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Sem vergonha na cara. Pálida.

Amazonia.org.br-São Paulo-SP
03 de Mai de 2004

Um verdadeiro festival de preconceito assola o País, mancha a credibilidade das instituições do Estado e gera mortes. O que se julgaria impossível após a aprovação da Constituição de 1988, com o reconhecimento da dívida histórica do Estado para com os índios, está hoje acontecendo e envolvendo diversas esferas do Poder Público, incluindo o executivo federal e estadual, a Justiça e até mesmo o Congresso Nacional.

A decisão proferida em 30 de abril por uma juíza federal substituta do Amazonas, atendendo uma paradoxal solicitação do Ministério Público, representa um fato grave, embora primário do ponto de vista jurídico. No Vale do Javari já foram registrados pelo menos 16 óbitos entre indígenas, por uma epidemia mortal, ainda desconhecida, que ameaça atingir milhares de índios, incluindo populações contatadas e isoladas. O Departamento de Índios Isolados da FUNAI conseguiu montar, com a colaboração de especialistas de renome e o patrocínio do Colégio Brasileiro de Radiologia, uma expedicão de alto nível para tentar diagnosticar a situação e estabelecer medidas preventivas. Dados os altos custos do material médico necessário, conseguiu a doação de parte deste por uma importante empresa de materiais radiológicos.

Alega a juíza que - por ser a saúde dos índios tarefa da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA, vinculada ao Ministério da Saúde) - a própria realização da expedição "sugere que o Estado Brasileiro nada tem feito pelas comunidades em questão" e manifesta temor de que as imagens radiológicas dos índios sejam usadas pela empresa patrocinadora. Por isso, manda encerrar imediatamente a expedição (em estágio avançado) sob pena de aplicar multa de 5 mil reais por hora ao Chefe do Departamento da FUNAI (que evidentemente, por sinal, não é considerada parte do Estado Brasileiro). Obviamente a meritíssima não aplicou o mesmo princípio aos brancos, mandando fechar os hospitais e planos de saúde particulares no País inteiro, cuja existência poderia ser considerada, da mesma forma, um perigoso atestado da ineficiência do SUS. No caso dos índios, parece que seu direito à sobrevivência é subordenado à boa imagem do Estado, mesmo que a sentença reconheça que "talvez o socorro... (da FUNASA) não venha em hora tão boa."

Está claro que a decisão da Justiça amazonense foi inspirada, se não instigada, por aqueles setores governamentais que - há alguns meses - estão engajados numa verdadeira campanha de difamação em relação aos convênios que - a partir de uma decisão do governo anterior - a FUNASA realizava com as organizações dos próprios índios. Em suma, tudo indica que os argumentos grotescos que embasam a decisão judicial nascem de um conflito maior no âmbito do próprio governo federal.

Referido episódio se junta a diversos casos recentes que contribuem para caracterizar um quadro geral de retomada do preconceito. O dos Cinta-Larga, em Rondônia, é exemplar: por anos foram fornecidas armas de fogo aos índios, dentro de um esquema de aliciamento em conluio com o Poder Público federal e estadual; na hora em que os índios as utilizam, se lança uma campanha contra os índios assassinos. Inexiste porém uma iniciativa para punir os que forneceram as armas. O gerente do garimpo de diamantes, Pandere Cinta-Larga, relata com detalhes o fato de ter negociado pessoalmente com o governador as atividades ilegais, sem que isso seja sequer investigado ou chegue a causar indignação.

Já no Congresso Nacional há um florescer de insultos e manifestações de desprezo. Parlamentares que, em sessão oficial, definem os índios brasileiros em geral como "fedorentos, não educados e não falantes de nossa língua" nem sequer são processados por quebra de decoro parlamentar. Outros, da base governista - que hostilizam a demarcação de terras indígenas por falta de "sentimento de brasilidade" por parte dos índios - continuam com cargo de relator em comissões sobre assuntos índigenas.

Todas essas manifestações acontecem num momento em que a omissão histórica em relação aos povos indígenas atingiu talvez sua maior dimensão. Os dados de 2003 mostram um aumento de 57,3% do desmatamento em terras indígenas, em decorrência de invasões conhecidas e toleradas. O programa de demarcação e vigilância de terras indígenas (PPTAL) continua há mais de um ano parado por razões supostamente burocráticas. Houve reduções significativas de terras indígenas por pressões de invasores e outras são anunciadas, em áreas críticas como a do sul do Pará, apesar de a Constituição garantir que elas são "inalienáveis e indisponíveis". Houve o citado retrocesso no atendimento de saúde. Continua sem definição a aprovação do Estatuto do Índio e da legislação sobre lavra mineral, de acordo, mais uma vez, com o que está previsto pela Constituição.

Omissão e retomada do preconceito andam juntas e se alimentam mutuamente. Podem gerar, inclusive, novos mortos, seja de doença, seja de espingarda. É suficiente para o Presidente da República se preocupar com isso?

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