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Tecnologia de branco, peixe de índio

Terra da Gente, p.16-17
31 de Ago de 2005

Tecnologia de branco, peixe de índio
Recursos desenvolvidos em regiões de escassez ajudam indígenas a recuperar a fartura amazônica

Ciro Porto e Valdemar Sibinelli

A Amazônia é o paraíso das águas e abriga 1.800 espécies conhecidas e se estima que existam pelo menos 3 mil espécies não identificadas. Parece correto imaginar que a pesca é sempre farta e garante proteína para todos povos da floresta. Afinal, ali vivem dois dos maiores peixes de água doce do planeta: a piraíba (Brachyplatystoma filamentosum), de até 300 kg; e o pirarucu (Arapaima gigas), o maior de escama, de 150 kg, em média. Mas a abundância generalizada é uma ilusão. A riqueza em espécies nem sempre se traduz em fartura de pescado. E a pobreza de nutrientes, em muitos cursos d'água, aliada à exploração da pesca acima da capacidade de reposição dos peixes, pode levar, sim, ao esgotamento. Tanto, que já tem índio reproduzindo peixe em laboratório, artificialmente, em plena floresta amazônica, para repor estoques esgotados. Um recurso tecnológico que, até há poucos anos, era exclusivo do homem branco, e empregado apenas nas regiões onde os recursos hídricos e os peixes são escassos.
0 laboratório no meio da selva amazônica fica na região do Alto Rio Negro, na fronteira com a Colômbia, uma área conhecida como Cabeça do Cachorro, a 1.200 km da capital amazonense, Manaus. Os piscicultores por necessidade são os índios tukanos, tuyucas e makus, que aprenderam as técnicas de reprodução de peixes em laboratório com os especialistas do Centro de Peixes Tropicais do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Cepta/Ibama), em Pirassununga, interior de São Paulo. A iniciativa é da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA). A ong verificou, numa pesquisa realizada entre os índios, em 1997 e 1998, um problema que parecia afetar só os brancos: com o aumento da população, aumentou a pesca extrativista e os peixes escassearam. Na pesquisa foram entrevistados índios de 250 comunidades do Alto Rio Negro, e o maior problema apontado, por unanimidade, foi a falta de peixe, base da alimentação de todas as tribos.
A experiência com a reprodução artificial começou no rio Tiquié. Como os demais da bacia do Alto Rio Negro, o Tiquié tem a chamada `água preta', ácida e pobre em nutrientes, de temperaturas elevadas e de baixos teores de oxigênio dissolvido. É um dos rios de poucos peixes, os `rios de fome', como apelidaram os primeiros exploradores.
Há cinco anos os índios do Alto Tiquié enfrentam, com tecnologia, a escassez de peixe, que chegou a ameaçar sua sobrevivência. Para fazer a `piracema de laboratório', eles dominam todas as fases da reprodução artificial. Antes de preparar os peixes capturados para comer, cortam e retiram deles a pequena glândula hipófise e, com ela, preparam o hormônio que, injetado, faz as fêmeas desovarem.
Parece simples, mas criar peixe na Amazônia é um desafio, que pesquisadores e índios estão vencendo juntos. As dificuldades são muitas, conforme enumera o engenheiro de pesca Mauro Cornacchioni Lopes, do ISA. A cobertura da floresta, por exemplo, impede uma boa avaliação de locais potenciais para a implantação das estações de piscicultura e dos viveiros. A variação térmica muito acentuada da água nos igarapés - calor demais de dia, frio intenso de noite - provoca a perda de grandes desovas. Os índios não estão habituados a manejar animais em cativeiro, alimentando-os. A distância dos viveiros dificulta o trato regular e isso atrapalha o desenvolvimento do peixe, que cresce lentamente. "A criação de peixe na Amazônia é um desafio enorme em função de tantas dificuldades, mas estamos provando que é possível", diz Lopes.
Outro problema é a falta de informação científica sobre muitas espécies nativas. Para economizar tempo e dinheiro com as pesquisas básicas, os técnicos se valem de alguns conhecimentos dos índios sobre a alimentação e a reprodução das espécies que ocorrem em seus territórios. "A dificuldade é estar aprendendo, ensinando, pesquisando e produzindo ao mesmo tempo", continua Lopes. "São coisas, muitas vezes, conflitantes". Na avaliação do diretor do Cepta, Laerte Alves, essa experiência ajuda na incorporação, pelos índios, dos novos conhecimentos científicos e facilita os trabalhos práticos e teóricos dos pesquisadores.
No manejo, um dos problemas é obter uma taxa aceitável de crescimento dos peixes. 0 alimento ideal seria ração balanceada, rara e cara naquela região. Os índios não têm dinheiro. A cidade mais próxima, São Gabriel da Cachoeira, fica a 300 km das aldeias. "Aqui o problema é encontrar proteína para o peixe crescer. Formiga e cupim são fontes de proteína e ajudam, mas não são tão bons como ração comercial de loja", lamenta o engenheiro agrônomo Pieter Van Der Veld, assessor do Projeto de Piscicultura e Manejo Agroflorestal. Para garantir a proteína dos peixes, todas as tardes os índios saem à `caça' de formigas saúvas. Eles fazem armadilhas com garrafas PET (de refrigerante), cheias de folhas, deixadas em pontos estratégicos durante a noite. De manhã, estão cheias de formigas. 0 `efeito colateral' positivo de toda essa trabalheira é a redução das formigas-cortadeiras, vorazes nas roças e pomares.
Outras opções de comida para os peixes são os frutos da floresta - que normalmente já fazem parte da dieta deles - e a mandioca, base da agricultura indígena. A raiz da mandioca brava é pobre, mas a folha é rica em proteína. Pieter Veld garante que a 'comida caseira' dá resultado: "Os peixes são pequenos, mas não produzimos para o mercado, só para comer, e aqui já existe o costume de comer peixe pequeno".
Os índios do Alto Tiquié agora repassam sua experiência de piscicultura para as tribos do Alto Uapés e do Alto e Médio Içana. Os sistemas de produção variam conforme as condições e as espécies de peixes de cada região. Nos viveiros familiares, o sistema é semi-extensivo; nos viveiros escavados na terra, é semi-intensivo e nos laboratórios das Estações, intensivo.
São 82 viveiros familiares e comunitários e há demanda para a construção, em médio prazo, de mais 80 unidades, todas na região do Alto Rio Negro.
0 próximo passo é integrar a piscicultura indígena no projeto das escolas-piloto do Instituto Socioambiental. 0 objetivo, segundo o coordenador do Programa Rio Negro, do ISA, Carlos Alberto Ricardo, é fazer com que as novas gerações possam gerenciar não só a questão alimentar, mas também o repovoamento dos rios. "Nesse sentido, o projeto precisa ter novos parceiros, aqui na região, para que a alternativa de prover essas bacias com espécies nativas, de maneira sustentável e valorizando o conhecimento indígena, não se restrinja a casos isolados, mas seja uma solução para toda a região", diz Ricardo. Em longo prazo, o ISA pretende implantar, em toda a Bacia do Rio Negro, um programa de desenvolvimento sustentável do qual a piscicultura indígena será um dos principais pilares.

Terra da Gente , Ago 2005, p. 16-17

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