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Servidores do Ibama expõem absurdos da doutrina militar no combate ao crime ambiental na Amazônia

Open Democracy - https://www.opendemocracy.net/pt
Autor: DOLCE, Julia
30 de Jul de 2021

Servidores do Ibama expõem absurdos da doutrina militar no combate ao crime ambiental na Amazônia
Soldados treinando esportes durante queimadas criminosas, proibidos de usar roupas corta incêndio sobre farda e ostentação de aparato estragando flagrantes: entenda a ineficiência da GLO da Amazônia

Julia Dolce
30 Julho 2021

Quando os arredores de Tartarugalzinho, no Amapá, pegaram fogo em outubro de 2019, durante a temporada de seca amazônica que elevou a preocupação com a destruição do bioma a um patamar internacional, a equipe de combate às queimadas do Ibama não pôde contar com um efetivo que, já na ocasião, estava destacado exatamente para proteger o meio ambiente: o Exército.

O fogo, de origem criminosa, já quase atingia a área urbana do pequeno município, localizado a 230 km de Macapá, quando os servidores do Ibama solicitaram a ajuda de soldados do quartel local para compor a brigada de combate ao incêndio. Negativo. Eles estavam jogando vôlei. Era a hora de jogar vôlei, então eles tinham que jogar vôlei, até segunda ordem. É o que relata uma servidora do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) que viveu a situação.

"Foi um dia tão grotesco. A gente com os brigadistas desesperados para o fogo não chegar na cidade e o pessoal do Exército jogando vôlei na praça. Chegou a esse nível", desabafa. A servidora, como a maior parte dos funcionários de órgãos ambientais ouvidos nesta série de reportagens, preferiu não se identificar, então vamos chamá-la de Ana*.

O episódio foi determinante para que Ana entendesse algo que foi repetido à exaustão à reportagem por uma dezena de servidores do Ibama e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio): a forma de atuação das Forças Armadas (FA) não funciona para coordenar o combate ao crime ambiental.

Apesar de o Exército e outras forças de segurança sempre terem atuado em suporte aos órgãos ambientais, as FA foram destacadas para controlar a fiscalização na Amazônia a partir de 2019, por meio dos decretos de Garantia de Lei e Ordem (GLO) que estabeleceram as Operações Verde Brasil I e Verde Brasil II.

"Como apoio logístico e segurança eles são excelentes, são treinados para isso. Mas para fazer planejamento de operação de fiscalização ambiental? Defender a Amazônia? Sinto muito, mas eles teriam que mudar toda a doutrina", analisa Ana.

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Militares durante operação Verde Brasil II em Rondônia | Cb Estevam/CComSEx

O relato da fiscal do Ibama é só um exemplo de como a rigidez da doutrina militar mais atrapalhou do que ajudou os últimos dois anos de fiscalização ambiental no bioma. Outras circunstâncias, reveladas à reportagem, são tão caricatas quanto, como um caso vivido pelo fiscal Mário*, do ICMBio. Ele atuou no combate a um grande incêndio que tomou conta de uma Floresta Nacional (Flona) no Pará em agosto de 2020.

"Foi o pior incêndio que já teve na região, dois meses queimando sem parar", recorda. Mário coordenou por quase um mês a equipe de combate ao fogo, incluindo militares que foram deslocados do quartel de um município próximo, via GLO, para a tarefa. Porém, quando os militares chegaram na Flona, o servidor percebeu que eles não conseguiriam trabalhar, porque não poderiam usar o Equipamento de Proteção Pessoal (EPI) necessário.

"No enfrentamento ao incêndio florestal no Brasil a gente faz combate direto, não fica só cercando o fogo. Mas para isso tem que usar EPIs, roupas para aguentar o calor. Eles não abrem mão de usar o uniforme deles", resume. Assim, o deslocamento da equipe de militares para a ação, segundo o servidor, foi completamente inútil. "Eu tinha uma equipe de combate que não servia de nada. Eles até podiam ter boa intenção, mas ficou essa coisa ridícula", desabafa.

Com o anúncio da GLO, servidores ficaram entusiasmados com a possibilidade de maior apoio operacional das FA. Mas logo a animação caiu por terra. "É o mesmo Exército, mas mudou o governo"

A GLO da Amazônia foi uma pronta resposta de Bolsonaro à pressão internacional geopolítica de países europeus contra a falta de ação do governo brasileiro durante as queimadas de 2019. Os principais focos de incêndio que motivaram a resposta foram os que tomaram a floresta ao redor BR-163, rodovia que liga Cuiabá e Santarém (PA), também conhecida como a "BR da soja".

O dia 15 de setembro daquele ano foi apelidado de "Dia do Fogo", data em que ruralistas do município de Novo Progresso (PA) combinaram de provocar incêndios criminosos. O servidor César*, do ICMBio, viveu de perto todas as fases do episódio. Ele coordenava uma das unidades de conservação da região próxima à Novo Progresso na ocasião do Dia do Fogo e continuou na coordenação durante a implementação da operação Verde Brasil I.

César conta que, no começo, com o anúncio da GLO, ficou entusiasmado com a possibilidade de maior apoio operacional das FA e de ter acesso a melhores equipamentos, imaginando que a operação se daria como outras parcerias anteriores nas quais o Exército apoiava os órgãos ambientais em áreas operacionais.

Mas logo a animação caiu por terra. "É o mesmo Exército, mas mudou o governo. Estão bem menos prestativos. Encontramos uma série de dificuldades, regras internas, pouco conhecimento das infrações ambientais", explica. "Achávamos que iríamos definir o planejamento e eles acompanhariam nossa linha. Mas o modus operandi do Exército é muito diferente e eles sempre voltavam atrás no nosso planejamento, havia muita dificuldade de comunicação", lembra.

O servidor teve que realizar toda uma mudança de planejamento para atender à GLO. "E no final descobrimos que tínhamos mais efetividade mantendo nosso planejamento anterior do que trabalhando com eles, era um despreparo muito grande", completa.
Perda de autonomia e inteligência "descartada"

Quando o Ministério da Defesa (MD) e o Comando do Exército são questionados sobre os resultados da Verde Brasil I e II, a resposta padrão é uma coletânea de resultados de operações de diferentes órgãos ambientais e forças policiais na Amazônia, mesmo as que não tiveram qualquer participação ou comando das Forças Armadas, ou as que nem estão relacionadas com o combate ao crime ambiental.

Entretanto, os resultados da GLO representam uma queda no número de operações, autos de infração e uma redução significativa no combate ao crime ambiental de modo geral. Entre 2015 e 2018, foram registrados 63.868 autos de infração, uma média de 15.967 por ano, de acordo com dados levantados pela CNN. Já entre 2019 e 2020, foram aplicadas 22.395 autuações, uma média anual de 11.198.
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Segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA), a Amazônia Legal brasileira teve a maior taxa de desmatamento dos últimos 12 anos no biênio 2019-2020, um aumento de 48,3% em relação ao período entre 2017 e 2018. Já no primeiro semestre de 2021, o bioma registrou o período mais devastador nos últimos seis anos, de acordo com dados do DETER/INPE, com alertas de desmatamento em 3.325,41 km2 de floresta, o equivalente a duas vezes o município de São Paulo.

A analista ambiental Carla*, servidora do Ibama no Pará há quase duas décadas, é categórica: "Com o advento da GLO da Amazônia, nossas ações no Pará caíram 30%", calcula. Ela explica que o principal impacto da mudança de comando da fiscalização ambiental se deu com o fim do Plano Nacional Anual de Proteção Ambiental, o PNAPA.

O plano é um projeto para o combate do crime ambiental construído com equipes do Ibama do país inteiro, com base nos resultados do ano anterior. Estatísticas, imagens de satélite e relatos de operações colhidos ao longo do ano embasam a inteligência para o ano seguinte. Com a Verde Brasil I e II, o PNAPA, que vinha sendo elaborado anualmente e ininterruptamente desde 2008, deixou de existir.

"Era um norte, mas também permitia flexibilidade para mudar as ações", pondera Carla. Sem essa bússola para o planejamento de operações, os analistas ambientais e fiscais que, de fato, atuam em campo, deixaram de opinar nas estratégias de combate ao crime ambiental. O planejamento passou a ser elaborado, sem qualquer transparência, pelos comandantes do Exército e pelos novos superintendentes do Ibama no governo Bolsonaro, PMs paulistanos aposentados.

"Até os números mostram que não houve resultado, com essa falta de conhecimento na dinâmica do crime ambiental, dos locais onde acontece o crime, do equipamento adequado para poder chegar no local", afirma Ana.

Elizabeth Uema, secretária executiva da Associação dos Servidores da Carreira Especialistas em Meio Ambiente (ASCEMA Nacional), explica que a perda de autonomia do Ibama e do ICMBio na tomada de decisões estratégicas das operações é uma das principais origens do aparelhamento do órgão.

"A expertise para denunciar crimes ambientais está nos órgãos ambientais. Existe toda uma rede de inteligência feita anteriormente a qualquer tipo de operação que precede de forma que você realmente vá onde é o foco de fato do desmatamento e pegue os criminosos em ação", afirma.

A atual falta de autonomia dos órgãos ambientais é uma das principais denúncias da ASCEMA em relação à política ambiental do governo Bolsonaro. "Nossos fiscais ficaram submetidos ao comando das FA, tinham que ir onde decidissem. Logo no começo da GLO, se nossos monitoramentos indicavam que o desmatamento estava intenso em tal região, eles diriam para a gente ir para outro lugar", completa Uema.

Para a fiscal Ana, a submissão dos órgãos ambientais às FA representaram uma negligência de todo o treinamento que ela e os colegas tiveram ao longo da carreira. "Nós somos muito bem treinados, não sou nem um pouco modesta quanto a isso. Temos um regulamento interno de fiscalização, uma doutrina", explica.

Um exemplo concreto dessa negligência é apresentado por Carla. Em 2019, durante a Verde Brasil I, ela acompanhou o Exército em uma operação no Pará onde eles confundiram uma área de antigo plantio de soja, já desmatada há anos, com uma área de desmatamento recente.

"Nós do Ibama elegemos um alvo de acordo com as imagens de satélite, mas também com relatos da inteligência, com informações que temos da área. O Exército não tem esse histórico", diz. Em seguida, o Exército escolheu outro alvo, e dessa vez, chamou até a imprensa para cobrir a operação. Novamente, o local era de antigo plantio de soja. "Aí eles falaram que iam ajeitar o problema e pararam a operação por 15 dias", revela a analista.

Outro servidor que acompanhou diversas operações de desmatamento nas quais foram escolhidos alvos que, na verdade, não estavam sofrendo desmatamento foi Henrique*, fiscal do Ibama alocado no Tocantins. "A gente ia a campo com um levantamento ruim, com pessoas sem experiência nenhuma em geoprocessamento", afirma.

"Basicamente, pagamos R$ 530 milhões para o Exército descobrir a forma como a gente já trabalhava há anos", afirma servidor

Segundo Henrique, mesmo que os servidores do Ibama levantassem 50 áreas que estavam sofrendo desmatamento recente, o Exército optava por ignorar as informações e escolhia alvos que não passavam por crimes ambientais, ou territórios que já haviam sido embargados pelo Ibama há anos. "A gente teve que refazer o trabalho deles".

A própria delimitação dos 11 municípios que são mais impactados pelo desmatamento, divulgada pelo presidente do Conselho da Amazônia, o vice-presidente da República Hamilton Mourão, como um resultado importante da Verde Brasil II, já era algo executado há mais de uma década pelo Ibama, segundo Henrique.

"A gente publica uma lista com os municípios prioritários anualmente no Diário Oficial. Basicamente, pagamos R$ 530 milhões para o Exército descobrir a forma como a gente já trabalhava há anos. E só descobrir mesmo, porque nem conseguiram implementar essa expertise", afirma o servidor, denunciando o que chama de "desperdício enorme de recursos".

O servidor do ICMBio Ricardo* é ainda mais enfático. "Toda a expertise do Ibama foi descartada em troca de uma força que não tem nada de conhecimento". Ricardo trabalha atualmente em São Paulo, mas já planejou operações na Amazônia e explica que hoje em dia, ao ir a campo, os servidores ambientais já possuem os ilícitos e alvos praticamente "identificados".

"O dono da fazenda não está lá no meio do mato. Mas sem inteligência para identificar o vetor de desmatamento, muitas operações da GLO não multaram ninguém", coloca.
Hierarquia e logística militar atrasam operações

Embora as Forças Armadas tenham coordenado o combate ao crime ambiental na Amazônia pelos últimos dois anos, a maior parte das funções inerentes a esse combate segue sendo de competência exclusiva dos órgãos ambientais, como lavrar autos de infração, embargar áreas ou punir criminosos. Por esse motivo, servidores do Ibama e do ICMBio continuaram sendo convocados para a grande maioria das ações planejadas pelo Exército.

O problema, como também denunciam os servidores, é que também em campo, a hierarquia e a logística militar os impedia de exercer seu trabalho. É o que revela Maurício*, fiscal do Ibama desde 2005, que atua mais no Cerrado e portanto só participou de uma missão da Verde Brasil II, em Rondônia. "Graças a Deus, porque não toparia participar de outra", confessa.

Na experiência de campo que teve sendo comandado pelas FA, Maurício revela que mais ficou esperando ordens do que de fato trabalhou. Isso porque, assim que os fiscais de diferentes estados chegaram em campo, o Exército resolveu mudar os alvos da missão que já estava organizada pelo Ibama há meses.

"Indo para Rondônia, tudo mudou. Um vai e vem de lugares, uma indefinição de escolhas e alvos. Ficamos três dias só esperando no hotel, sem atividade nenhuma, enquanto o comando do Exército decidia o que faríamos. Estavam completamente perdidos", afirma.

A dificuldade de deslocamento em operações ambientais no meio da floresta amazônica as tornam mais longas, e cada dia perdido conta, tanto ao bolso público, por conta das diárias dos servidores, quanto para a efetividade da operação.

A espera por ordens superiores, de acordo com os servidores ouvidos, foi uma das mudanças mais abruptas no funcionamento das missões. No Ibama, segundo o servidor Henrique, a hierarquia se dava de outra forma. "Se seu superior militar te dá uma ordem você tem que seguir, eles acatam todas as ordens. Se a ordem for 'não participar' de uma atividade, eles não participam, mesmo que seja trabalho deles", diz.

E foi justamente essa ordem que imobilizou os soldados que jogavam vôlei em Tartarugalzinho, no caso relatado no início da reportagem. "Precisávamos muito de ajuda naquele momento", conta Ana. Mas até conseguir uma ordem com o comando do Exército para que os soldados pudessem parar de praticar o esporte para combater incêndios, o estrago já estava feito.

"A gente tinha autonomia em campo para resolver problemas. Na nossa cadeia de comando, o coordenador da operação dá as ordens. Nas FA não, e essa falta de maleabilidade começou a se estender para os servidores dos órgãos ambientais sob as ordens deles".

Para Elizabeth Uema, os agentes do Ibama e ICMBio ficaram reféns de "decisões políticas sobre onde podiam fiscalizar e onde não podiam". "Eles decidiam onde seria a operação e comunicavam os dirigentes dos órgãos, os fiscais só ficavam sabendo no dia e isso também explica a baixa eficiência das operações da GLO", afirma.

Depois de dias esperando ordens do Comando do Exército, os servidores do Ibama destacados para a operação que Maurício participou em Rondônia trabalharam bem menos do que o que fora originalmente planejado.

Segundo servidora, era inútil cobrar do Exército práticas comuns dos fiscais do Ibama, como andar dezenas de quilômetros para pegar, a pé e no flagra, criminosos em plena madrugada

"Em uma operação de 30 dias você pode contar uns quatro ou cinco só para deslocamentos maiores. A gente explicou isso para o Exército, mas mesmo assim tivemos que esperar uma reunião entre os comandantes para decidirem o que faríamos", lembra o servidor. "Nessa brincadeira", conta Maurício, os servidores tiveram apenas dez dias efetivos de trabalho durante um mês, sendo três deles efetivamente em campo.

A confusão atrapalhou as etapas de punição do crime ambiental, e no fim, os servidores não conseguiram concluir o trabalho administrativo do processo de multar criminosos.

"A gente tenta ir atrás do autuado para entregar a multa em mãos, porque no contexto rural, se não fizermos isso, é muito mais difícil que a multa de fato chegue até os autuados. Ou os endereços não existem, ou se existem, eles podem ameaçar o pessoal dos Correios para colocarem 'UR não identificada'", explica.

Quando pensamos em dias trabalhados em missões, de acordo com os servidores, vem outro grande problema da GLO da Amazônia: a escala de serviço dos militares não pode ser transposta para a realidade da fiscalização ambiental.

No início da Verde Brasil I, por exemplo, o Exército se reunia diariamente às 10h e recomendava a presença dos servidores dos órgãos ambientais em todas as reuniões. Para Carla, a demanda era inviável. "Ou a gente vai para a reunião às 10h ou combate o crime ambiental. As duas coisas ao mesmo tempo não dá", crava.

Segundo a servidora, era inútil cobrar do Exército práticas comuns dos fiscais do Ibama, como andar dezenas de quilômetros diariamente para pegar, a pé e no flagra, criminosos ambientais em plena madrugada. "Nós sempre largamos nossa picape no meio do mato e continuamos a pé. Se eu disser para o Comando do Exército largar o carro e andar 32 km ida e volta eles não vão. Eles têm uma limitação de horário, têm que retornar às 18h", afirma.

E quando a logística militar passou a afetar os resultados, a solução apresentada pelas FA, no final de 2019, foi buscar "aumentar as metas" mesmo que esse aumento fosse, na prática, maquiar os dados.

É o que denuncia o fiscal Maurício. "Queriam aumentar o número de operações. Então chegou ao cúmulo de dividir uma operação de 20 dias em duas de 10 dias, para somar mais operações. Chegamos ao ponto de fabricar números de operações", expõe.

"A operação não é o fim em si, é o método. Temos outras formas de avaliar eficiência, pelo número de autos de infração, a redução do desmatamento", completa o servidor.
Ostentação e marketing aumentaram gastos da GLO e expuseram flagrantes

Além da unanimidade entre os servidores ouvidos pelo open Democracy em relação à falta de planejamento do combate ao crime ambiental pelo Exército, também existe uma concordância sobre a ineficácia de outras ações planejadas exclusivamente pelos militares. No geral, a reportagem ouviu diversas críticas sobre ações "inúteis" ou com claro viés exibicionista.

A fiscalização de transporte ilegal de madeira em locais e horários que sabidamente não são estratégicos também foi motivo de críticas de muitos servidores

Conscientização contra crimes ambientais em escolas apareceram no relato de diversos servidores como uma das ações consideradas mais ineficientes entre as amplamente realizadas pelos militares durante a GLO.

"A Amazônia tem um timing. Tem a época do desmatamento, a época da queimada. Não podemos gastar tempo fazendo palestra de educação ambiental anti-queimadas durante a época das queimadas", critica a fiscal do Ibama Ana.

A fiscalização de transporte ilegal de madeira em locais e horários que sabidamente não são estratégicos também foi motivo de críticas de muitos servidores. Mário explica que as barreiras para interceptação de caminhões transportando madeira eram feitas pelo Ibama, no passado. No entanto, segundo o servidor, a medida não é mais executada pelo Ibama, uma vez que não tem mais tanta efetividade.

"Todo madeireiro tem hoje antenas de internet no meio da floresta e as populações das regiões de crimes ambientais são muito mobilizadas em prol das atividades ilegais. Se montamos uma barreira, a informação chega nos madeireiros. É uma medida atrasada", explica. Porém, o Exército priorizou as barreiras, na opinião do servidor, porque a ação "dá a sensação de que está havendo fiscalização". "Usam isso para passar a imagem de que estão trabalhando. Para eles, é mais efetivo ter imagem do trabalho do que de fato a redução do desmatamento".

A secretária executiva da Ascema Nacional, Elizabeth Uema, lembra de outra situação, que ela considera "para inglês ver", cujo relato chegou à associação.

"As FA decidiram monitorar uma serraria em uma cidadezinha, mas chegaram voando, fazendo estardalhaço e todo mundo ficou sabendo. Só encontraram madeiras legais dentro da serraria, mas havia uma pilha de madeira sem origem jogada do lado de fora do estabelecimento", conta.

Segundo Uema, esse tipo de "fiasco" foi praxe nas operações do Exército e provam que as operações foram feitas apenas para atender a expectativa de que algo estivesse sendo feito. "Uma satisfação muito cara e ineficaz". O uso de equipamentos pelas FA, de forma geral, é apontado pelos servidores dos órgãos ambientais como um problema específico para o combate ambiental.

A dificuldade de se entrar em picadas na floresta com os chamados "QT", caminhões grandes que passam em "qualquer terreno" mas não entram nas trilhas discretas dos desmatadores, o efetivo necessariamente muito maior do que o dos órgãos ambientais, e a necessidade de montar equipamento completo, com direito a máquina de lavar roupas e outros utensílios a cada viagem a campo, acabam sendo fatores de complicação para os flagrantes.

"Nossa inteligência e equipamentos nos permitia o fator surpresa, nós pegávamos as pessoas praticando o crime, éramos mais efetivos. As FA chegam com um aparato imenso, pesado, fazendo estardalhaço. Quando chegam nos locais do crime ambiental, os criminosos já desmontaram o acampamento, já não tem mais ninguém", explica Uema.

Segundo o servidor Mário, uma prática da qual o Exército não abria mão durante as operações era realizar voos de helicóptero para reconhecimento prévio das áreas onde ocorria o crime ambiental. "Sobrevoam o local alvo da fiscalização e, não contentes, mandam alguém antes para fazer avaliação. Quando chegavam não tinha flagrante, todo mundo já sabia da operação. Esse é o nível da incompetência", critica.

A quantidade de voos de helicóptero desnecessários realizados pelas FA durante as operações Verde Brasi I e Verde Brasi II também foi crítica presente em diversos relatos. "Pegavam a aeronave com todos os generais e ficavam fazendo filmagem por cima de incêndios, algo que efetivamente só gastava dinheiro", denuncia Ana.

A reportagem solicitou via Lei de Acesso à Informação (LAI) as informações de quantidades de voos nas operações da GLO, bem como dados de aluguel de aeronaves e helicópteros, gastos com combustíveis e resultados das operações.

O Ministério da Defesa respondeu que o fornecimento das informações solicitadas não é possível, pois "os dados quantitativos de pessoal e material envolvidos nas ações não estabelecem uma conexão entre os meios utilizados (viaturas, helicópteros, aviões e barcos)". O MD alegou também que para responder a demanda seria necessário "vasto esforço" em consultas e pesquisas junto às Forças Singulares, órgãos ambientais e de segurança pública.

Na opinião de Ana, a falta de evolução do Exército brasileiro é um dos grandes problemas por trás do que considera um "fracasso" da GLO. "O Exército da GLO é o Exército lá de trás, que abriu a Transamazônica, não evoluiu nada". A opinião é compartilhada pelo servidor Maurício. "São treinados para a guerra, atiram e depois perguntam, vigiam fronteiras. A perspectiva do crime ambiental envolve um olhar mais técnico e mais amplo que isso. Envolve invasão de terras públicas, grilagem, trabalho escravo, lavagem de dinheiro. O que o Exército entende disso?" questiona.

A ex-presidente do Ibama, Suely Araújo, concorda. Para ela, a decisão da GLO da Amazônia foi "absolutamente equivocada". "O caminho para a fiscalização ambiental não é militar", conclui.

Esta reportagem faz parte do especial 'As cinzas da Verde Brasil', desenvolvido por Julia Dolce para o openDemocracy.

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