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Sobreposições entre Terras Indígenas e Unidades de Conservação no Brasil

Revista do Terceiro Setor
Autor: RICARDO, Fany; MACEDO, Valéria
24 de Mar de 2005

Sobreposições entre Terras Indígenas e Unidades de Conservação no Brasil

Fany Ricardo e Valéria Macedo

A criação de parques em áreas de ocupação indígena é uma realidade do ordenamento territorial brasileiro desde pelo menos 1959 - data da criação do Parque Nacional (Parna) do Araguaia, na Ilha do Bananal (TO), habitada há mais de quatro séculos por grupos Karajá. Mas foi apenas com a especificação dos conceitos de Unidades de Conservação (UCs) e Terras Indígenas (TIs) - a partir de meados dos anos 1960, consolidada na década seguinte - que a questão das sobreposições de terras da União destinadas a diferentes (e incompatíveis) usos emergiu como um problema, gerando conflitos entre comunidades indígenas, representantes de UCs, comunidades não-indígenas no interior ou entorno das áreas protegidas, pesquisadores, bem como órgãos governamentais e não-governamentais vinculados à questão ambiental, indígena ou fundiária no país.
Existem hoje no Brasil 55 casos de sobreposição de UCs e TIs, somando quase 13 milhões de hectares sobrepostos. O histórico e os casos mais emblemáticos desse imbróglio estão no eixo central da mais recente publicação do ISA. Em sua primeira parte, a obra reúne dezenas de artigos com abordagens históricas, jurídicas, antropológicas, políticas, econômicas e ecológicas relativas a TIs, a UCs ou ao tema da sobreposição propriamente dito. Na segunda parte, o livro é organizado em nove capítulos agrupados nos segmentos "Amazônia" e "Mata Atlântica", nos quais são apresentados os casos mais conflituosos de sobreposições entre TIs e UCs incidentes no Brasil. Por fim, na última parte do livro encontram-se 29 mapas com todos os casos de sobreposição entre TIs e UCs hoje existentes no Brasil, bem como as listagens de todas as Terras Indígenas e Unidades de Conservação (federais e estaduais) em terras públicas do País. Esse conjunto de informações resulta de um trabalho que vem sendo realizado há cerca de duas décadas pela equipe do ISA, sob coordenação de Fany Ricardo. A formação de uma ampla rede de colaboradores, e o acúmulo de informações sistematizadas e georreferenciadas ao longo desses anos, possibilitaram a elaboração desse consistente material de consulta.
Índios e natureza
O Código Florestal brasileiro, datado de 1965, ao definir Parque Nacional como uma unidade de proteção integral da fauna e da flora, passou a excluir a possibilidade legal da existência de populações humanas habitando em seu interior. Entretanto, em período posterior à efetivação dessa Lei, parques foram criados desconsiderando tal critério, como o Parna Pico da Neblina (AM), instituído em 1979 em região sabidamente habitada pelos Yanomami; o Parna Pacaas Novos (RO), criado em 1979 na área de ocupação Urueu-Wau-Wau; e o Parna da Amazônia (AM/PA), criado em 1974 em local habitado pelos Sateré Maué. Naquele contexto, isso não era reconhecido como problema para os representantes dos órgãos ambientais do governo porque tais grupos indígenas ainda mantinham um contato intermitente com a sociedade nacional, sendo alheios a seus usos e costumes e, por isso, podendo ser considerados como parte da paisagem, poder-se-ia mesmo dizer, como parte da natureza local.
Com o passar dos anos, contudo, a expansão da fronteira amazônica e o adensamento da ocupação no restante do país, sob a hegemonia do modelo desenvolvimentista nos governos militares, foram responsáveis pela depopulação e expropriação de porção significativa dos povos indígenas no território nacional, promovendo também o estreitamento do contato de muitos grupos com o restante da sociedade. Tal processo envolveu a incorporação - mais ou menos intensa, de acordo com o grupo - de costumes e necessidades exógenas por parte das populações indígenas. Conseqüentemente, muitos índios deixaram de encaixar-se na imagem do "bom selvagem" - caracterizado por sua relação inerentemente harmônica com a natureza e pela impermeabilidade aos padrões da cultura ocidental - para serem enquadrados por segmentos da sociedade nacional (sobretudo os representantes dos órgãos ambientais) na categoria de "predadores" dos recursos naturais nas áreas protegidas, como ocorre no caso dos Karajá e Javaé da Ilha do Bananal, ou dos Pataxó no sul da Bahia.
Nos últimos anos, os conflitos decorrentes de sobreposições territoriais vêm acentuando seus matizes, seja porque os casos antigos acirraram suas animosidades, seja porque novos casos vêm sendo deflagrados, sobretudo em razão do processo de consolidação dos direitos indígenas, cujos desdobramentos incluem o reconhecimento ou ampliação de terras incidentes nos perímetros de UCs, e do concomitante avultamento da questão ambiental no mundo, em que o valor (tanto ideológico como mercadológico) das áreas protegidas tem sido potencializado pela crescente escassez de bens primordiais para a sobrevivência do planeta (como a qualidade e abundância da água e do ar) e para a indústria de biotecnologia (os estoques de biodiversidade), entre outros fatores.
A inserção dos povos indígenas nesse quadro atual, particularmente no cenário amazônico, os coloca em posição estratégica numa rede complexa de relações, que se estende do plano local ao global, incluindo um conjunto de fontes de financiamento e parcerias, com mediação ou não do Estado, que vão desde organizações do terceiro setor, igrejas, agências de cooperação internacional, empresas de capital privado, e ainda agentes de práticas ilícitas (como madeireiros, palmiteiros, garimpeiros, pesqueiros, contrabandistas, entre outros).
Os conflitos decorrentes de sobreposição territorial costumam adquirir feições mais graves nas terras fora da Amazônia Legal, onde as extensões via de regra são menores, com o entorno mais degradado e ocupação mais densa e antiga por parte da sociedade envolvente. Conseqüentemente, os grupos indígenas dessas áreas têm menores condições de exercer o direito constitucional a uma cultura diferenciada, assim como de garantir a sustentabilidade ambiental de suas terras, tanto porque seu território é alvo mais próximo de posseiros e invasões para extração ilícita de recursos, como pela necessidade de exaurir os recursos naturais como forma de suprir as demandas de uma população cuja sobrevivência nos moldes tradicionais (ou de baixo impacto) demandaria maiores extensões ou apoio financeiro para o desenvolvimento de projetos visando o manejo e uma inserção qualificada no mercado.
Nesse quadro adverso, as Unidades de Conservação em áreas próximas ou no entorno das TIs despontam como uma alternativa de ampliação do território oficialmente demarcado, seja porque geralmente são menos descaracterizadas ambientalmente do que as propriedades particulares vizinhas, seja por serem terras da União, não implicando necessariamente expropriações e os conflitos decorrentes. Ocorre que, para além da Amazônia, só restaram remanescentes dos demais biomas no país. No caso da Mata Atlântica, por exemplo, restam pouco mais de 7% de sua formação original. Boa parte dos ambientalistas que trabalham ou atuam na defesa das UCs nessa região defendem enfaticamente sua preservação, apontando as fragilidades dos ecossistemas que protegem, com muitas espécies endêmicas e, segundo a chamada vertente "preservacionista", necessários de serem integralmente interditados a quaisquer usos diretos, mesmo para atividades de subsistência de algumas famílias.
Muitas disputas e poucos acordos
No cenário das sobreposições entre UCs e TIs, mesmo na Amazônia, este é o pano de fundo para o embate acirrado entre os defensores irrestritos das UCs de Proteção Integral e, no extremo oposto, os índios e seus apoiadores, que reconhecem a área sobreposta como territórios de ocupação histórica indígena e/ou propícia à sua reprodução física e cultural. Ambas posições procuram ancorar-se na Constituição Federal de modo a legitimar suas reivindicações. Os defensores da ocupação indígena na região sobreposta estão alicerçados no artigo 231 da carta constitucional, que reconhece aos povos indígenas direitos originários (anteriores à formação do Estado Nacional) de posse permanente e usufruto exclusivo sobre as terras que tradicionalmente ocupam, bem como aquelas necessárias para sua reprodução física e cultural, cabendo ao Estado protegê-las e demarcá-las, anulando todos os títulos de propriedade incidentes, sejam eles de particulares ou da União.
Aqueles que defendem a proteção integral em área sobreposta, por sua vez, procuram legitimar sua postura no artigo 225 da Constituição, que estabelece como direito e dever de todos a garantia de um meio-ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações. Para tanto, atribui ao Estado a responsabilidade de estabelecer espaços territoriais especialmente protegidos, entre os quais as Unidades de Conservação. O artigo institui ainda que a UC pode ser criada por qualquer ato normativo, porém sua dissolução só pode ser feita por Lei.
Entretanto, a resolução jurídica para o impasse da sobreposição territorial está longe de ser consensual, uma vez que tanto a figura de UC quanto de TI são legitimadas constitucionalmente e, a despeito dos direitos territoriais indígenas serem de natureza originária, cabendo ao Estado apenas reconhecê-los, demarcá-los e protegê-los - diferente das UCs, que resultam de um ato voluntário do poder público -, a extensão das TIs e o caráter tradicional da ocupação são avaliados pelo Estado com base em laudos antropológicos que estão sujeitos a contestações e outras determinantes conjunturais.
De modo ainda incipiente, o esforço de conciliar direitos ambientais e indígenas tem sido posto em prática em alguns contextos, por meio de mecanismos de "gestão compartilhada" e manejo do território sobreposto, envolvendo as comunidades residentes, pesquisadores, órgãos ambientais e indigenistas, governamentais e não-governamentais. Tal é o caso do Parque Estadual Ilha do Cardoso (PEIC - SP), cujo Plano de Manejo foi elaborado em 1998 em conjunto com as comunidades de "moradores tradicionais" (que habitavam a Ilha antes de sua conversão em Parque e cuja principal atividade é a pesca) e considera a presença de famílias da etnia Guarani (com habitação permanente na UC desde 1992). Foi criado um Conselho de Apoio à Gestão composto por representantes das comunidades de moradores não-indígenas e entidades governamentais e não-governamentais envolvidas com o Parque e seu entorno. O PEIC criou ainda um Comitê Interinstitucional para tratar da questão indígena na UC, composto por lideranças guarani e representantes de entidades públicas e da sociedade civil que trabalham com o grupo.
Já na Ilha do Bananal (TO), onde o conflito é bem mais antigo, a idéia de uma "gestão compartilhada" não partiu dos atores diretamente envolvidos, mas do Ministério da Justiça, que, ao assinar a portaria declaratória de posse permanente indígena da TI Inãwebohoná, determinou que Funai e Ibama elaborassem, em conjunto com as comunidades Javaé e Karajá, um Plano de Gestão Socioambiental da área, que garantisse a conservação ambiental e a qualidade de vida dos índios residentes. Mas o itinerário do "Diário Oficial da União" para a realidade cotidiana na Ilha do Bananal ainda está longe de ser percorrido. Há um longo lastro de desentendimentos entre os órgãos indigenista, ambiental e os índios, iniciado pouco depois da criação do Parque Nacional do Araguaia, em 1959. Mesmo após a portaria, pouco se tem avançado em razão do acirramento dos conflitos com a diretoria do Parque, que inclui suspeitas de desvio de recursos da compensação ambiental pela construção da Usina Hidrelétrica Luís Eduardo Magalhães, que deveriam ser destinados para as comunidades indígenas e que ocasionou a demissão da então diretora em 2003.
Dependendo do contexto em que se dá a sobreposição e a trajetória dos atores envolvidos, por dever de ofício ou outras formas de engajamento, há um amplo espectro de posicionamentos entre as posturas extremadas dos que defendem a interdição incondicional da ocupação indígena em UCs de proteção integral e daqueles que defendem em quaisquer situações a revogação da UC em favor da demarcação da TI. Mas na maioria dos casos o que há é uma interlocução precária entre os envolvidos, marcada pela intransigência de posições e interesses, em detrimento da conservação ambiental e da qualidade de vida dos índios que lá habitam. Para muitos representantes dos órgãos ambientais oficiais ou entidades ambientalistas que apóiam ou atuam nas UCs, negociar com os índios e construir um projeto de gestão compartilhada e manejo do território é uma forma de legitimar sua presença, de modo que acabam por negar-se a qualquer atuação conjunta. Os índios, em contrapartida, acabam enxergando esses atores como antagonistas, e por vezes se unem com os parceiros que têm à mão e cujo retorno é mais imediato, não raro com efeitos perversos para a conservação ambiental da área, acirrando as animosidades.
Na trama desses conflitos, o que prevalece é um emaranhado de disputas e divergências interinstitucionais, envolvendo órgãos governamentais (Funai, Ibama, Incra, órgãos ambientais e indigenistas estaduais e municipais etc.), não-governamentais (ligados à causa indígena, ambiental ou socioambiental), Ministério Público (em suas instâncias federal e estaduais, que nem sempre estão de acordo nos procedimentos relativos ao tema), Procuradorias dos Estados, associações de moradores não-indígenas do interior ou entorno das UCs, organizações indígenas, funcionários das UCs, polícia florestal etc. Seja por razões ideológicas ou disputa de poder e recursos, os desacordos entre as instituições envolvidas têm inviabilizado soluções negociadas em quase todos os contextos de sobreposição. Por essa razão, não prosperou a determinação do SNUC de composição de Grupos de Trabalho no âmbito do Conama (Conselho Nacional de Meio Ambiente) para resolver os casos de sobreposição entre TIs e UCs.
Fato é que o ritmo de predação da natureza pelas sociedades capitalistas leva a crer que num futuro próximo as áreas florestadas que sobreviverão serão as TIs e UCs. Ao tomarem para si o protagonismo na proteção da biodiversidade do planeta, os índios passam a ser atores estratégicos na contemporaneidade. Nesse contexto, se por um lado as comunidades indígenas têm condições de atrair apoios - nacionais e internacionais, junto à sociedade civil e aos Estados Nacionais - na proteção de suas terras e no desenvolvimento de projetos visando sua sustentabilidade; por outro, ficam à mercê de uma série de dispositivos de controle sobre o uso dos recursos naturais, bem como reféns da lógica burocrática do "mercado de projetos". Por isso os projetos de conservação e desenvolvimento sustentável devem se dar por meio de políticas diferenciadas e adaptadas às peculiaridades de cada grupo, sendo fundamental apurar a interlocução com os povos indígenas.

Fany Ricardo e Valéria Macedo são antropólogas e, respectivamente, coordenadora e pesquisadora do Programa Monitoramento de Áreas Protegidas e do Tema Povos Indígenas no Brasil, do Instituto Socioambiental (www.isa.org.br).

Revista do Terceiro Setor, 24/03/2005

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