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Sivam: ciência e geopolítica

O Estado de São Paulo - São Paulo - SP
Autor: Lúcio Flávio Pinto
01 de Mai de 2001

Em 1985 o Brasil voltou à democracia, depois de 20 anos de regime militar. Mas o presidente José Sarney, que comandou a transição política em nome da Nova República, nesse mesmo ano inaugural criou o Projeto Calha Norte e, em seguida, seu complemento, o Proffao (Programa de Áreas de Fronteira da Amazônia Ocidental). No vasto arco de fronteiras amazônicas, com nove mil quilômetros de extensão, tocando nos limites de sete países vizinhos, continuaria a prevalecer a doutrina de segurança nacional, a matriz da ação do governo nas duas décadas anteriores. Na Amazônia, a democracia ficaria para outra oportunidade.

Esse devir não chegou até hoje. Depois da onda de preocupação com a possibilidade de tropas cubanas se infiltrarem por Roraima, a partir da Guiana ex-inglesa (uma república cooperativa após a independência), e das sempre anunciadas - e nunca consumadas - invasões de guerrilheiros peruanos (do Sendero Luminoso) e colombianos (primeiro do M-19 e, agora, das Farc), o presidente Itamar Franco, vice e sucessor de Collor de Mello, o primeiro presidente eleito pelo voto popular desde 1964, lançou o Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia).

Embora as fronteiras continuassem mansas e pacíficas, apesar de um ou outro incidente, previsível num cenário de floresta densa, fauna rica, índios, aventureiros e isolamento, o Conselho de Defesa Nacional foi convocado como se houvesse uma ameaça externa iminente. Não uma, mas duas vezes (as duas únicas até agora), sempre com a mesma pauta: a Amazônia insegura, cobiçada por estrangeiros, violada por piratas, sempre na mira de satélites espiões ou de agentes disfarçados para cá mandados por nações imperialistas. E, agora, exposta a ser ponto de desembarque dos marines de Tio Sam.

Um pano de fundo tão carregado acabaria por estimular o governo a tomar a iniciativa e o legislativo a acatá-la: o Sivam dispensaria a concorrência pública e a contratação dos serviços se faria pela via direta da tomada de preços, embora a conta de fechamento venha a bater em 1,4 bilhão de dólares (R$ 3 bilhões, ao câmbio do dia, mais do que a soma da receita própria anual de todos os Estados da região somados). Nos bastidores comentava-se que havia um vencedor certo, o grupo francês que implantou o sistema Dacta para controle de tráfego aéreo. Mas quem levou a prenda foi a americana Raytheon.

Antes de começar a implantação do projeto, que iria aprimorar o controle sobre a circulação no espaço aéreo amazônico e monitorar praticamente todas as intervenções humanas na região, o governo teve que limpar o Sivam da lama que lhe respingou das escutas clandestinas e de suas conversas incômodas, atribuindo manobras pouco recomendáveis para definir o vencedor. Mas o sistema, parte de uma entidade abrangente, o Sipam (Sistema de Proteção da Amazônia), a despeito de alguma controvérsia em seu caminho, deverá estar pronto no final do próximo ano. Exatamente conforme o cronograma da largada, algo raro na lenta e impontual burocracia pública.

Vontade de fazer

Para que os prazos fossem rigorosamente cumpridos, dinheiro não faltou. Havia certas inibições orçamentárias, mas elas foram vencidas com o uso, em larga medida, de um produto que não costuma ser abundante em Brasília: a vontade de fazer. O Sivam começou 2000 com 13% do orçamento federal para a Amazônia. Terminou o exercício abocanhando 44%. A rubrica pulara dos R$ 176 milhões iniciais para R$ 731 milhões executados, segundo levantamento realizado pelo Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), uma ONG conceituada, com base também em Brasília.

A conclusão óbvia de tal informação é de que foi militarizada a ação da União na maior, menos conhecida e (talvez por isso mesmo) mais valorizada região do país. Porta-vozes do Sivam tentam atenuar a conclusão. Lembram que uma parte (não dizem qual, mas é minoritária) do dinheiro foi entregue às comunidades das áreas nas quais estão sendo instaladas bases militares e de telecomunicações, que vão apoiar os núcleos operacionais do sistema, três nas maiores cidades amazônicas (Belém, Manaus e Porto Velho) e o central em Brasília, naturalmente.

Argumentam ainda que esse percentual elevado de investimento de natureza militar em 2000 deveu-se a ter coincidido com o período de maiores investimentos na montagem do sistema. A mesma rubrica para o atual orçamento está fixada em 9% dos R$ 2,7 bilhões destinados à Amazônia. Resta esperar até o final do exercício para verificar se a proporção vai ser coerente com o declínio do cronograma financeiro do programa, ou se, como em 2000, algum motivo relevante irá fazê-lo crescer outra vez. Exponencialmente, quem sabe.

Responsáveis pelo Sivam gostam de ressaltar que o sistema constitui uma iniciativa de objetivos científicos. Afinal, o monitoramento feito por suas equipes vai permitir ao governo acompanhar os desmatamentos, a poluição dos rios, a evolução de atividades produtivas, as mudanças climáticas e outros fenômenos, naturais ou humanos. Se ainda não é exatamente coisa consumada, tudo isso está sendo prometido. O portofólio apresentado nas exposições dos RP impressiona.

Mão forte No entanto, o comando do programa é conduzido com mão forte pela Aeronáutica. Em seus laboratórios foi que a idéia nasceu. Os cientistas incorporados receberam uma tábua das leis pronta e acabada. Não houve discussão prévia. O debate posterior tem servido para esclarecer questões. Mas não as engendrou. Nem as modificou. As instituições científicas chamadas a emprestar sua colaboração atuam como caudatárias. Cumprem ordens. Ordens, na caserna, são dadas para ser cumpridas.

No orçamento nacional de ciência e tecnologia, a Amazônia tem direito a 2% do total destinado a todo o país, embora corresponda a 44% do território brasileiro e encerre alguns dos maiores desafios ao conhecimento humano, além da aplicação prática, mais imediata. O Sivam corresponde, nos seus cinco anos de execução, a 20 anos de orçamento amazônico de ciência & tecnologia. E não estará no fim em 2002, mesmo que isso esteja prometido nos folders. No máximo, será uma etapa para o momento seguinte, quando o funcionamento necessitar de novos instrumentos e ferramentas. E for verificado que para tal muitos passos ainda precisam ser dados.

Bitolados por bolsas minguadas e verbas de pesquisa homeopáticas, os cientistas que acompanham à distância o Sivam invejam o que vêem e não têm. Os que foram absorvidos pelo programa tratam de ajustar-se a ele.

Para completar a pintura do quadro, é ilustrativa uma comparação. A General Dynamics construiu um míssil que revolucionou a guerra aérea, o Side Winder, a partir de uma pesquisa básica em herpetologia sobre a cascavel. Para reproduzir artificialmente o sensor infravermelho natural que existe no focinho da serpente, transformando-o no guia do míssil, para fazê-lo buscar o alvo seguindo o seu deslocamento de calor, a empresa americana gastou quatro bilhões de dólares. Ou seja: quase três vezes o privilegiado Sivam.

Em matéria de ciência para valer ou de geopolítico levada às últimas conseqüências, o que o governo está fazendo na Amazônia é impressionante para os parâmetros internos, mas pífio num contexto mais amplo. O que ajuda a entender as possibilidades e as frustrações no esforço de integrar a imensa Amazônia ao necessitado Brasil. Mantendo-a sob o pleno controle nacional, contra as ameaças da cobiça internacional. Eternamente vigilante, que nem a UDN, partido no qual os políticos em farda se abrigaram até que os militares políticos puseram fim à República de 1946 e instauraram sua própria ordem por duas décadas. Na Amazônia, ainda em pleno vigor.

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