervilhante e conflituoso, onde sempre cabe cometer mais uma pilhagem - ou então criar grandes oportunidades nesta imensa continuidade fragmentada por seus enclaves e por eixos conectados aos circuitos internacionais, pontilhada de pistas de pouso, tracejada de rotas fluviais, um conjunto bem distinto daquela Amazônia distante, paradisíaca, despovoada ou com tão pouca gente, que tudo se manteria em equilíbrio na natureza intocada.

Esse livro trata, sim, de um dilema real, um drama nacional, uma encruzilhada para a humanidade: para onde vai essa Amazônia ainda brasileira, mas nem tanto? Que chances terão esses povos? Que possibilidades terão essas matas, esses igapós, igarapés e grandes rios, e todos os seus bichos?

Nosso compromisso também é com a busca interminável e acidentada da verdade mais objetiva dentro da desinformação crescente promovida pelos próprios projetistas e interessados em tais projetos. Tivemos que lidar quase sempre com a verdade parcial segmentada e com a manobra viciada que forja grande parte da informação empresarial e governamental; tivemos que lidar com as versões explícitas e as implícitas, as razões assumidas e as finalidades escondidas, as declarações retumbantes e as vazias. Tentamos separar os dados corretos dos incorretos, discernir algo de razoável em meio ao sem propósito e surreal, à mistificação que tais megaprojetos desencadeiam.

Reconhecemos também como predecessor deste livro o volume As Hidrelétricas do Xingu e os Povos Indígenas, publicado em 1988 pela Comissão Pró-Índio de São Paulo. Vários autores dos textos nesta publicação participaram na tentativa histórica para elucidar a problemática das propostas para hidrelétricas no Xingu naquela época.

Passados dezessete anos, a idéia de barrar o Xingu, duas vezes derrotada, tenta se concretizar ainda uma vez. Não estamos nos opondo frontalmente a nada, mas fazemos questão de poder pensar de modo distinto. Com parcos recursos e muita disposição, nos empenhamos para destacar e tornar públicas as avaliações distintas das oficiais e as outras visões do vale do rio Xingu e de sua gente. (Texto de apresentação do livro Tenotã-Mõ)

A origem do nome
"A foto que retratou a cena em que a índia Tuíra esfregou um facão na cara de José Antônio Muniz Lopes, então diretor de engenharia da Eletronorte, percorreu o mundo, tornando-se símbolo e uma espécie de logotipo da hostilidade total dos índios em relação às projetadas barragens", registra dom Erwin Kräutler na abertura de do livro Tenotã-Mõ. A histórica cena entre a índia Kaiapó e o engenheiro maranhense ocorreu durante o I Encontro das Nações Indígenas do Xingu, realizado em Altamira, de 20 a 25 de fevereiro de 1989. As nações indígenas queriam debater os efeitos, sobre suas terras, das barragens projetadas para o rio Xingu, no caso, a usina de Kararaô, nome da primeira obra projetada pela Eletronorte, na Volta Grande do Xingu. O encontro teve grande repercussão no Brasil e no exterior, não só por seu próprio ineditismo e pela cena do facão, mas também pela parceria ecológica e musical do cacique Raoni com o roqueiro Sting.

No dia em que o engenheiro Muniz compôs a mesa diretora dos trabalhos no ginásio coberto de Altamira, vários índios vieram se manifestar ali mesmo em frente à mesa, alguns falando em sua língua ao microfone e sendo traduzidos, observa num de seus artigos Oswaldo Sevá Filho. Tuíra, prima do então ativo Paulo Paiakan, se aproximou gritando em língua Kaiapó e gesticulando forte com o seu terçado (tipo de facão com lâmina bem larga, muito usado na mata e na roça). Mirou o engenheiro, seu rosto redondo de maçãs salientes, traços de algum antepassado indígena, e pressionou uma e outra bochecha do homem com a lâmina do terçado, para espanto geral. Segundo Sevá, um gesto inaugurador.
Esta situação merece uma palavra-chave dos índios Araweté da Terra Ipixuna, no médio Xingu, recolhida pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro no livro Araweté, o Povo do Ipixuna, cujo trecho transcreve-se a seguir.

'Tenotã-Mõ significa' o que segue à frente, o que começa'.

Essa palavra designa o termo inicial de uma série: o primogênito de um grupo de irmãos, o pai em relação ao filho, o homem que encabeça uma fila indiana na mata, a família que primeiro sai da aldeia para uma excursão na estação chuvosa. O líder araweté é assim o que começa, não o que comanda; é o que segue na frente, não o que fica no meio.
Toda e qualquer empresa coletiva supõe um Tenotã-Mõ. Nada começa se não houver alguém em particular que comece. Mas entre o começar do Tenotã-Mõ, já em si algo relutante, e o prosseguir dos demais, sempre é posto um intervalo, vago mas essencial: a ação inauguradora é respondida como se fosse um pólo de contágio, não uma autorização."

Diário do Pará, 21/08/2005, Caderno d, p. D-4

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