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A soja chegou lá

OESP, Travessia '04/05, p. H6
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
31 de Dez de 2004

A soja chegou lá
Transgênica ou não, a cada colheita ela se alastra agressivamente e já tomou o rumo da Amazônia

Marcos Sá Corrêa

Uma coisa em 2005 já podemos dar como certa: com lei de biossegurança ou sem lei de biossegurança, com medida provisória ou sem medida provisória, lá pela metade do ano estaremos falando de soja transgênica como se fosse novidade. Há pelo menos oito safras ela puxa no campo o cordão da engenharia genética, desde que as sementes da Monsanto começaram a entrar clandestinamente no Rio Grande do Sul. Não tanto pelo pioneirismo técnico. Mas porque a soja em geral é um dos negócios mais agressivos da economia brasileira.
Atrás delas se alinham outros filhos de laboratório prontos para pular a cerca, como o algodão que se associou ao Bacillus thuringienis, um artefato antilagartas gerado no Instituto de Biologia Molecular da Universidade de Edimburgo. Ele também chegou aqui de contrabando. Cavou informalmente um lugar ao sol nesta terra onde, como dizem que disse Caminha, plantando tudo dá. E agora espera sua vez de entrar no debate nacional.
O governo, como sempre, vem depois, bufando leis feitas sob medida para cobrir as partes mais escabrosas do fato consumado. Quem quiser saber onde isso vai acabar não precisa se dar ao trabalho de viajar pelo interior. Basta circular nas grandes cidades brasileiras. É mais ou menos assim que as autoridades controlam a plantação de favelas.
Por fim, fechando a fila, como costuma acontecer com os percussionistas de uma banda, marcham os ambientalistas. Sob o exemplo inspirador da ministra Marina Silva, eles entraram nessa briga para perder. A soja é maior do que eles. E seus argumentos têm sido até agora grandes demais para caber nos títulos de uma notícia no jornal.
Se não acredita, pode fazer o teste. Você é contra a soja transgênica? Então tente dizer por que numa linha de 50 toques. Os testes que detectaram transtornos no fígado de cobaias européias alimentadas exclusivamente com soja transgênica podem ser um mau sinal, mas são inconclusivos. A sentença da Suprema Corte do Canadá, condenando por apropriação indébita um fazendeiro que teve suas cercas invadidas à revelia por sementes patenteadas de canola, outro monstrinho vegetal da Monsanto, daria um conto de Kafka, mas não dá manchete. E a conversa de que não podemos mexer impunemente nos planos divinos para a natureza parece mais um preconceito do que uma advertência. Essa, francamente, Galileu já ouviu.
Os partidários da soja transgênica descendem de uma espécie com tanta experiência em manipulação genética que provavelmente jamais passou pelo cargo um ministro da Agricultura capaz de reconhecer a espiga fóssil de onde vieram os milharais modernos. Em compensação, da China aos Andes, todos os lugares onde nasceu a agricultura nos últimos 10 mil anos são hoje desertos, a começar pelo chamado Crescente Fértil.
Não é à toa que o paraíso terrestre foi parar no Gênese como um lugar onde não era preciso plantar porque as coisas caíam do céu. O homem não foi expulso do paraíso. Tirou-o de seu roçado, para que não atravancasse o caminho do desenvolvimento. Como os brasileiros andam fazendo neste momento com a transformação do País inteiro numa imensa e uniforme plantação de soja.
O pior da discussão sobre a soja transgênica é que, concentrando-se no bate-boca com a Monsanto, ela faz a soja comum parecer inocente. Fingindo que nada tem a ver com os problemas ambientais do País, ela se alastra como praga através do cerrado, rumo à Amazônia. A cada colheita, as editorias de economia fazem na imprensa a conta do que o Brasil ganhou com mais um recorde de produção. A conta do que ele está perdendo com isso fica entregue aos sites ambientalistas.
Segundo a Companhia Nacional de Abastecimento, a área ocupada pela soja cresceu de um ano para outro 2,2 milhões de hectares, para colher os 52,2 milhões de toneladas de 2003. O sucesso é tamanho que chegou à reserva dos parecis. Animados pelo que estão vendo à sua volta no resto do Estado, eles protestam na Fundação Nacional do índio para abrir às plantações de soja 17.500 hectares de suas terras. Num Estado onde o governador Blairo Maggi, que na vida real é o maior produtor desses grãos no Brasil e na administração pública extinguiu parques estatuais para permitir a expansão da fronteira agrícola, os parecis têm toda a razão de achar que foram barrados na grande liquidação do cerrado, com queima total dos estoques de vegetação nativa.
Onde é que isso vai parar? Adivinhe. Em 1997, a economista Ana Célia Castro, que não é militante de ONG ecológica, mas catedrática do centro de pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, fez para o WWF uma avaliação dos riscos de que essa frente de colonização agrícola invadisse de uma vez a Amazônia. Fez um relatório de 99 páginas, numa época em que 20% da safra nacional de soja já era colhida na região, onde os grandes exportadores como o grupo Maggi, a Bunge e a Cargill começavam a ,instalar silos e portos. Considerou improvável que ela varasse as bordas da floresta para conquistar o coração da Amazônia Ocidental, onde o solo é impróprio e as complicações ambientais são gigantescas. Meses atrás, ela mesma tomou a iniciativa de rever suas previsões para o WWF. A soja chegou lá.

Marcos Sá Corrêa é jornalista

OESP, 31/12/2004, Travessia 04/05, p. H6

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