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Suspeitas de fraude em área que vai ser reconhecida como quilombola

Globo.com (NJ)
15 de Mai de 2007

14.05.2007
Suspeitas de fraude em área que vai ser reconhecida como quilombola

O Jornal Nacional mostra o resultado estarrecedor de uma investigação no Recôncavo Baiano, em uma comunidade que está prestes a ser reconhecida oficialmente como remanescente de um quilombo.

São Francisco do Paraguaçu. Uma das 11 comunidades do Recôncavo Baiano reconhecidas como remanescentes de quilombos. O projeto foi encaminhado por um grupo de moradores que se declaram descendentes de escravos perseguidos e refugiados.

Os indícios de fraude estão no próprio pedido de reconhecimento. Nem os mais antigos sabem que um dia este lugar teria se chamado Freguesia do Iguape.

Eronildes tem 86 anos e viu o vilarejo nascer.

Repórter: aqui já existiu um quilombo?
Eronildes: não. Estou vendo falar nisso agora.
Repórter: algum parente seu foi escravo?
Eronildes: não, nem avó, nem bisavó, ninguém nunca foi escravo aqui.

O documento afirma também que as tradições africanas são mantidas aqui até hoje. Inclusive as danças, como o maculelê.

Repórter: como é que se dança o maculelê?
Pescador: nem sei o que é isso. Aqui em São Francisco não tem isso.

De acordo com o documento, os escravos teriam trabalhado na construção de um convento franciscano. Teriam trabalhado também em engenhos de cana-de-açúcar que não existem no vilarejo.

Para reforçar o pedido de reconhecimento, uma lista com 57 assinaturas foi anexada ao projeto. Assinaturas de pessoas que teriam se autodefinido descendentes de quilombolas. Quase todos os nomes que estão aqui são de pescadores. A grande maioria confirma que assinou o documento, mas para outra finalidade.

Foram assinaturas para um pedido de financiamento. Os pescadores queriam comprar embarcações novas.

Essa assinatura aqui é minha: Alex da Cruz Santos. Eu assinei esse papel aqui pra vir o projeto da canoa pra gente. Ele usou o nome da gente, isso aqui é uma mentira”, diz um pescador.

Anselmo Ferreira é o líder dos moradores que se dizem descendentes de quilombolas. Ele coordenou o projeto que pediu o reconhecimento.

Repórter: todas as pessoas que assinam sabiam que era para o reconhecimento?
Anselmo: sabiam.
Repórter: não é o que elas falam.
Anselmo: sabiam, sim.
Repórter: isso é um abaixo assinado dos pescadores pedindo canoa.
Anselmo: então fizeram montagem.
Repórter: e quem fez a montagem?
Anselmo: não sei.

Montagem ou não, o pedido foi aceito pela Fundação Palmares, entidade ligada ao Ministério da Cultura. A certificação, documento indispensável para o processo de reconhecimento, foi assinada pelo historiador Ubiratan Castro, na época, presidente da fundação.

Eu emiti a certidão por conta de que, pra mim, chegaram as declarações de pessoas que me procuraram em nome da comunidade com documentos assinados inclusive com impressão digital, declarando que eram de comunidade remanescente de quilombo, então não cabia a mim recusar o registro”, diz Ubiratan Castro, ex-presidente da Fundação Palmares.

Cabe ao Incra investigar se as informações do projeto são verdadeiras. A lei exige que as pesquisas históricas e antropológicas comprovem a existência do quilombo. No caso da comunidade de São Francisco, isso ainda não foi esclarecido, mas o processo já está em fase de conclusão.

Quase 100% de indicação de que trata-se realmente de um território quilombola, de remanescentes. O Incra já tem isso comprovado”, diz José Vieira Leal, superintendente do Incra na Bahia.

Repórter: já tem no processo o relatório de comprovação histórica e antropológica?
José Vieira Leal: nós temos elementos fundiários, elementos processuais.

De acordo com o Incra, a área do quilombo é de 5 mil hectares. Terras de antigos proprietários como um senhor cuja fazenda da família foi comprada há 154 anos.

As pessoas que se dizem quilombolas, vieram aqui pra São Francisco com seus descendentes tangidos pela seca que atingiu o sertão, na década de 30. Não eram escravos, a escravatura já tinha sido abolida”, diz o fazendeiro Ivo Santana.

Os últimos fragmentos de mata atlântica no Recôncavo Baiano estão na área a ser desapropriada.

Nenhuma fazenda foi indenizada até agora, mas algumas delas já estão sendo ocupadas. E como se pode notar, os descendentes de quilombolas, futuros proprietários da área, estão interessados mesmo é na madeira da mata atlântica.

É com a força do boi que as toras são transportadas até a estrada. Toda semana, dois caminhões saem carregados. O lavrador Pedro de Jesus dirige um dos caminhões.

Repórter: você é descendente de quilombola?
Pedro de Jesus: sou.
Repórter: você faz parte do grupo que ocupou essa fazenda?
Pedro de Jesus: sim.
Repórter: e essa madeira vocês estão tirando para vender onde?
Pedro de Jesus: eu não sei, só faço conduzir.
Repórter: mas você sabe que é proibido derrubar a mata atlântica.
Pedro de Jesus: com certeza.

Áreas de nascentes de rios estão sendo derrubadas. Uma reserva ecológica particular, reconhecida pelo Ibama, também está ameaçada. É o território do Olho de Fogo Rendado, pássaro exclusivo desta região do Nordeste.

"Esse animal precisa de áreas conservadas, preservadas para sobreviver”, diz o biólogo Sidney Sampaio.

O Olho de Fogo Rendado está na lista dos ameaçados de extinção. Se a reserva ecológica for desapropriada, o animal pode desaparecer do mapa, dizem os biólogos. Na Bahia, 450 comunidades já foram identificadas como remanescentes de quilombos. Destas, 212 já ganharam o reconhecimento do Governo Federal.

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