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Sem terra nem comida

CB, Brasil, p. 14
Autor: GOMES, Mércio Pereira
05 de Mar de 2005

Sem terra nem comida
A fome já matou oito curumins em Mato Grosso do Sul só em 2005. Ontem, um bebê de apenas três meses morreu na reserva de Dourados. Presidente da Funai combate políticas assistencialistas

Luiz Carlos Azedo
Da equipe do Correio

Duzentos e cinqüenta pequenos guaranis precisam de ajuda. Estão doentes, sofrem de desnutrição e lutam contra a morte em reservas indígenas do Mato Grosso do Sul. Ontem, Janilson Alves de Souza, de apenas três meses, perdeu a guerra contra a fome. Morreu de desnutrido no Hospital da Mulher, em Dourados. É o oitavo indiozinho enterrado em terras matogrossenses em apenas um mês.
A situação da reserva indígena de Dourados é dramática. Numa pequena área demarcada em 1928 para 300 guaranis, se amontoam hoje 12 mil índios. Estão confinados e ameaçados não apenas pela falta de comida. Na quinta-feira, duas crianças morreram, uma de pneumonia e outra queimada por produto químico desconhecido.
A Fundação Nacional de Saúde (Funasa), orgão responsável pelo acompanhamento médico de todos os índios do país, contabiliza 500 crianças desnutridas nas reservas indígenas de Mato Grosso do Sul. Só na área de Porto Alindo, a 460 quilômetros de Campo Grande, 198 curumins com menos de cinco anos estão desnutridas.
A Funasa tenta correr contra o atraso. Médicos, enfermeiros e nutricionistas trabalham em regime de mutirão para salvar as crianças. Já conseguiram livrar do estado crítico 29,5% dos casos, informa Alexandre Padilha, diretor do Departamento de Saúde Indígena da Funasa.
Os índios, principalmente os guaranis, cuja população está crescendo, foram expulsos de suas terras e querem voltar para elas. O Mato Grosso do Sul tem 32 mil índios, de nove etnias: Atikun, Guarany (Kaiwá e Nhandéwa), Guató, Kadiweu, Kamba, Kinikinawa, Ofaié, Terena e Xiquitano.

Entrevista: Mércio Pereira Gomes
"Os índios não podem viver de cesta básica"

Na próxima terça-feira, o antropólogo Mércio Pereira Gomes, presidente da Funai, vai assumir a coordenação das ações do governo na área indígena para enfrentar situações como a que está ocorrendo em Dourados (MS), onde crianças índias estão morrendo de desnutrição. Nesta entrevista ao CORREIO,ele afirma que os guaranis foram condenados à extinção, mas conseguiram sobreviver e agora, que a população está crescendo, eles precisam de terras para viver e querem voltar aos lugares de origem.
Correio Braziliense - Por que as crianças estão morrendo nas aldeias de Dourados?

Mércio Pereira Gomes - Na última década, a mortalidade infantil nas aldeias caiu de 120 para 44 crianças por mil nascidos vivos, mas ainda é alto em relação ao resto da população. Hoje a média nacional é de 25 por mil. As crianças estão morrendo de desnutrição em Dourados porque há um número imenso de índios e pouca terra para eles. O índice de 59 mortes para cada mil crianças índias no Mato Grosso do Sul é o reflexo disso.

Correio - Os índios não conseguem reproduzir suas condições de existência?

Mércio - Chegaram ao limite da convivência humana. Em condições normais, conseguiriam, tanto é assim que a população está crescendo 5,5% ao ano. Hoje, são 12 mil índios numa área de apenas 3.450 hectares, quando precisariam de 70 mil hectares no mínimo.

Correio - Como a Funai pretende resolver o problema em Dourados?

Mércio - A Funai está fazendo avaliações para identificar as terras de onde os índios foram expulsos. Em Dourados, a maioria não descende do grupo que ocupava a área quando ela foi demarcada pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Em 1928, havia cerca de 300 índios na região. A partir da década de 40, os índios guaranis começaram a ser transferidos, como se não tivessem território.
Na década de 70, Dourados já tinha três mil índios, agora a população quadruplicou. Esse é um povo que foi condenado à extinção durante a colonização, sobreviveu e quer mais terras para garantir seu futuro.

Correio - Os guaranis de Dourados vivem praticamente dentro da cidade. Está havendo aculturação forçada?

Mércio - Eles estão sendo privados de espaço vital para seu padrão de sobrevivência. Estão sendo confinados dentro da cidade.

Correio - O que o governo pretende fazer?

Mércio - Na terça-feira, a Funai vai assumir a coordenação dos programas do governo federal, integrando as ações dos diversos ministérios na áreas indígenas. Além do ministro Thomaz Bastos, da Justiça, os ministros da Educação, Saúde e Agricultura estão nos dando apoio. Além disso, antropólogos e indigenistas estão realizando estudos para identificar os locais de origem. Os guaranis lutam pelo que chamam de "tekoha", o "lugar da vida". Mas isso não é fácil, pois depende de o governo estadual aprovar uma lei desapropriando as terras tomadas dos índios durante os projetos de colonização. O governador Zeca do PT prometeu buscar uma solução.

Correio - Mas e de imediato,o que será feito?

Mércio - A Funasa está fazendo um esforço para enfrentar o problema. A cidade de Dourados tem boas condições médico-hospitalares, o governo federal já repassou R$ 5 milhões através do Fome Zero para o governo estadual e as prefeituras. Mas faltam coordenação de ações e orientação adequada. Além disso, os índios não podem viver de cesta básica, eles precisam de terras para produzir o seu sustento e gerar algum excedente.

Correio - Há um agravamento das tensões nas áreas indígenas?

Mércio - Criou-se uma nova dimensão. A questão continua sendo antropológica, indigenista, mas exige ações do Estado. Houve um avanço grande na demarcação de terras, principalmente na Amazônia, que estará concluída até o final de 2006. Os maiores problemas de demarcação são em Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e Bahia, que dependem muito dos governos estaduais. Mas há problemas com invasores - madeireiros, garimpeiros, fazendeiros -, principalmente no Pará e no Acre. Anapu, por exemplo, era terra dos índios parakanã, que fugiram do conflito migrando para outra área, que hoje estamos demarcando. São 700 mil hectares de terras.

Correio - Como o governo vai agir nos conflitos?

Mércio - Defendendo os índios e as terras demarcadas, até para evitar conflitos mais violentos, como o massacre de garimpeiros pelos cinta-largas. Os caiapós, por exemplo, estão com problemas em Las Casas. Eles são guerreiros, se o governo não agir, evitando os conflitos, vão à guerra. Por isso a Funai e a Polícia Federal precisam se antecipar e retirar os invasores.

Correio - Quantos índios estão nessa situação?

Mércio - É difícil calcular. O problema mais grave é no Pará, em áreas que estão sendo demarcadas. Mas a situação avançou muito. Temos 27% do território demarcado, com 220 etnias, 180 línguas e 420 mil índios, dos quais 150 mil mantiveram seus costumes e vivem na floresta, de maneira muito próxima àquela que tinham há muitos anos. Com a demarcação de toda a Amazônia Legal, o futuro da floresta e dos índios estará garantido. Um dia eles saberão manejá-la de forma sustentada e a sociedade saberá respeitá-los assim como são.

CB, 05/03/2005, Brasil, p. 14

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