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Temporada de fogo

Estado de S.Paulo (São Paulo-SP)
Autor: Lúcio Flávio Pinto
28 de Ago de 2002

Multiplicação de queimadas e desmatamentos projetam a eclosão de novos conflitos.

O verão de 2002, com meio caminho andado, promete ser mais uma temporada de sangue e destruição na Amazônia. Os satélites, a partir do alto, estão emitindo sinais de alerta sobre a multiplicação de queimadas na floresta. Os fiscais do governo, em terra, registram índices recordes de desmatamento. Os sensores sociais projetam a eclosão de conflitos e de mortes como seu desdobramento. É como se uma lava de vulcão humano se espraiasse no rumo oeste, espalhando em sua passagem os mesmos testemunhos da pilhagem. É como se as frentes de expansão da sociedade nacional se alimentassem de sua própria irracionalidade, sem incorporar o aprendizado da experiência, a cara e valiosa lição dos erros. Behemoth de mãos dadas com Leviatã.

Mudanças, na verdade, há. Só que, invariavelmente, para pior, mesmo quando recobertas por um glacê de melhoria. Se não em tudo, pelo menos quanto ao bem mais nobre da Amazônia: a sua floresta. Apesar de tudo o que vem sendo feito em educação ambiental, em apoio a formas sustentáveis de produção, em estímulo à certificação ecológica, em linhas de crédito orientadas e na adoção de princípios éticos empresariais, o resultado mais visível do avanço da fronteira econômica é a diminuição da área coberta pelas exuberantes e inestimáveis florestas amazônicas. Sem que seu lugar seja ocupado por qualquer outra forma de vida substitutiva ou compensatória.

A ONG Amigos da Terra, por exemplo, uma das mais atuantes na região, está divulgando um relatório (Legalidade Predatória) que começa por um fato auspicioso, a redução da ilegalidade na extração de madeira na Amazônia, e chega a uma conclusão desastrosa: essa legalidade não quer dizer evolução. Os madeireiros da Amazônia evoluíram muito quanto à legalização de suas atividades, que, alguns anos atrás, estavam quase integralmente à margem da lei. Mas suas práticas, se já podem ser consideradas majoritariamente legais do ponto de vista formal, têm que ser classificadas como indesejáveis por serem predatórias. A formalidade das normas está sendo atendida. Mas ela não se traduz por melhoria nas condições reais de produção. O espelho reflete o espelho.

Por causa da fiscalização oficial, do custo da corrupção, da pressão da opinião pública e de outros fatores, um número crescente de madeireiros procurou legalizar-se. Calcula a ONG que 75% da madeira da Amazônia "têm, hoje, cobertura legal por meio de autorizações de desmatamento". No entanto, apenas 5% são obtidos através de planos de manejo regulares, permanecendo como decididamente ilegais 20% do total, uma inversão do quadro dominante até algum tempo atrás, da ilegalidade aberta e franca.

Só o doutor Pangloss ou Cândido, o otimista, poderiam comemorar essa situação. Legalidade não se traduz por práticas florestais desejáveis. "A produção madeireira sustentável da Amazônia é estimada hoje em apenas 1,7% do volume produzido", diz o documento dos Amigos da Terra. Assim, o crescimento da produção de madeira é um saque a descoberto sobre reservas que não se renovam. Um dia vão acabar.

As árvores de maior valor econômico, e, nos casos mais graves - infelizmente, numerosos -, toda a cobertura vegetal até então existente, desapareceram do vale do Araguaia-Tocantins ao longo de quatro décadas de avanço da pecuária, da agricultura e do próprio extrativismo vegetal. Era de se presumir que, em nome da evolução, o enredo se modificasse na etapa seguinte da corrida rumo oeste. Ao que parece, entretanto, no Xingu mudaram apenas as aparências e as estratégias de destruição. A substância continua a mesma.

Um exemplo, justamente o mais expressivo deles, comprova essa situação. Em 1996, a Construtora C. R. Almeida, por interpostas pessoas e empresas, entrou na região. Suas pretensões territoriais abrangiam uma extensão mínima de cinco milhões de hectares, que podia evoluir para sete milhões. É área maior do que a de sete Estados brasileiros. Nela, a empresa dizia que iria implantar um projeto ecológico de importância internacional. Mas tinha contra si uma vasta frente de órgãos públicos, estaduais e federais, questionando seu direito sobre a gleba e pretendendo anular os registros dessa área em cartório, considerados fraudulentos.

Graças à decisão favorável de uma das câmaras cíveis do Tribunal de Justiça do Pará, a empreiteira conseguiu manter ativos seus direitos, enquanto sobrestava os efeitos da contestação, imobilizando a ofensiva dos seus oponentes e liberando seus próprios movimentos. Dessa maneira, propôs e conseguiu um interdito proibitório judicial contra pessoas que acusou de estarem extraindo madeira em sua suposta propriedade. O juiz de Altamira também aprovou o nome do depositário fiel indicado pela empresa para guardar a madeira apreendida, que chegou a atingir 15 mil metros cúbicos de mogno. Estimulada, ainda requereu indenização pelos danos que teria sofrido com a ação dos invasores, que calculou em quatro milhões de reais. Sempre tendo cuidado de comunicar as autoridades competentes, do Ibama à Polícia Federal, dos cuidados que estava tendo para defender o patrimônio ecológico.

A trama sagaz começou a se desfazer quando o ministro do meio ambiente, José Carlos Carvalho, foi à área, levando consigo o presidente do Ibama. Constatou que a madeira apreendida estava sendo desviada, serrada e colocada no mercado, voltando a apreendê-la e descredenciando o depositário (in)fiel. A iniciativa foi inédita para uma autoridade com esse status. Mas a correção da distorção, apenas iniciada, continua pendente de conclusão.

Ao fazer a visita, de surpresa, o ministro tomou o cuidado de levar consigo agentes da Polícia Federal e fiscais do Ibama de Brasília. De forma discreta, como de seu estilo, estava lançando suspeição sobre o pessoal local. Mas nenhuma dessas equipes locais foi modificada até agora. É claro que as providências só podem ser tomadas a partir de uma base factual, mas há um indicador seguro de que elas são necessárias: as numerosas e constantes queixas, oriundas de todos os lados da questão, contra os técnicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis.

Num tom mais acadêmico, os Amigos da Terra vêm denunciando, junto com outras ONGs e instituições de pesquisa, o comércio das ATPFs, as guias expedidas pelo Ibama para legalizar o transporte de madeira. Elas se transformaram em autêntica moeda no mercado da madeira. Em torno delas surgiu um conjunto de histórias já preocupante sobre a má-fé na expedição, no controle e no manuseio desses documentos, que estão servindo para esquentar madeira extraída ilicitamente. No entanto, nenhum inquérito sobre o tema é conhecido. Se existe, suas conclusões não foram divulgadas. Se a apuração chegou ao fim, ignoradas são medidas concretas para resolver o problema.

Esse "nada consta" é preocupante a partir do fato, óbvio, de que sem as ATPFs a madeira ilegal não poderia circular país e mundo afora. Como quase todos os madeireiros já trafegam pelas estradas amazônicas com a guia, se ela foi fraudada é pouco provável que essa burla tenha sido feita sem o conhecimento (ou a participação) de alguém no Ibama. As providências teriam que começar a partir do instituto.

Mas não basta ao governo fiscalizar, sindicar, reprimir e punir. É preciso apoiar os empreendimentos que se enquadrarem nas normas do desenvolvimento sustentável, para que essa deixe de ser uma expressão privativa do mundo acadêmico e chegue às práticas concretas. Ou, como dizem os Amigos da Terra no seu relatório, o governo precisa ir além do mero "proibicionismo", que acaba sendo aproveitado por fiscais espertos, aqueles servidores públicos que criam dificuldades para vender facilidades, com a mesma eficácia da fórmula dos que estão utilizando a justiça como parceira (inconsciente ou inadvertida) para suas piratarias fundiárias e florestais.

Enquanto não se multiplicarem os projetos de manejo florestal, e o que deles se diz ou promete não for o que efetivamente neles se faz, deixando de ser apenas "para inglês ver", o descompasso entre a crescente legalização da atividade madeireira e a insignificante proporção de práticas saudáveis continuará a ser registrado pelos observadores atentos. Da mesma maneira como a ciência vai sempre atrás do pioneiro no avanço das frentes econômicas, limitando-se na maioria das vezes a registrar o erro por não poder induzir o acerto, o bandido se antecipa ao mocinho nas terras amazônicas (supostamente do sem-fim, inifinitude que transfere para um amanhã incerto e não sabido a correção dos equívocos), a transgressão se alimentando da norma, servindo-a na aparência para desfazê-la ou contorná-la na realidade.

Os que se escandalizaram com a devastação no vale do Araguaia-Tocantins, o primeiro a ser tocado pelo colono trazido pela grande estrada de penetração, agora se assustam com o revival no Xingu: ar carregado de tensão social, fogaréu sem controle, especuladores em formigueiros ativos pelo sertão, devastação das matas, ameaças de morte, morte. De tudo isso muito ocorrerá antes que o verão de 2002 se encerre, prevêem os que costumam ser considerados pessimistas quando os fatos ainda não aconteceram, e são esquecidos quando o leite já está derramado.

Cabe, à definição da atual saison amazônica, o título que o negro James Baldwin deu ao seu pequeno e contundente livro sobre o verão sangrento do racismo nos Estados Unidos: da próxima vez, o fogo.

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